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1.4.2.5 | A SPECTOS TÉCNICOS

Importa agora clarificar alguns dos detalhes técnicos que a engenharia mais valorizava na cons- trução de linhas-férreas e qual o seu custo. O ideal era que o caminho-de-ferro fosse o mais em linha recta (em planta) e em patamar (em perfil longitudinal) possível. No entanto, nem sempre isso era realizável, quer em termos técnicos, quer sobretudo em termos financeiros e das características do território a cruzar. Portugal estava longe de ser um país óptimo para a construção de vias-férreas em virtude da sua geografia irregular e cortada114. A solução preconizada pelo czar Nicolau II, que, perante a discórdia dos engenheiros quanto à directriz da linha entre Moscovo e S. Petersburgo, traçou uma recta entre os dois pontos, nem sempre era praticável ou desejável115. No século XIX, os engenheiros conseguiram mostrar que praticamente não havia impossíveis. O que havia era incapa- cidade financeira para determinados impossíveis e interesses económicos e políticos a satisfazer.

Deste modo, era necessário fazer certos compromissos em termos de traçado, impondo-lhe cur- vas (medidas em raios e em metros) e rampas (medidas em milímetros por metro), que aumentavam a resistência à circulação das composições, dentro de certos limites. Nas linhas que se pretendiam de alta velocidade (sobretudo as que se ligavam a Espanha) os raios das curvas teriam de ser os maiores possíveis e os ângulos dos declives o inverso (Perdonnet indicava que se se quisessem atin- gir velocidades superiores a 30 km/h, nunca se deveriam construir curvas com menos de 300 m de raio). Isto poderia implicar um aumento nos custos de construção, mas em contrapartida a velocida- de permitida seria maior e a manutenção da linha seria mais em conta116. Caso aquele objectivo fosse difícil de concretizar era preferível até certo ponto um traçado mais curvilíneo em perfil (mesmo que significasse a adopção de declives mais acentuados), do que em planta, pois a manu-

113 MACEDO, 2009: 14. 114 SANTOS, 2011a: 59. 115 FAITH, 1990. 116 BMOP, 1864, n.º 6: 794-802. MACEDO, 2009: 198.

tenção de traçados em curva era mais dispendiosa117. Segundo o engenheiro Mendes Guerreiro, “um

comboio com mais de seis vehiculos experimenta nestas curvas [de 250 m de raio] uma resistencia correspondente a uma rampa de 0m,005; vê-se, portanto, quanto isto é oneroso para a exploração, e além d’isto a machina tende a saír pela tangente da curva, e descarrilará se a velocidade for grande, e a linha não estiver bem fixada”118. De igual modo, valia mais construir muitas curvas abertas do que poucas curvas de raio apertado, aplicando-se o mesmo raciocínio aos declives119.

Em condições ideais, na construção, era ainda desejável evitar: contracurvas, construindo-se sempre uma recta entre curvas de preferência com extensão suficiente para conter um comboio120; curvas em declive (à resistência da curva juntava-se a resistência do declive), sobretudo quando os valores de raio e inclinação atingissem os máximos permitidos por lei121; trainéis (inclinações cons- tantes) muito prolongados, excepto se a alternativa fosse uma sucessão de subidas e descidas122; túneis (pelo custo, por obrigarem a diminuir a velocidade dos comboios por motivos de segurança, por causa dos lençóis freáticos e por serem de mais difícil projecção por se desconhecer a composi- ção do maciço a cortar), excepto se a alternativa em curvas e trainéis fosse manifestamente incon- veniente (a serem construídos era preferível ter vários túneis de pequena extensão a um só de gran- de dimensão, mas por vezes por razões orçamentais trocavam-se túneis por traçados muito curvilí- neos)123; pontes (surgiam quando não era possível ou praticável estabelecer a via no terreno somen- te com movimentos de terra ou quando havia obstáculos, como rios, pântanos, desníveis ou estradas a ultrapassar)124; acabar as linhas em becos sem saída125; construir em terrenos pouco resistentes por natureza (pois obrigava a solidificá-los)126; e alterar o regime dos rios127.

