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As vedetas da Casa da Ópera do Bairro Alto

PARTE III – A GESTÃO DA CASA DA ÓPERA

III.3. A satisfação do público e as estratégias do teatro comercial

III.3.2. As vedetas da Casa da Ópera do Bairro Alto

Os espectáculos do teatro público do Bairro Alto incluíam uma componente musical imprescindível ao sucesso da bilheteira. Assegurar a presença de mão-de-obra artística especializada, comediantes com capacidades para cantar e dançar, era indispensável ao financiamento da máquina teatral e reflectia-se nas contratações, que premiavam as «habilidades» através dos salários e de privilégios193. Não podemos afirmar que as diferenças salariais dos actores e actrizes recompensassem o talento, mas podemos declarar que premiavam os bailarinos e as vozes líricas. Na companhia do Teatro do Bairro Alto, as intérpretes femininas foram as vedetas, as estrelas que mais brilharam no palco e que o público pagava para ver e ouvir. O assentamento dos salários dos cómicos nas Contas do Teatro do Bairro Alto respeitante às temporadas de 1767- 1768 e 1769-1770 possibilita uma análise dos valores salários mensais, aqui apresentados por ordem decrescente. O alargamento do período de remuneração dos membros da companhia em 1769, ano em que os cómicos passaram a auferir de onze meses de salário, em vez dos habituais dez meses, foi justificado nas Contas como uma imposição do Presidente do Senado da Câmara (CTBA, f. 135)194. Os empresários, que tiveram de acatar a ordem, pagaram aos cómicos durante onze meses, mas baixaram os salários.

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Os contratos do empresário Agostinho da Silva apresentam o mesmo procedimento. Cf. Parte II.3. 194

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Quadro 8

Salário mensal dos cómicos do Teatro do Bairro Alto, temporadas de 1767-1768 e 1769- 1770195

Cómicos 1767-1768 1769-1770

Cecília Rosa de Aguiar (56$400)

(14$400) 70$800 + casas 36$365 (b) 27$271 63$636 Luísa de Aguiar

Maria Joaquina e seu pai, Francisco Xavier

Vargo 50$000 -

Pedro António e sua mulher [Lucrezia

Battini] 50$000 40$910

Silvestre Vicente e sua filha [Antónia

Henriqueta] - 31$820

Bernarda Maria - (c) 30$00

Joana Inácia da Piedade - (d) 24$000

José Félix da Costa 28$000 (e) 23$636

João de Sousa 22$000 16$363

Rodrigo César 22$000 15$455

António Jorge 22$000 15$455

José da Cunha [de Morais] 22$000 15$455

Silvestre Vicente 22$000 -

João de Almeida 18$000 11$820

Teresa 12$000 -

Lourenço António Pinheiro 11$000 7$273

João Florêncio 11$000 7$273

António José de Paula 10$000

+ casas

7$273 + casas

António Manuel (a)10$000 10$000

(a) Trabalhou desde o início da temporada até Julho. (b) Trabalhou desde o início da temporada até Agosto. (c) Começou a trabalhar em Julho.

(d) Trabalhou de Janeiro de 1769 e Fevereiro de 1770. (e) Trabalhou de Julho de 1769 a Fevereiro de 1770.

A exposição dos valores (Quadro 8) permite, desde logo, destacar diferenças de pagamentos que agrupam os actores em diferentes escalões. Em 1767, no escalão inferior, que chamaremos primeiro escalão, encontram-se seis actores, que auferiam salários entre os 10$000 e os 20$000 réis, mas o salário de João de Almeida já se aproximava do segundo escalão. A fraca remuneração de António José de Paula era compensada com a cedência de uma das casas pertencentes à empresa, que passou a

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pagar a sua renda, em vez de cobrar196 (CTBA, f. 135v e f. 279). No segundo escalão reúnem-se os salários médios de outros seis comediantes, que ganharam entre os 22$000 e os 30$000 réis, sobressaindo os valores recebidos por José Félix, que talvez cantasse. No terceiro escalão, situam-se Maria Joaquina e Pedro António com salários de 50$000 réis e no topo destacam-se os nomes das irmãs Aguiar.

Como se pode observar, Luísa, apenas com catorze anos, auferiu 14$000 réis e Cecília obteve, sozinha, o melhor salário da companhia, superando os 50$000 réis que eram pagos a duplas familiares – Pedro António e sua mulher e Maria Joaquina e seu pai197. Na verdade, se este montante fosse dividido pela metade, verificamos que as duplas obtinham valores coincidentes com o segundo escalão, esbatendo-se a disparidade salarial entre os membros da companhia. A desigualdade apresenta-se acentuada quando confrontamos o ordenado mais baixo com o mais alto – António José de Paula recebia quase seis vezes menos do que a primeira-dama da companhia. Note-se que, em 1769, a divisão do salário entre as irmãs foi reajustado, sendo o único ano em que Cecília conheceu um decréscimo mensal do vencimento – dos 56$440 réis para os 36$365 réis, enquanto Luísa teve um aumento de 13$871 réis, passando a receber quase o dobro do valor acordado em 1767.

