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1 – Contextualização

A sexualidade ao longo da História da humanidade e da História da Igreja é talvez das questões humanas mais comentadas e regulamentadas por grandes pensadores, filósofos e teólogos.

Mary Anne D’Avillez recorda-nos que tanto “no Antigo como no Novo Testamento houve discernimento em relação à beleza, profundidade e “mistério” do amor sexual entre homem e mulher, como se prova com a inclusão, no séc. I d.C., do Cântico dos Cânticos, poema de grande beleza erótica, no cânon dos livros da Bíblia hebraica”194. O Cântico dos Cânticos é o mais belo conjunto de poemas de amor mútuo e fiel de um amado e de uma amada que se unem e perdem, se procuram e encontram e que o matrimónio confirma. Proclamando a legitimidade e a exaltação do amor humano, pois Deus abençoou o matrimónio como associação afectuosa e estável do homem e da mulher e como um meio de procriação, estes poemas representam o amor de Deus pelo homem.195 Estes poemas ensinam a bondade e a dignidade do amor, características que aproximam o homem e a mulher. Seguindo a mesma linha condutora, é legítimo fazer a exegese com a carta de S. Paulo aos Efésios que compara o amor conjugal ao amor de Cristo pela sua Igreja: “Por isso deixará o homem o seu pai e a sua mãe e se ligará à

sua mulher, e serão ambos uma só carne. É grande este mistério: refiro-me à relação

entre Cristo e a sua Igreja”196.

A perspectiva bíblica e a doutrina cristã defendiam o ser humano como sendo um corpo espiritualizado ou um espírito corporizado, rejeitando a radicalização das dicotomias corpo/espírito, divindade/humanidade, transcendência/imanência.

A perspectiva que predomina na origem da cultura ocidental assenta numa visão redutora da sexualidade com raízes na filosofia dualista. A separação do corpo, que era visto como pertencente à terra, e o espírito, que representava tudo o que estava ligado à

194

COMMUNIO, D’ AVILLEZ, Mary Anne, Temperança e Sexualidade, nº 16, Difusora Bíblica, Lisboa, 5/1999, p. 473.

195

Dada a importância de São João da Cruz no pensamento de Karol Wojtyla, torna-se pertinente referir que este místico usou estes textos para justificar a união das almas com o Deus de amor.

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esfera do divino, foram a clara negação do conceito de Deus Criador e a criação da ideia de que todo que estivesse ligado ao corpo era mal.

“Mais tarde, a tradição cristã ocidental enredou-se noutro dualismo (…): “St. Agostinho, querendo superar o dualismo maniqueísta, cai noutro ‘dualismo’. Aceita a genitalidade em ordem à procriação, mas rejeita o prazer que vem da concupiscência, fruto do pecado”197.

O Romantismo exaltou a dimensão afectiva da sexualidade humana, ao mesmo tempo que sacrificava a dimensão cognitiva e procriativa. A sexualidade no Romantismo identificou-se com o amor romântico, no qual se evidenciava a dimensão afectiva, transformando-se numa sexualidade unidimensional e monovalente.

A década de sessenta caracterizou-se pela «revolução sexual», uma revolução especialmente para a mulher. Neste processo revolucionário apareceram como ideólogos Marcuse, Reich, Simone de Beauvoir, Betty Friedan, entre outros. Segundo Aquilino Polaino Lorente, estes ideólogos trouxeram poucas explicações para além daquelas que já se conheciam sobre a sexualidade, mas as suficientes para mudar o comportamento sexual que caracterizava o homem da civilização ocidental198.

Nesta revolução o programa propunha a opção pelo sexo como meio seguro de conquistar a nostálgica exaltação dionisíaca, a busca do máximo prazer possível com o mínimo compromisso possível, a pansexualização.

A revolução sexual dos anos sessenta fundamentou os movimentos de liberação da mulher ou movimentos feministas. O conceito de liberação apareceu, como contraposto ao de repressão, muito embora este último tenha a sua origem no conceito de psicanálise. “Alguns partidário de Freud consideram-no como um grande «libertador» da repressão humana, o facto é de não só não contribuiu para liberar o homem dos seus instintos, mas que ao – ao tentar compreender a neurose a partir duma perspectiva quase exclusivamente sexual – conseguiu neurotizar a sexualidade humana”199. Outros autores acrescentam as consequências das teorias freudianas sublinhando a permissividade, a promiscuidade sexual e a decadência de valores, nos quais se baseia a civilização ocidental.

197

D’AVILLEZ, Mary Anne, op. cit,. p. 474. 198

Cf. LORENTO POLAINO, Aquilino, Sexo y Cultura, Análisis del Comportamiento Sexual, 2 ª ed. Ediciones RIALP, 1998, p. 209.

