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Bruno José do Vale e os teatros públicos de Lisboa (Julho de 1770 – Julho

PARTE I – O TEATRO DO BAIRRO ALTO E A HISTORIOGRAFIA

II.8. O ano de Bruno José do Vale (Julho de 1770 – Julho de 1771)

II.8.2. Bruno José do Vale e os teatros públicos de Lisboa (Julho de 1770 – Julho

Nove anos após ter fundado o novo Teatro do Bairro Alto, João Gomes Varela abandona a empresa. Na escritura de 6 de Julho, Bruno José e Matias Ferreira da Silva comprometeram-se a pagar-lhe 400$000 réis por ano, assim como a suportar o pagamento pontual ao conde de Soure durante cinco anos e meio, o tempo que faltava para terminar o arrendamento do palácio (ADL 27). Quanto ao recheio do teatro, que, como já vimos, também pertencia a Varela, manteve-se no teatro, mas com a garantia de

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realização de um inventário dos bens e sua avaliação, prevendo-se a restituição de metade do seu valor no final dos ditos cinco anos e meio (idem). Varela só tinha de cumprir uma obrigação – a de abdicar de qualquer intromissão na administração do teatro, cujo destino financeiro passava a estar nas mãos de Bruno José do Vale e Matias Ferreira da Silva. Talvez tenha obedecido e cumprido a promessa, mas os alojamentos construídos à sua custa, junto e no interior do palácio, ficaram em sua posse e o ex- empresário do teatro continuou a residir no palácio com a sua família e a receber rendas de Cecília Rosa de Aguiar e Peppa Olivares (ADL 27). A partir de 6 de Julho de 1770, Matias Ferreira da Silva e Bruno José do Vale serão os únicos responsáveis pela administração do Teatro do Bairro Alto e «por conta de ambos fica correndo, daqui em diante, o bom e mau sucesso e a boa e má cobrança e os lucros ou perda resultantes da dita casa de ópera e suas pertenças» (idem).

Um mês após a demissão de Varela, no dia 7 de Agosto, Bruno José do Vale solicitou um empréstimo no valor de um conto de réis ao sócio Matias Ferreira da Silva com o intuito de «aumentar a utilidade que percebe na administração e regência do quarto da casa […] que lhe compete na Casa da Ópera do Bairro Alto» (ADL 28). A leitura do texto da escritura permite concluir que Matias Ferreira da Silva terá avançado com a compra de metade do interesse do Teatro do Bairro Alto pertencente a João Gomes Varela, tornando-se sócio maioritário, e que o empréstimo solicitado teria por finalidade equilibrar a parceria: com mais um quarto do interesse, Bruno José do Vale aumentava o seu capital e passava a partilhar, em equidade com o sócio Matias Ferreira da Silva, as responsabilidades, os ganhos e as perdas. A parceria durou apenas cinco meses, já que o homem de negócios abandonou a aventura teatral dois dias antes do final do ano de 1770. Bruno José do Vale divergiu do percurso escolhido pelo seu ex- sócio, investindo em várias empresas teatrais e, em Janeiro de 1771, será administrador dos três teatros públicos de Lisboa: da Graça, da Rua dos Condes e do Bairro Alto. A sua assinatura aparece em várias escrituras, cuja leitura permite traçar um breve itinerário do empresário durante os sete meses que antecederam a constituição da Sociedade Estabelecida para a Subsistência dos Teatros Públicos da Corte.

Na escritura de 23 de Outubro de 1770 (ADL 29), Bruno José arrendou o Teatro da Graça a Henrique da Costa Passos «com todas as mais casas e acomodações, cenário e mais mobília pertencentes à mesma casa» por um período de quatro meses, pelo preço de 144$000 réis (idem). Até ao último dia de Carnaval de 1771, o empresário tinha liberdade de fazer «executar os divertimentos que lhe parecerem, sejam de que

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qualidade forem, para o que terá somente livre despotismo», ficando responsável pelos cenários, vestuário e bastidores, enquanto o proprietário, Henrique da Costa Passos, tinha a seu cargo os custos das obras de conservação do edifício. O negócio concretizou-se e a 26 de Fevereiro de 1771 o arrendamento foi renovado por um ano, desde Março de 1771 a Março de 1772 (ADL 33), mantendo-se as condições previamente acordadas, mas com o aumento da renda para «cinquenta moedas de ouro de quatro mil e oitocentos» (idem).