Por outro lado, devia-se atender à segurança da circulação e à capacidade de transporte dos comboios, que dependiam, entre outras, do sistema de fixação e assentamento da via, do peso do material circulante e do peso e qualidade (ferro ou aço) dos carris (em teoria, quanto mais pesados, mais densos e mais resistentes eram, maior velocidade e carga transportada permitiam, mais tempo duravam e mais seguros eram; em contrapartida, eram também mais caros; para se ter uma ideia do

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AHMOP. COPM. Liv. 4 (1855-1856): 113-114v. JCOPM. Cx. 22 (1879), parecer 8312 (1-8-1879). BMOP, 1864, n.º 6: 794-802. EÇA, 1876-1877: 381-399.

118

ROPM, t. 10 (1879), n.ºs 109-110: 86.

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AHMOP. JCOPM. Liv. 35 (1874): 208-218. Para as características dos perfis transversais e longitudinais das linhas construídas, consultar o anexo 20.

120

AHMOP. COPM. Liv. 9 (1860): 64-68. JCOPM. Cx. 26 (1883), parecer 10592 (4-6-1883).

121

AHMOP. COPM. Liv. 21 (1865): 128v-131v. JCOPM, cx. 20 (1876-1877), parecer 7574 (13-9-1877).

122

AHMOP. COPM. Liv. 10 (1860): 130-130v. Liv. 11 (1861): 214v-215v.

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AHMOP. COPM. Liv. 21 (1865): 58v-61. VIEIRA, 1875. EÇA, 1876-1877: 381-399. ROPM, t. 10 (1879), n.ºs 109- 110: 86. MACEDO, 2009: 224-227. MACHUCA et al., 1998: 34.

124

MACHUCA et al., 1998: 26.

125

GUERRA et al., 1855a. AHMOP. JCOPM. Liv. 34-A (1873): 7-10. Cx. 27 (1884), parecer 11527 (17-7-1884).

126

AHMOP. COPM. Liv. 3 (1854-1855): 151v. Liv. 4 (1855-1856): 112v-113.

127

BMOP, 1863, n.º 5: 382-384. N.º 6: 471-473. AHMOP. JCOPM. Cx. 27 (1884), parecer 11527 (17-7-1884). MACEDO, 2009: 202-203.

peso ideal, actualmente nos AVE de Espanha, empregam-se carris de aço pesando 60 kg/m, enquan- to que na altura esse valor ficava-se normalmente pelos 37)128. Procurava-se também ao máximo permitir que a construção se servisse a si mesma, facilitando o transporte durante a construção e cruzando depósitos naturais de material para construir a linha129. Convinha também ligar localida- des importantes, mesmo que isso significasse atravessar uma zona estéril ou despovoada130. À medida que a rede ia crescendo, começava-se também a valorizar a necessidade de haver uniformi- dade de bitolas e de regulamentos, pelo menos em linhas da mesma classe e de facilitar a explora- ção independente nos entroncamentos das linhas131.

Nas passagens pelas estações, a flexibilidade era menor, exigindo-se que as linhas fossem assentes forçosamente em patamar e em recta132. As gares deviam ainda estar bem colocadas para servir o comércio, não interromper o acesso a outros bens públicos e permitir a continuação da linha em condições favoráveis. Era preferível deixar a estação longe da povoação que servia (o que tam- bém tinha vantagem em termos de menor custo das expropriações e de não se destruírem proprieda- des valiosas) se a alternativa não possibilitasse o prolongamento do caminho-de-ferro, até porque o distanciamento podia ser facilmente atenuado por uma estrada133. O intervalo entre as diversas esta- ções era também um factor a ter em conta, não devendo ser nem demasiado pequeno (diminuiria a velocidade dos comboios) nem demasiado grande (não servia convenientemente os povos)134.