199

Quando a funcionalidade da sexualidade é reduzida ao prazer, em que tudo é permitido, então nenhum comportamento é qualificado de adaptativo ou desajustado, normal ou patológico, bom ou mau.

Na década de sessenta, as substâncias contraceptivas também tiveram consequências na ruptura da unidade da pessoa. A sexualidade sofreu uma ameaça completamente inovadora e distinta, ficando liberta da carga generativa.

As mudanças profundas no comportamento da sexualidade humana que comportam o hiper egoísmo, a ausência de transcendência, conduzem a uma escalada de hedonismo individualista e a uma personalidade narcisista. A cultura narcisista dominante actualmente irá gerar a infertilidade e o isolamento.

O actual reducionismo da função sexual reduz o amplo e dilatado espectro que a sexualidade tinha, empobrecendo necessariamente os novos «consumidores». A final a liberação sexual serviu para a repressão do sexo, especialmente na dimensão reprodutora, afectiva e unitiva. Para liberar o sexo dos afectos decadentes que lhe sobrevieram como consequência da opressão «libertadora» talvez haja que optar pela reposição do sexo total, com o que ele supõe de compromissos e renúncias, de mistérios e tradições200.

Depois da revolução sexual dos anos sessenta, afirma Aquilino Polaino Lorente, seguiu-se uma década de liberação sexual generalizada, baseada na apologia da sexualidade não reprodutora e da procura do prazer sexual como única saída para o desencanto. Neste contexto, o compromisso do matrimónio, lugar da união sexual, aparece como algo sem sentido, trivial e rotineiro. Esta cultura impõe-nos o consumo do sexo, a exaltação do narcisismo e a unidimensionalidade axiológica do homem.

Mas apesar de tantos aspectos negativos, o homem pós moderno começa a inquietar-se e a compreender que lhe falta algo e, então, questiona-se sobre a felicidade, o prazer, os valores, os comportamentos e a cultura. Assim, podemos conceber uma possibilidade de uma cultura mais optimista acerca do comportamento sexual humano.

A sexualidade humana é uma função valorativa, na qual, o homem se auto realiza, se multiplica o género humano, como Deus propôs no princípio e se perpétua a espécie humana no mundo. É através da sexualidade que se dão as interacções de doação/aceitação entre o homem e a mulher, por cuja virtude coexistem, convivem e se fazem co-participantes dum projecto comum.

200

Nesta perspectiva a sexualidade humana é, na sua medida, uma perfeição, refere Aquilino Polaino Lorente. A perfeição da pessoa humana começa no momento do seu desenvolvimento, aberta a uma contínua evolução ao longo das múltiplas etapas evolutivas pelas quais atravessa o homem.

A sexualidade é uma função dada ao ser humano que deve assumi-la, conservá- la e agradecê-la, consciente do que “está obrigado a fazer para elevar ao máximo nível das suas possibilidade a perfeição inicial que lhe foi dada”201.

Para Aquilino Polaino Lorente, a conduta do comportamento sexual humano é indeterminada, plástica, auto controlável, auto perfectível e livre. Isto quer dizer que o comportamento sexual humano não é determinado meramente pelo instinto; que é algo que se vai modelando ao longo da vida; que é o próprio homem que a orienta, dirige e controla; que pode auto aperfeiçoar-se e que é livre.

Estas características revelam a responsabilidade que a pessoa tem relativamente à conduta sexual, responsabilidade que não admite dúvida, da qual muito dificilmente a pessoa pode escapar. Cada pessoa, ao longo da sua trajectória pode perder-se a si mesma se caminhar sozinha em busca da felicidade.

O homem pós moderno cheio de ideias contraditórias admite que suspeita não ser possível chegar à felicidade e que esta é impossível, pelo que deve conformar-se unicamente com a conquista do prazer pontual. Pressionado pelos factores sócio – culturais pode, assim, renunciar à plenitude do seu comportamento sexual e passar a obter algumas sensações periféricas que duram um breve fugitivo instante em que acontecem.

Esta realidade, de acordo com Aquilino Polaino Lorente, pode tornar a conduta sexual da pessoa algo meramente material, «pura matéria bruta», realizando a sua própria existência como um anti valor, transformando-o num «embrutecido».

O comportamento sexual da pessoa pode melhorar, quando em si mesma e por si mesma, a pessoa realiza os valores aos quais se propõe, ao mesmo tempo que eleva a sua conduta sexual a uma plenitude de valor. Para que tal aconteça é importante não anular nenhuma das dimensões: procriativa, afectiva, cognitiva, hedónica, educacional e religiosa. Aqui o difícil não é obter prazer sexual, mas satisfazer na plenitude, através da sexualidade, o desejo de ser feliz.

