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A temporada dos Pientzenauer e Conti (1762-1763)

PARTE I – O TEATRO DO BAIRRO ALTO E A HISTORIOGRAFIA

II.1. Fundação da Casa da Ópera do Bairro Alto Os primeiros anos

II.1.4. A temporada dos Pientzenauer e Conti (1762-1763)

Em 1762, os empresários do Teatro do Bairro Alto voltam a entregar a gestão da casa da ópera a parceiros externos. No dia 3 de Abril, encontraram-se com o bailarino Giuseppe Conti, Sebastião António Pientzenauer e o seu filho Luís José Pientzenauer45, na Calçada do Combro, no escritório do tabelião Tomás da Silva Freire, onde celebraram o contrato de arrendamento do teatro (ADL 8). Não se conhece a figura jurídica que unia Giuseppe Conti, Sebastião António Pientzenauer e o seu filho Luís José Pientzenauer, mas os três formariam uma sociedade de empresários que tinha por finalidade, além da exploração comercial da sala de espectáculos do Bairro Alto, o recrutamento de bailarinos que iriam dançar nos teatros de Lisboa. O escritório de Tomás de Silva Freire recebeu, no dia 29 de Março, Francesca Battini (ADL 6), no dia 3 Abril, António Jorge, Joaquim Welch, Francisco Xavier de Sousa e Francisco Trocate (ADL 7) e, no dia 28 de Abril, Pietro Campanella (ADL 9), tendo, todos eles, assinado contratos com Giuseppe Conti e os ditos Pientzenauer. As condições contratuais eram semelhantes: durante um ano, os empresários determinavam quais os teatros em que os bailarinos iriam dançar e estes comprometiam-se a não faltar a ensaios e dias de representação, sob pena de pagamento de uma multa no valor de 20$000 réis. Diferiam, no entanto, as remunerações, formas de pagamento e benefícios, pois Francesca Battini recebia 76$000 réis por mês e beneficiava de um camarote no Teatro do Bairro Alto, de «casa pronta com todas as suas partes e iluminada à custa deles empresários, os quais serão também obrigados a dar-lhe à sua custa uma sege cada vez que ela tomar de ir às representações ou ensaios para ir e vir» (ADL 6); António Jorge, que assina Antonio Giorgio, e Joaquim Welch recebiam 24$000 réis por récita, pagos de três em três récitas, Francisco Xavier de Sousa e Francisco Trocate recebiam 1$200 réis por récita (ADL 7) e Pietro Campanella, que dançou no Teatro do Bairro Alto (CTBA, f. 10), era obrigado a «executar todas as suas habilidades de dançar, representar e cantar conforme lhe for distribuído no teatro que eles, Sebastião António e seu filho e José Conti, elegerem e determinarem e todas quantas vezes e dias os mesmos determinarem as suas récitas, desde o dia de hoje até o dia de Entrudo do ano próximo que vem pelo prémio e

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João Gomes Varela indica, nas Contas do Teatro do Bairro Alto, um «monsieur Antoine, mestre de dança». Terá sido um lapso de memória. Varela talvez se referisse a Luís José que, segundo informação fornecida por José Camões, poderá ser o autor do tratado de dança Método, ou explicação para aprender com perfeição a dançar as contradanças, publicado com o seu nome anagramático Júlio Severin Pantezze (Lisboa: Oficina Patriarcal de Francisco Luís Ameno, 1761).

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preço de quarenta e oito mil réis em dinheiro cada um mês pago em quatro pagamentos iguais no fim de cada semana» (ADL 9).

O texto da escritura de arrendamento do Teatro do Bairro Alto é curto e as orientações são breves e pragmáticas: os arrendatários recebiam o património da empresa, o teatro, as oficinas e todo o recheio necessário à produção dos espectáculos, assim como os «aprestos de pinturas, bastidores e vestuários da mesma forma que presentemente se compõem» (ADL 8); os senhorios limitavam-se a receber a renda, desde o dia de Páscoa até ao Entrudo do ano seguinte46, por um valor acordado entre as partes: «[Q]ue eles, senhorios, haverão quatro mil e oitocentos réis e eles, rendeiros, outra tanta quantia em cada um dia de representação do monte do seu rendimento e do resto é que há de fazer o abatimento da sexta parte que fica pertencendo a eles, senhorios» (idem). Os novos sócios tinham permissão para fazer obras e alterar os vestuários, mas «fazendo as mudanças que forem precisas neles [vestuários] de sorte que fiquem sempre sendo de homem ou de mulher para o que estiverem já feitos e da mesma sorte usarão eles [ar]rendatários do tablado, fazendo nele as mudanças e obras que forem precisas para as suas representações de sorte que se não mude a forma dele e tudo à sua própria custa e despesa» (idem). Determinava-se que todos os consertos executados ficavam pertencendo à empresa e só o vestuário novo, adquirido pelos rendeiros, podia ser levado pelos ditos no final da temporada. Ficaram previstas as regalias habituais, definindo-se a entrega das receitas de um dia em benefício dos proprietários e de distribuição de convites: «[T]ambém haverá quatro bilhetes de graça para cada uma das partes os repartirem pelos seus amigos que bem lhe parecer» (idem). Foram, no entanto, expressamente proibidos mais bilhetes de graça, com excepção dos camarotes que se davam ao marquês de Marialva por razões que não ficaram expressas. A única interferência dos proprietários na gestão do teatro resumiu-se à explicitação dos dias de récitas, assim assegurando a rentabilidade da bilheteira e o pagamento da renda: «[Q]ue eles, rendeiros, ficam obrigados a fazerem o divertimento duas vezes cada semana e nos domingos e dias santos» (idem). O ajustamento com os arrendatários poderá ter sido alterado, pois João Gomes Varela descreve nas Contas do Teatro do Bairro Alto uma negociação diferente daquela que havia sido acordada na escritura: o inquilino «Monsieur Antoine», dito mestre de dança, pagou 12$000 réis por cada noite

