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2 Análise de João Paulo II sobre masculinidade e feminilidade

Nas últimas décadas, as várias dimensões da sexualidade têm sido objecto de estudo por parte das ciências humanas, como prova a bibliografia recente. O processo de transformação da conduta sexual da nossa sociedade tem aspectos claramente positivos: o desejo de integrar o erótico no plano das relações interpessoais, a progressiva igualdade dos sexos nos direitos e nos deveres, entre outros. A liberalização sexual tem de ser compreendida “à luz dos problemas sociais, económicos e políticos. Estamos a passar de uma sociedade totalitária ou autoritária, na qual se insiste sobre os valores de hierarquia e no princípio de autoridade, para uma sociedade democrática, na qual predominam os valores de comunhão ou horizontais”293.

Uma das figuras que, desde sempre, se entregou ao estudo da pessoa humana e à sua sexualidade, uma vez que são realidades indissociáveis, a partir de diversas perspectivas, foi Karol Wojtyla.

Nos ensaios que escreveu entre 1974-1975, sobre A Família como «communio

personarum, fez a interpretação teológica do homem e da mulher a partir do livro do

Génesis.

Para Karol Wojtyla o “homem e a mulher foram criados desse modo (…) em toda a diversidade do seu corpo e do seu sexo, para poder mutuamente fazer-se dom, precisamente através dessa diversidade, da riqueza específica da sua humanidade. (…)

292

TREVIJANO, Pedro, op. cit., p. 37. 293

O mútuo dom de si (…) está inscrito na existência humana do homem e da mulher desde o princípio. O corpo pertence a esta estrutura, por conseguinte, entra na categoria de dom e na relação do mútuo dar-se: o corpo como expressão da diversidade, que não só é sexual, mas global e, por conseguinte, da pessoa. Esta estrutura não foi destruída pelo pecado original na sua substância, mas apenas ferida.

Depois do pecado original, o homem não só se encontra em estado de queda (…), mas ao mesmo tempo (…) em estado de redenção”294.

Sempre que se aborda o tema da existência humana, a sexualidade faz parte desse universo criado por Deus. A Bíblia tem como início o livro do Génesis que faz o relato das duas narrações sobre a criação do homem e da mulher.

João Paulo II estudou sempre a pessoa humana constituída por um corpo, marcado pela masculinidade e pela feminilidade, indissoluvelmente, unido à sexualidade e aprofundou esta investigação a partir de Génesis 1 e 2, que deram origem à Teologia do Corpo, no ano de 1979.

Iremos, a partir da exegese de João Paulo II, fazer a leitura do segundo texto, à luz de Génesis 1, em que “o ‘ homem’ solitário [surgiu] de novo na sua dupla unidade de homem e mulher”295, que Deus criou à Sua imagem e semelhança desde o princípio.

Nestes dois relatos, há um dado comum, “a sexualidade fica instituída antes do pecado, por isso é um dom de Deus, o que contradiz toda a doutrina que tem intenção de ver nela a dimensão pecaminosa (...) do homem”296. Por outro lado e de acordo com o mesmo texto, a solidão aparece com dois significados, derivando um da natureza do próprio homem, isto é, da sua humanidade e o outro, da relação homem-mulher.

A narração bíblica é relatada numa sucessiva gradação e só no momento em que tudo está preparado, Deus diz: «Façamos o homem à Nossa imagem, à Nossa semelhança”297.

O relato da Criação, que nos apresenta o homem e a mulher criados pelas mãos do Criador, num estado de inocência originária, resplandecentes de felicidade, dá-nos a dimensão deste mistério. Isto sugere-nos “ o verdadeiro sentido do homem e da mulher, dos seus corpos, do seu sexo, descoberto no estado de inocência originária, e reflecte claramente o querer divino relativamente a eles, para além do limite do estado

294 DA, p. 244. 295 VM, p. 13 296

TREVIJANO, Pedro, op. cit., p. 18. 297

pecaminoso que depois surgiu, tendo em conta a análise fenomenológica de João Paulo II298

O carácter teológico do primeiro relato recorda-nos a relação entre Deus e o homem. Ao criar a matéria inanimada, Deus separou-a de todos os seres vivos, ordenando que fossem fecundos e se multiplicassem. Contudo, sendo o homem um ser vivo que também tem a função de perpetuar a espécie, Deus sublinha, para este ser a quem tudo preparou, a diferenciação sexual [“homem e mulher ele os criou” (Gn. 1,27)], abençoando-os ainda com o dom da fecundidade e da dominação, concedendo- lhes a dignidade de terem sido criados à Sua imagem e semelhança. Toda a narração nos mostra que o homem foi criado como um dom, como um valor especial relativamente às outras criaturas. Deus, no mistério da criação, criou a unidade dos dois seres, sendo cada um deles pessoa em si mesma, pois trata-se de um ser inteligente e livre.