No Teatro do Bairro Alto, os empresários esforçaram-se por manter na sua companhia três vozes femininas que afiançassem o êxito das temporadas. Quando Luísa de Aguiar suspendeu a actividade, por ocasião do seu casamento com Todi, a 28 de Julho de 1769, o lugar foi prontamente ocupado por Bernarda Maria. Por sua vez, a ausência de Maria Joaquina foi colmatada com a contratação da filha de Silvestre Vicente, talvez Antónia Henriqueta, e ainda compareceu Joana Inácia da Piedade, que apenas representou três meses. Como se pode verificar pela leitura do quadro subsequente, o espaço dedicado ao canto lírico continuou a ser preenchido na década de setenta. Apesar de estarem em minoria numérica, as actrizes do Teatro da Rua da Rosa eram os elementos que recebiam os melhores salários da Companhia dos Cómicos Portugueses. Cecília Rosa e Bernarda Maria ainda tinham direito a casas pagas (CTBA, f. 25, f. 135, 279v). As qualidades interpretativas das cantoras foram cuidadas pelos próprios empresários que, entre Maio e Junho de 1770, pagaram lições a Maria

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Lembramos que António José de Paula habitava numa das lojas situadas no pátio do conde de Soure desde 1766.

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Joaquina, orientadas por Francesco Perilla198 (CTBA, ff. 302v-303). O cantor italiano terá preparado a cantora portuguesa para o repertório operático de 1770, interpretado pelos cantores Angiola Brusa, Giuseppe Trebbi e Nicodemo Calcina que, nesse ano, integraram a companhia do Teatro do Bairro Alto. Ou, talvez, tenha sido contratado para orientar os ensaios individuais, quotidianos, indispensáveis aos profissionais de canto.

Depois de um interregno de um ano, Cecília Rosa de Aguiar regressou ao palco do Bairro Alto, onde continuou a ser a vedeta incontestável da casa da ópera com um aumento do seu salário para os 60$000 réis, como se pode depreender pela análise do Quadro 9.

Quadro 9

Salário mensal dos cómicos do Teatro do Bairro Alto, temporadas de 1770-1771 e 1772- 1773199

Cómicos 1770-1771 1772-1773

Cecília Rosa de Aguiar - 60$000

Maria Joaquina 48$000 48$000

Pedro António e sua mulher, Lucrezia

Battini 45$000 -

Silvestre Vicente e sua filha, Antónia

Henriqueta 35$000 38$400

Bernarda Maria 30$000 -

Joana Inácia da Piedade 34$000 28$800

José Félix da Costa - 28$800

Francisca Eugénia - 24$000

João de Sousa 18$000 -

Rodrigo César 17$000 17$000

José da Cunha de Morais 17$000 17$000

António José de Paula 10$000 20$000

João de Almeida 10$000 -

Lourenço António 10$000 16$000

José Arsénio da Costa - 14$400

José dos Santos - 12$000

António Manuel 10$000 -

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É possível que se trate do cantor que integrou o elenco de Pélope representado no Carnaval de 1768, no Teatro de Salvaterra de Magos (Lisboa: Oficina de Miguel Manescal da Costa, 1768). Kristina Neves Augustin arrola-o na lista dos castrati contratados durante o reinado de D. José I (2013, p. 111).

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Contas do Teatro do Bairro Alto (ff. 279-279v) e Contas dos Teatros Públicos da Corte (caderno n.º 92).

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Sob a administração dos teatros públicos pela Sociedade para a Subsistência dos Teatros Públicos da Corte, as contratações passaram por um reajustamento que implicou um aumento dos valores do primeiro escalão, cujo salário passou a fixar-se em 12$000 réis. Porém, o escalão superior, acima dos 30$000 réis, só admitiu Cecília Rosa, Maria Joaquina e Antónia Henriqueta, ajustada com o seu pai. Juntou-se ao elenco feminino Joana Inácia com um salário equiparado ao de José Félix. É de destacar a transição de António José de Paula para o segundo escalão em 1772, ano em que, pela primeira vez, o actor viu o seu salário ser aumentado, chegando mesmo a «ultrapassar» os seus colegas mais antigos – Lourenço António, José da Cunha e Rodrigo César.