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Os comentários marginais ao relato desenvolvido por Varela nas Contas apontam contradições nas datas de início da temporada: «pelo São João» (CTBA, f. 2) e em Maio (CTBA, f. 4).

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de espectáculo, independentemente das perdas ou ganhos, tendo dado à empresa 1.128$000 réis47.

As notícias sobre o repertório de 1762 são raras, mas é possível levantar algumas hipóteses48. Os parcos indícios que chegam até nós apontam para a exibição de espectáculos musico-teatrais na casa da ópera do palácio do conde de Soure. O manuscrito da ópera Nittetis no Egipto anuncia na folha de rosto: «[P]ara se representar no teatro novo do conde de Soure no ano de 1762»49. O folheto de O casamento de

Lesbina, publicado sem data nem local de impressão, indica em paratexto «Drama

jocoso/Para se representar em música/No novo Teatro do Bairro Alto/De Lisboa», fixando o seguinte elenco: Rosa Ambrosini, Gertrudes Pini, Giuseppe Ambrosini, Giovanni Ambrosini (cantores) e Francesca Battini, Giuseppe Conti, José Joaquim Ricardino, Bartolomeu Battini, Nicolau Ambrosini (bailarinos). É provável que o drama jocoso de Goldoni, uma tradução de Il filosofo di campagna, tenha sido representado no ano de 1762 pelos intérpretes italianos mencionados no folheto50, que já haviam actuado na assembleia particular da Calçada da Estrela, em 175951. Em 1763, Giuseppe Ambrosini será contratado, juntamente com os seus quatro filhos menores, pelo empresário italiano Carlo Pera, que havia adquirido uma licença para «representar publicamente óperas ao povo» em Sevilha52. Nesse ano, a família Ambrosini terá mudado para a cidade andaluza.

Além do grupo de artistas italianos, poderá ter havido deslocações de actores do Teatro da Rua dos Condes para a Casa da Ópera do Bairro Alto. A possibilidade de transição ficou registada num contrato celebrado no dia 17 de Fevereiro de 1762 entre Agostinho da Silva, empresário do Teatro da Rua dos Condes, e os «seus» cómicos

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Em nota marginal das Contas do Teatro do Bairro Alto, o autor do representante legal de Ferreira da Silva comenta a falsidade das informações, alegando o conhecimento do contrato: «O contrário de tudo isto se vê na escritura de que o Réu maliciosamente não faz aqui menção porque nos supõe ignorantes da sua existência». João Gomes Varela refuta a acusação e declara que «em nada se tornou aquele contrato» (CTBA, f. 4) e descreve, como se vê, uma negociação diferente. Relativamente à veracidade do negócio descrito por Varela, ficamos num impasse.

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Recordamos que as fontes referentes à identificação dos títulos, assinalados a negrito, são indicadas no Quadro do Apêndice1 «Repertório do Teatro do Bairro Alto».

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O local e o ano encontram-se riscados, o que pode sugerir a emenda de um erro (BNP, COD 4272. O manuscrito está guardado na área de reservados, mas não vem referenciado no catálogo. A existência foi indicada pela investigadora Marta Rosa).

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Podemos, no entanto, levantar dúvidas quanto à língua em terá sido interpretado, pois o elenco é constituído unicamente por intérpretes italianos.

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Informação fornecida por Licínia Ferreira. 52

O contrato foi assinado a 12 de Março de 1763 por «José Ambrosini», «morador no pátio do excelentíssimo conde de Soure» (ADL, 12.º Cartório Notarial de Lisboa, Livros de Notas, cx. 4, liv. 18, ff. 80-81). Em 1762, terá morado no Sítio do Forno da Telha do conde de Soure (AHTC, Décima da Cidade, Livro 752 M, 1762-1763, f. 37).