No dia 29 de Dezembro de 1770, Ferreira da Silva trespassou a sua parte do interesse que tinha no Teatro do Bairro Alto por dois contos de réis131 a outro negociante, Manuel Bonifácio dos Reis, pois «por justas causas e motivos de seus interesses se lhes faz penoso continuar na mesma sociedade» (ADL 30), e, no próprio dia 29 de Dezembro de 1770, João Teixeira Pinto cedeu e trespassou o arrendamento do Teatro da Rua dos Condes a Bruno José do Vale mediante o pagamento de uma renda de três mil cruzados cada ano, ficando a pertencer-lhe os lucros e as despesas do dito teatro durante dois anos, a partir de Janeiro de 1771132 (ADL 31). No dia 31 de Dezembro de 1770, Bruno José do Vale constituiu uma sociedade com Manuel Bonifácio dos Reis, cessionário de Matias Ferreira da Silva, através de um contrato que esclarecia o interesse de cada um dos sócios «em metade do lucro ou perda que possa haver, assim no Teatro da Ópera do Bairro Alto, como no da Graça e, presentemente, no da Rua dos Condes, que se lhe adjudicaram» (ADL 32). O contrato não apresenta mais informações sobre o funcionamento deste ousado projecto, limitando-se a estipular a quantia investida – um conto de réis cada um – à qual Manuel Bonifácio acrescentou 500$000 réis, tornando-se sócio maioritário com «três quintos e ele, sócio [Bruno José do Vale], dois» (idem).

Não temos dúvida sobre a existência de um plano que visava o monopólio dos divertimentos teatrais públicos de Lisboa, embora Manuel Bonifácio dos Reis fosse apenas o capitalista que sustentava a actividade teatral, limitando-se a entrar com o dinheiro e a conferir as contas dos teatros. A sua principal profissão seria a de

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Segundo o texto da escritura, as importâncias correspondem a diferentes investimentos: «um conto de réis para a dita compra e sociedade», ou seja, para aquisição do capital social da empresa; o outro conto de réis corresponde ao «produto de todas as pertenças que no fim do dito tempo houvesse de tocar a ele, outorgante, por se terem inovado sobre o fundo da mesma casa» (f. 96). A expressão «fundo da casa» mantém-se enigmática.

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A escritura diz que o contrato de arrendamento assinado pelo procurador de Henrique Quintanilha e João Teixeira Pinto tem a duração de dois anos, mas não indica a data de início do dito contrato (ADL 19, p. 56).

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comerciante. Mas Bruno José, cuja actividade é descrita, no início do texto da escritura de 26 de Fevereiro de 1771, como «empresário dos teatros desta corte» (ADL 21, p. 60), ocupava-se directamente dos assuntos dos teatros.

Escritas em 7, 9 e 11 de Fevereiro de 1771, as epístolas de Sulpice Gaubier ao Conde de Oeiras confirmam a actividade simultânea do Teatro do Bairro Alto, do Teatro da Graça e do Teatro da Rua dos Condes. Bruno José do Vale, «empresário dos teatros desta corte» (ADL 33), dirigia os espaços teatrais, conhecia e convivia com os espectadores, geria, ou tentava gerir, os conflitos entre os artistas. As cartas indicam a sua presença, durante os dias de Carnaval, nas diferentes salas de espectáculo: no Teatro da Rua dos Condes, onde o empresário se afligia com a fuga da bailarina Rosa Campora, que se recusava a dançar com o seu antigo cabeleireiro, e no Teatro do Bairro Alto, onde, em noite de distúrbios, causados pela altercação entre o maestro Scolari e o violinista Todi, desabafava a sua angústia: «Le pauvre Bruno, au milieu de tout cela, avait l’air d’un criminel qui est dans l’oratório. “C’est moi qui paierai toutes ces sottises-là”, disait-il tristement» (BNP 2). Ordens superiores irão pôr fim à administração de Bruno José. No dia 17 de Julho, o dito empresário dos teatros de Lisboa verá o seu monopólio passar para as mãos dos grandes empresários e capitalistas da época.