“[A] criação «definitiva» do homem consiste na criação da unidade de dois seres. A sua unidade denota, sobretudo, a identidade da natureza humana; no entanto,

a dualidade manifesta a base de tal identidade, constitui a masculinidade e a feminilidade do homem criado”299.

O livro do Génesis oferece-nos dois relatos da Criação. Como se constata em Gn. 1,27: “Deus criou o homem à Sua imagem, criou-o à imagem de Deus; Ele os criou homem e mulher”. Neste cenário original de Génesis 1, a criação do homem e da mulher são consequência de um único acto, enquanto que em Gn. 2,7-25 “a criação completa e definitiva do «homem» (submetido primeiramente à experiência da solidão originária) se expressa no dar vida a essa communio personarum que formam o homem e a mulher”300.

Depois de o homem dar nome a todos os animais, “não encontrou para ele uma auxiliar adequada”301 à necessidade de trabalhar a terra. O homem, ao fazer a distinção dos seres vivos, adquire consciência pessoal de que é diferente deles, pois nenhum lhe oferece as condições básicas para tornar possível a existência de uma relação de dom recíproco. Ao mesmo tempo que se dá conta da falta de um ser afim, descobre a necessidade de se abrir para a comunhão interpessoal que acontecerá com a criação da mulher. 298 Cf. VM, p. 10. 299 VM, p. 71. 300 VM, p. 73. 301 cf. Gn. 2,20.

O homem criado estava só. Na busca da sua entidade perante Deus, ele é o primeiro homem, isto é, «‘adam» que significa pó da terra. Só quando Deus afirma que “Não é bom que o homem esteja só”302, é que cria a primeira mulher e o homem passa a ser definido como «varão», ou seja, (‘is).

Deus reconheceu a solidão do homem e disse-lhe que lhe iria dar uma “auxiliar semelhante a ele” (Gn. 2,18). O texto javista vincula a criação do homem à necessidade de trabalhar a terra que, no primeiro relato, corresponde às expressões “submeter” e “dominar”. Ainda aqui, devemos salientar, que Deus ao dizer que não é bom para o homem estar só, quer afirmar “que o homem por si «só» (...) não realiza totalmente (...) a essência da pessoa. Só a realiza existindo «com alguém», e ainda mais profundamente

e mais completamente: existindo «para alguém» ”303. Para João Paulo II, o conceito de ajuda a que nos remete o texto é expressão da reciprocidade, da comunhão fundamental e constitutiva do homem.

“Então, o Senhor Deus adormeceu profundamente o homem; e enquanto ele dormia, tirou-lhe uma das suas costelas, cujo lugar preencheu de carne. Da costela que retirara do homem, o Senhor Deus fez a mulher e conduziu-a até ao homem”304. O homem, ao entrar num sono profundo, tem o desejo de encontrar um ser semelhante a si. Como que se prepara para o novo acto criador de Deus, como que retorna ao não-ser, ao momento antecedente à criação, para permitir que do homem solitário, surja uma dupla unidade, definitivamente, como homem e mulher. João Paulo II refere que a mulher, ao ser formada a partir da costela que Deus tirou do homem apresenta a homogeneidade de todo o ser de ambos e sobretudo do corpo, da sua estrutura somática, apesar da diversidade da constituição, unida à diferença sexual.

Ao vê-la, o homem exclamou: «Esta é, realmente, osso dos meus ossos e carne da minha carne. Chamar-se-á mulher, visto ter sido tirada do homem»”305. Para João Paulo II, nestas palavras estão implícitas a felicidade originária e o começo da subjectividade da existência do homem no mundo como pessoa. A afirmação do homem vincula a identidade humana de ambos na sua masculinidade e feminilidade que manifesta a reciprocidade e a comunhão das pessoas. “A masculinidade-feminilidade – isto é, o sexo – é sinal originário duma doação criadora e duma tomada de consciência

302 Cf. Gn. 2,18. 303 VM, p. 102. 304 Gn. 2,21. 305 Gn 2,21-23.

por parte do homem, homem-mulher, dum dom vivido, por assim dizer, de modo originário. Isto é o significado com que o sexo entra na teologia do corpo”306.