201

Quando a pessoa se vende ao prazer, diz-nos Aquilino Polaino Lorente, a vida perde o seu sentido, porque perde a sua liberdade e deixa de ser dom de si mesmo. Mas a vida vale, na medida em que quem vive, valoriza o seu valor. Na medida em que realizamos o «perfectível», à qual está chamada a nossa perfeição natural, a vida vale. A vida vale, na medida em que valem os valores que cada um pretende realizar na sua própria existência, sendo o mais pleno, o da entrega da própria vida. Quando não há nada pelo qual valha a pena entregar a vida, então, é porque a vida já perdeu o seu sentido, a sua razão de ser. A vida vale a pena ser vivida pela liberdade, essa capacidade infinita de querer e de amar incondicionada. No querer viver, a liberdade manifesta-se e a pessoa tem um comportamento livre, com propostas, projectos e propósitos, em ordem à felicidade da própria pessoa.

A conduta sexual humana pode optimizar-se, na medida em que o homem livremente procure, encontre e adira ao compromisso ético que está inscrito na sua própria natureza. Se não o fizer, o viver de muitas pessoas será uma «náusea esterilizante».

A liberação sexual está a gerar consequências culpabilizantes: por utilização do outro, exclusivamente, por prazer; por «consumo» de sexo ao vivo com instrumentalização de outro ou, por multiplicação dos mais variados desvios sexuais, como por exemplo, a homossexualidade, a violação, a pedofilia, entre outras.

Atendendo ao anteriormente referido, considera-se que a plasticidade da conduta humana e a sua vinculação à liberdade pessoal, permitem à pessoa eleger para si o comportamento sexual que deseja desde que satisfaça e não seja frustração para as suas necessidades sexuais. Assim, cada homem ou mulher pode eleger este ou aquele comportamento sexual que estaria a auto construir a sexualidade desta ou daquela forma concreta. O único erro nesta inferência está no facto de permitir a confusão reinante na sociedade actual. “Se não há nenhum comportamento sexual que possa estabelecer-se como normal, se qualquer conduta é válida desde que cada um satisfaça assim o seus próprios desejos, então teremos que concluir que não há nenhum comportamento sexual patológico ou que toda a conduta sexual – incluindo-se aqui também os hoje chamados «desvios sexuais», que ontem se qualificavam como «perversões sexuais» – é completamente normal, desde que sempre satisfaça a única condição que de forma iniludível se lhe exige: que seja de prazer”202.

202

LORENTO POLAINO, Aquilino, op. cit., p. 212.

Este critério hedonista parece ser o único critério de que está investido dogmaticamente o rigor da ciência para estabelecer o que é e o que não é normal na sexualidade humana. Daí que se possa afirmar ser dominante a confusão social, no que diz respeito à sexualidade. Começamos a verificar, afirma Aquilino Polaino Lorente, que a partir da perspectiva sociológica e da permissividade sexual que a caracteriza já não se admite a possibilidade da sexualidade patológica, camuflando os comportamentos desviantes como «usos alternativos da satisfação sexual», considerando-os válidos socialmente como aqueles que tradicionalmente se qualificavam como normais. Ao proceder desta forma, isto é, considerando normal o que não é, corre-se o risco extremo de passar a ser considerado normal o patológico e a declará-lo como um valor cultural.

A conduta sexual humana atinge a plenitude do seu valor quando o comportamento sexual realiza os valores a que o homem se propõe. Isto exige a não repressão das várias dimensões da sexualidade e a optimização do homem livre que procura e encontra no compromisso ético que está inscrito na sua própria natureza, como enfatizamos.

Durante todo o século XX conjugaram-se os factores necessários para que se fizesse uma análise aprofundada da sexualidade humana, em virtude dos grandes avanços científicos do corpo humano, da psicologia, da antropologia, da sociologia e da teologia baseada numa visão mais completa do ser humano.

Assim, uma das abordagens mais clara da sexualidade consta da Carta Apostólica Familiaris consortio: a “sexualidade, de facto, é uma riqueza de toda a pessoa – corpo, sentimento e alma – e manifesta o seu significado íntimo ao levar a pessoa ao dom de si no amor”203 João Paulo II face a um mundo agitado, desagregado por tensões e conflitos aponta os pontos essenciais para a vivência da sexualidade integrada e libertadora. Quando Deus criou o homem e a mulher criou-os sexuados, com a sua masculinidade e feminilidade. É através da dimensão da sexualidade que as pessoas vivem em relação, comunicam e partilham a vida total. Esta partilha dá-se a todos os níveis do ser, na doação ao outro, no acolhimento do outro, no amor conjugal, na ternura, numa verdadeira intimidade.