O período em que a nova sociedade de Bruno José do Vale terá gerido o Teatro do Bairro Alto deixa-nos uma informação lacónica sobre o repertório da sala de espectáculos. Até ao dia de Páscoa, a 31 de Março de 1771, foram levadas à Real Mesa Censória quatro oratórias que terão sido apresentadas durante a Quaresma, apenas identificando-se O rei Baltasar (Il Re Balthassare) e José no Egipto de compositores desconhecidos (ver Apêndice 1). No dia 11 de Março, António José de Paula entregou a Terceira parte de D. João de Espina, que obteve parecer positivo no dia 18, dia em que dois requerentes pediram mais duas licenças: a autorização para a representação de

Farnace em Eraclea foi pedida por Nicolau Luís e, por sua vez, a licença para a ópera Dido foi requerida em nome dos empresários do Teatro do Bairro Alto. Ambas foram

devolvidas no dia 22.

Medimos, mais uma vez, a pulsação da vida teatral pela análise dos livros de registos da Real Mesa Censória (Quadro 2). Durante o ano de transição para a Sociedade para a Subsistência dos Teatros Públicos da Corte, os dados coligidos, e tendo em conta a actividade dos três teatros, Bairro Alto, Condes e Graça, apontam para um hiato entre a data do requerimento de Francisco António da Silva, de 31 de Maio de

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1771, que tencionava representar Telégono na Trácia no Teatro da Graça, e Setembro, mês em que os directores do Teatro da Rua dos Condes pediam licença de representação para A família do antiquário junto às instâncias censórias. Ou seja, desde o início de Junho até meados de Setembro, e lembrando que os novos directores dos Teatros Públicos da Corte terão principiado as suas funções a partir de 17 de Julho, não recuperámos sinais de actividade nos principais teatros públicos de Lisboa. Coloca-se a hipótese de uma suspensão da vida teatral, já que a sua reorganização poderá ter exigido a formulação de novos contratos e redistribuição de funções.

Prosseguindo a observação da tabela, é possível detectar as deslocações dos directores do Teatro da Rua dos Condes à Real Mesa a partir de 19 de Setembro, indiciando, assim, a apresentação de espectáculos no espaço teatral dedicado à ópera italiana. Sobre o Teatro dos Cómicos Portugueses não há, no entanto, qualquer menção ao longo do ano. Será preciso esperar por 1772 para ter mais novidades sobre a companhia e o seu repertório.

Quadro 2

Pedidos de licenças de representação à Real Mesa Censória: Maio-Dezembro de 1771

Obra Tipo de doc. Data Requerente Fonte

Telégono na Trácia Registo de entrada 31 de Maio Francisco António da Silva / TG ANTT, RMC, liv. 4. A família do antiquário

Requerimento 19 de Set. Directores do TRC ANTT, RMC, cx. 19, doc. 151 (b) Registo de entrada 19 de Set. ANTT, RMC, liv. 4, f. 298. Registo de regresso 23 de Set.

Comédia [?] Requerimento 26 de Set. Directores do TRC

ANTT, RMC, cx. 19, doc. 151 (a)

Comédia [?] Requerimento 7 de Out. Directores do TRC

ANTT, RMC, cx. 19, doc. 152

Comédia [?] Requerimento 18 de Nov. Directores do TRC

ANTT, RMC, cx.19, doc. 153

Entremez [?] Requerimento 5 de Dez. Directores dos teatros da corte para TG ANTT, RMC, cx.19, doc. 150 Registo de entrada

5 de Dez. ANTT, RMC, liv. 4,

f. 308v Registo de

regresso

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