Qualquer um destes pontos tinha influência na construção e também na exploração. Obviamen- te, era mais fácil e barato adaptar a construção aos caprichos da natureza do que realizar obras para colocar a linha na melhor condição possível: era muito mais fácil fazer uma curva apertada do que construir um muro de suporte ou um viaduto, escavar uma trincheira ou levantar um aterro; era mui- to mais barato contornar um outeiro que fazer um túnel; era muito mais acessível deixar o caminho- de-ferro ondular pelo relevo do que encher valas ou construir pontes para o horizontalizar. Todavia, estas facilidades pagavam-se na manutenção e conservação da linha e do seu material circulante. Numa linha curvilínea em planta e perfil, as máquinas tinham de se esforçar mais e as rodas, moto- res e material fixo desgastavam-se mais rapidamente, além de que a velocidade também se ressenti- ria pela negativa, o que redundaria num traçado virtualmente mais extenso. Podia assim haver linhas que fossem menos extensas em termos reais, mas mais extensas em termos virtuais e vice- versa. A isto juntava-se ainda a deterioração natural do material, sobretudo da madeira das traves-

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AHMOP. COPM. Liv. 5 (1856-1857): 23v-28. JCOPM. Liv. 34 (1873): 214-215v. EÇA, 1876-1877: 44-57. CASARES ALONSO, 1973: 332-333 e 337. MACHUCA et al., 1998: 26.

129

AHMOP. JCOPM. Cx. 18 (1875), parecer 6418 (7-1-1875). VIEIRA, 1875.

130

DG, 1878, n.º 210: 2260-2266.

131

AHMOP. JCOPM. Liv. 36-A (1875): 55-57v. Cx. 23 (1880), parecer 8890 (19-8-1880).

132

AHMOP. COPM. Liv. 11 (1861): 14-15v.

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AHMOP. COPM. Liv. 4 (1855-1856): 3-3v e 112v-113. Liv. 17 (1863): 122v-124. Liv. 18 (1863): 58v-62. JCOPM. Liv. 36-A (1875): 83-90. BMOP, 1863, n.º 5: 384-385. DINIS, 1915-1919, vol. 1 (apêndice): 92-94.

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sas. Surgiram alguns métodos para alargar a durabilidade, nomeadamente a injecção e a creoseta- gem, e chegou-se a propor o uso de travessas metálicas, mas nada anulou definitivamente o proble- ma do apodrecimento das pranchas.

Tudo dependia da natureza do terreno, da distribuição urbana e demográfica da zona e da natu- reza da linha (de interesse local ou internacional). Se o ideal técnico era uma recta sempre contínua, o ideal económico (e político) era servir o maior número de localidades possível. Como é fácil de depreender estes dois ideais nem sempre eram conciliáveis135. A isto juntavam-se ainda os factores tempo e custo (em função da diversidade orográfica do terreno a atravessar, do valor das expropria- ções, do preço da mão-de-obra e materiais e obviamente das condições de arte impostas à linha136). A decisão de adoptar melhores condições de tracção dependia do tempo que demoravam a edificar e de restrições orçamentais e só se tomava se estes limites não fossem ultrapassados ou se da decisão resultasse um aumento de tráfego que justificasse o gasto. Por exemplo, numa secção da linha do Minho entre Nine e Barroselas um novo projecto duplicou a despesa, mas melhorou a tracção pelo que foi aceite. Já na linha de Sintra, a estação ficou-se por Vila Estefânia, pois era demasiado caro levá-la ao centro da cidade sem um aumento sensível do tráfego que justificasse o aumento do cus- to137. Também aqui a natureza da linha era factor de peso na decisão final. Na linha do Algarve, deu-se maior importância ao custo de construção do que ao de exploração, porque era uma linha de tráfego reduzido138. Quanto ao factor tempo, havia o cronológico mas também o político, que nor- malmente era muito mais curto, pois os parlamentares queriam ver os seus campanários dotados de vias-férreas e os governos queriam mostrar obra o mais rapidamente possível, nem que fosse em condições menos que ideais.