Para Jack Dominian, psiquiatra dedicado ao estudo do amor conjugal e da sexualidade humana numa perspectiva cristã, o “mundo está obcecado com o erótico,

203

JOÃO PAULO II, A Família Cristã. Exortação Apostólica de João Paulo II “Familiaris Consortio”, nº 37, 6ª ed., col. “Documentos Pontifícios”, Editorial A. O., Braga, p. 57.

mas não entende bem o amor personalista e valoriza muito a sensação transitória do prazer. O Cristianismo, que tem uma fraca compreensão da grande importância do erótico, procura encobri-lo e realçar o amor personalista. No passado, colocava-se o acento na procriação, mas é necessário que o erótico e o personalista se juntem e ambos se tornem significativos. O Cristianismo tem de compreender que os impulsos sexuais não devem ser suprimidos, mas sim contidos numa relação de amor personalizado; e a sociedade tem de reconhecer que impulsos sexuais incontidos não representam um comportamento humano autêntico. Dessa forma, a falta de auto-estima converter-se-á em auto-estima positiva, e evoluirá no sentido de uma plenitude do ser”204.

A sexualidade humana abrange a totalidade do ser humano como refere a primeira epístola aos Coríntios 12, 24, em que Deus ordena ao corpo para que todos os membros tenham os mesmos cuidados uns para com os outros. Esta unidade é hoje apresentada pela medicina e pela psicologia que ao tratar uma pessoa não a divide em partes, mas faz-lhe um tratamento holístico.

Este ser único e ordenado foi criado por Deus para amar: amar a Deus, amar-se a si próprio e ao seu próximo como a ele mesmo.

A aprendizagem do amor deve ser feita na comunidade de amor que é a família para João Paulo II. “A educação para o amor, como dom de si, constitui também a premissa indispensável para os pais chamados a oferecer aos filhos uma clara e delicada

educação sexual”205. Esta aprendizagem começa na relação mãe/filho, depois pai/filho onde se encontra segura no amor dado. A criança vai-se desenvolvendo de forma equilibrada, aprendendo a respeitar e responsabilizar-se por si própria e pelos outros, ao mesmo tempo que descobre a alegria de dar e receber. Na adolescência estrutura e integra todos os impulsos, desejos e sensações, num contexto de amor, respeito e responsabilidade, com a ajuda dos outros. É na juventude que começa a atingir a maturidade a todos os níveis da personalidade, vivendo em castidade, palavra com conotação de antigo e fora de moda. Karol Wojtyla afirma que não se pode compreender a castidade se esta não estiver em relação com a virtude do amor que tem como missão libertar o amor da atitude do prazer. Este pensador, define a castidade como uma atitude transparente relativamente à outra pessoa de sexo diferente e como a

204

D’AVILLEZ, Mary Anne, op. cit,. p. 475. 205

JOÃO PAULO II, A Família Cristã. Exortação Apostólica de João Paulo II “Familiaris Consortio”, nº 37, 6ª ed., col. “Documentos Pontifícios”, Editorial A. O., Braga, p. 57.

transparência da interioridade, sem a qual o amor não é amor, enquanto não estiver liberto do desejo de gozar para poder amar.

Para Karol Wojtyla a harmonia da sexualidade atinge a sua plenitude, num processo de auto conhecimento que leva à doação total de si ao outro, especificamente no matrimónio. A doação total de si e a possibilidade de acolher o outro só se podem concretizar numa relação comprometida, construída e aprofundada diariamente, num clima de confiança, de fidelidade e de amor incondicional que procura o bem do outro, no qual Deus está presente. “Nesta relação, o desejo e o prazer sentidos na comunhão do homem e da mulher no acto sexual renovam a dinâmica da vida de amor do casal e, muitas vezes, levam ao desejo enorme de ver esse amor realizado concretamente na vida de um filho ou de uma filha. Nesta relação, o desejo e o prazer estão sempre ligados ao amor, e de tal maneira estão interligados que numa vida em comum de muitos anos, o acto sexual, repetido vezes sem conta, é sempre novo, é sempre diferente. Nessa união as almas tocam-se e glorificam a Deus”206.

A vivência da sexualidade realiza a pessoa na sua plenitude de corpo, mente e espírito, levando ao auto conhecimento e ao encontro do outro na verdade, na alegria e na communio.