A partir deste momento, o homem toma consciência da sua superioridade, relativamente aos outros seres, sublinhando a sua subjectividade. À mulher passa a chamar-lhe de ‘issa (mulher tirada do homem) e ela, por sua vez, chama-lhe «varão» (‘is). A descoberta da sua diversidade e da sua consciência revelam ao homem a sua capacidade de conhecimento do mundo visível que o rodeia, ao mesmo tempo que lhe permite fazer a distinção que existe entre ele e os seres vivos animais. Este é o primeiro acto auto-consciente e de auto-conhecimento do homem que na diferença, se descobre pessoa. Assim sendo, e segundo João Paulo II o “texto javista permite-nos descobrir (...) esse maravilhoso passado no qual o homem se encontra só perante Deus, sobretudo para expressar, através de uma primeira auto-definição, o próprio auto conhecimento, como manifestação primitiva e fundamental da humanidade. O auto-conhecimento vai a par do conhecimento do mundo, de todas as criaturas visíveis, de todos os seres viventes, aos quais o homem deu nome para afirmar, frente a eles, a própria diversidade”307.

Em Gn. 2,7-23, descreve-se primeiro a criação do homem e depois a da mulher. Contudo, a análise bíblica leva-nos a concluir que o primeiro relato da criação do homem, cronologicamente mais recente, provém da tradição sacerdotal e eloísta devido à forma como apresenta a imagem e o termo – Deus. O segundo relato da criação do homem é a descrição literária mais antiga da auto-compreensão do ser humano, da sua auto-consciência da inocência e da felicidade. Génesis 2 contém os principais elementos da análise da antropologia filosófica contemporânea e é também um dado importante para a teologia do corpo, evidenciando a criação do homem a partir da sua “subjectividade que corresponde à realidade objectiva do homem, criado «à imagem de Deus»”308.

À luz deste texto, o conhecimento do homem acontece através da masculinidade e da feminilidade que são duas dimensões complementares de auto-consciência e de auto-determinação. Estes dois modos de ser corpo e de duas consciências complementares de ser corpo, demonstram que na sua unicidade e irrepetibilidade, própria da pessoa, o corpo é feminino e masculino, enriquecendo o homem todo, como refere João Paulo II.

306 VM, p. 104. 307 VM, p. 51. 308 VM, p. 37

A superação da solidão, que se manifesta unicamente no contexto do relato javista, no qual o homem fica sozinho perante Deus, sublinha o significado da unidade originária do homem a partir da sua masculinidade e da sua feminilidade.

Criados à imagem de Deus, o primeiro homem e a primeira mulher formam uma autêntica comunhão de pessoas “e os dois serão uma só carne”309. O corpo, na sua masculinidade e na sua feminilidade, permite a comunhão de pessoas, mas tem um carácter especial na unidade que se expressa e se realiza no acto conjugal. O versículo 23 de Génesis 2 expressa a união da humanidade, que une o homem e a mulher no mistério da criação. O mistério da criação acontece sempre e, de modo especial, no acto conjugal que constitui uma superação do limite da solidão do homem, inerente à constituição do corpo. “Isto significa reviver, em certo sentido, o valor originário virginal do homem, que emerge do mistério da sua solidão frente a Deus e no meio do mundo. O facto de que se convertam «numa só carne» é um vínculo potente estabelecido pelo Criador, através do qual eles descobrem a própria humanidade tanto na sua unidade originária como na dualidade dum mistério atractivo recíproco”310.

Diz-nos a Bíblia que “o homem deixará o pai e a mãe para se unir à sua mulher”311, criando um vínculo conjugal ao primeiro homem e à primeira mulher, constituindo a comunhão entre marido e esposa. Para João Paulo II, quando ambos se unem devem ter uma consciência madura do significado do seu corpo para que se tornem num dom recíproco. Ao unirem-se numa só carne, submetem toda a sua humanidade à bênção da fecundidade, cumprindo o vínculo estabelecido pelo Criador.

Para o autor, “ o verdadeiro sentido da vida do homem – varão ou mulher – dos seus corpos, do seu sexo, há-de encontrar-se no estado de inocência originária, donde se repercutia sem sombras o querer divino relativamente a eles”312. Esta perspectiva permite ter uma visão valorativa do corpo e da sexualidade, que foi deformada com a situação do homem caído em pecado, como se não fosse possível a redenção.

João Paulo II desenvolve a ideia do corpo e da sexualidade, dando uma imagem moderna do homem que foi criado por Deus à sua imagem como homem e mulher, propriedade inscrita no corpo, constituindo dois diversos modos do humano ser corpo na sua unicidade e irrepetibilidade própria da pessoa

309 Cf. Gn. 2,23. 310 VM, p. 79. 311 Cf. Gn. 2,24. 312 VM, p. 10.

CAPITULO VI

DIMENSÃO ANTROPOLÓGICA DA