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Rodrigo César, Francisco Xavier Vargo e sua filha, Maria Joaquina, João de Almeida, António Jorge e Silvestre Alexandre53. Com duração de dois anos, o ajuste, que define deveres e salários, contém uma cláusula que obrigava os actores a representar no Teatro do Bairro Alto quando o empresário assim o determinasse, sem alteração das condições contratuais acordadas: «[S]endo preciso e conveniente a ele, Agostinho da Silva, que os ditos cómicos vão fazer algumas das ditas récitas a que acima ficam obrigados ao Teatro do Bairro Alto, pelo decurso deste contrato, serão obrigados assim e na mesma forma como se nestes dias representassem no Teatro da Rua dos Condes, com os mesmos salários» (ADL 5). Agostinho da Silva também quis incluir na escritura os nomes dos cómicos Pedro António Pereira, Desidério Ferreira, José da Cunha e José Félix da Costa, que com ele haviam assinado contrato a 4 de Outubro de 1761, ficando «obrigados a não representarem durante os ditos dois anos úteis [1762-1764] em outro teatro, ou lugar na corte, ou fora dela»54. Agora, o empresário definia que fossem «representar ao Teatro do Bairro Alto durante o tempo de seu contrato os dias que lhe forem convenientes e ele determinar» (ADL 5). Alguns destes cómicos ter-se-ão, no entanto, em algum momento, comprometido com os empresários da Rua da Rosa das Partilhas:

E porque alguns dos ditos cómicos tinham feito obrigações aos empresários no Teatro do Bairro Alto a qual por ordem superior se houve por de nenhum efeito, e contudo temem eles, cómicos, que daí lhe venha algum prejuízo, ele, Agostinho da Silva, o toma todo sobre si e se obriga a pô-los a par e a salvo, no caso que os empresários os queiram constranger a estar pela dita obrigação. (ADL 5)

Talvez os ditos actores tivessem sido aliciados pelos novos empresários da Casa da Ópera do Bairro Alto, que procuravam constituir a sua companhia numa cidade onde haveria poucos actores. Graças à intervenção de uma «autoridade superior» e à protecção do influente Agostinho da Silva55, dissolveram-se as obrigações contratuais

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No contrato com Agostinho da Silva, de 1762 (ADL 5), é designado «Silvestre Alexandre, morador na Rua do Carvalho». Deverá tratar-se de Silvestre Vicente, identificado no livro da Décima de Maneio enquanto representante na ópera» e morador na Rua do Carvalho da freguesia das Mercês (AHTC, Décima da Cidade, Livro 752 M, 1762-1763, f. 116).

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ANTT, 3.º Cartório Notarial de Lisboa, Livro de notas, liv. 37, ff. 97v-98v. Transcrição disponibilizada por Licínia Ferreira.

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Em «O empresário de teatro no século XVIII: o caso de Agostinho da Silva de Seixas», Licínia Ferreira descreve as funções do empresário da Rua dos Condes: «[S]ervia D. João da Bemposta, filho de D. Francisco, que por sua vez era irmão do rei D. João V. Ou seja, Agostinho da Silva servia o sobrinho do rei, que foi reconhecido legítimo (D. Francisco não casou), e ocupou altos cargos, como conselheiro de Estado, mordomo-mor de D. Maria I e capitão general da armada» (2016, p. 62).

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que alguns dos cómicos terão estabelecido com os empresários do Bairro Alto. De qualquer modo, a questão ficará resolvida em 1764, ano em que as duas casas assinam uma colaboração pacífica através da constituição de uma sociedade.

Receitas da segunda temporada

A segunda temporada também foi acidentada, desta vez devido à Guerra dos Sete Anos56, que justificou a fraca comparência de espectadores no teatro e levou mesmo ao cancelamento de espectáculos (CTBA, f. 4). Assombrada pela guerra, que durou até 1763, a época finalizou com um total de 94 récitas que renderam 1.128$000 réis.

No entanto, metade desse dinheiro foi, directamente, para João Gomes Varela, que era dono «de todo o recheio e fábrica do teatro pela compra que tinha feito aos ditos sócios de fora» (CTBA, f. 1v) 57. Os restantes 564$000 réis foram somados às rendas das casas anexas (392$000), o que perfez o total de 956$000 réis de receita da empresa. Subtraíram-se apenas 320$000 réis correspondentes aos pagamentos habituais (a renda devida ao conde de Soure e o pagamento do imposto da décima) e ao gasto com o arranjo de um telhado danificado pelo tremor de terra. Este ano a receita excedeu a despesa em 636$000 réis. E, no final da temporada, Conti e os Pientzenauer abandonaram a casa da ópera.