A «satisfação do público» foi o princípio orientador dos projectos artísticos do teatro comercial, onde nasceram as celebridades que tiveram o reconhecimento público nacional, como Cecília Rosa de Aguiar, e mesmo internacional, como Luísa Todi, cujo sucesso alastrou por toda a Europa. Os sucessivos pagamentos de árias musicais encomendadas para Maria Joaquina e Cecília Rosa, e que seriam extrínsecas ao texto de partida e ao enredo da peça representada200, comprovam a solicitação da voz das cantoras por parte dos espectadores, prontamente respondida pelos empresários em sucessivos ajustes. O sistema teatral alimentava a celebridade que, por sua vez, sustentava o sistema teatral. Em algumas óperas, as cantoras terão substituído as vozes de castrati, que eram dominantes no repertório operático, passando a interpretar papéis de primo uomo por exigências das partituras201. O procedimento era habitual na Casa da Ópera do Bairro Alto: no drama jocoso Il viaggiatore ridicolo, Cecília Rosa de Aguiar foi D. Emília e Maria Joaquina interpretou o conde, seu amante; em L’incognita perseguitata, Cecília Rosa voltou a ser uma heroína enamorada e Angiola Brusa interpretou o conde Ernesto. Mas também a «estrela» do Teatro do Bairro Alto terá aparecido vestida de homem em 1767, pois, nas Contas do Teatro do Bairro Alto, indica-se o pagamento de «2 vestidos bordados, um de mulher e outro de homem para a Cecília que se compraram feitos» (CTBA, f. 35); em Il Beiglierbei di Caramania, de

200

Cf. Parte VI.2. Os espectáculos na Casa da Ópera do Bairro Alto: relações com a música. 201

D. José I contratou castrati italianos, ao longo do seu reinado, que cantaram na Patriarcal, na Capela Real e na Real Câmara e nos teatros régios, tendo constituído o «grupo profissional de cantores que desfrutavam do mais alto prestígio dentro na hierarquia musical da corte portuguesa e foram os profissionais mais bem pagos em detrimento dos músicos portugueses» (Augustin, 2013, p. 110). No entanto, o apreço do rei pelas vozes dos castrati não terá sido acompanhado pelo dos espectadores dos teatros públicos. Não há indícios de contratação de cantores com este tipo de voz no Teatro do Bairro Alto, com excepção de Antonio Mazziotti, que integrava a companhia ajustada em Londres por Varela, em 1765, tendo sido contratado em 1766 como cantor da Patriarcal. Kristina Neves Augustin arrola-o na lista dos castrati durante o reinado de D. José I (2013, p. 111).

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1771, Luísa Todi foi a protagonista (Zofira) e Cecília Rosa interpretou o papel de «Rustacco, namorado de Zofira».

Não obstante o contexto favorável da época, nem todas as cantoras conseguiam manter o estatuto de prima donna do mesmo teatro. Os estudiosos ingleses que se debruçaram sobre a história do King’s Theatre, no último quartel do século XVIII, comentam o apetite voraz dos espectadores pela «novidade». Ao contrário de outros empresários, Gallini, director do teatro londrino entre 1785 e 1789, respondia à necessidade de novos recrutamentos, que era constante, mas mal satisfazia um público que exigia sempre mais: «At Drury Lane or Convent Garden a principal performer might stay for decades, but hardly anyone attended every performance, and the theatres mounted fifty or sixty different main pieces over a season of 180-200 nights. The opera audience flocked to see new celebrities, but soon lost interest (Price, Milhous, Hume, 2001 [1995], p. 123). A vivência teatral da Londres de Setecentos faz-nos questionar os motivos que terão levado a manter Cecília Rosa, em particular, como a «estrela» da companhia. Poderemos apenas conjecturar, pois as fontes que dão indicações sobre o assunto são escassas. Grosier, que publica «Notice sur la Signora Cecilia-Rosa de Aguiar»202, descreve o domínio técnico da actriz nas interpretações de teatro declamado, as quais se caracterizavam pela entrega ao sentimento da personagem, que encarnava com tal paixão que chegava a ficar doente depois de representar o papel de Inês de Castro:

Depuis plus de 15 ans elle est en possession des applaudissements universels. Elle est d’une figure vraiment théâtrale, remplie de naturel dans son action, ce qui la rend excellente dans les rôles naïfs; mais connaissant à fond les règles de l’art et ne pouvant jouer des rôles affectés. Enfin elle s’abandonne tellement à la chaleur du sentiment, elle entre tellement dans l’esprit de son rôle, qu’on l’a vu tomber malade pour avoir joué Inès de Castro, et avoir besoin de quelques jours pour se rétablir. Son chant est aussi fort agréable. (Grosier, 1781, pp. 391-392)

202

O artigo publicado no Journal de littérature, des sciences et des arts, apesar de ser várias vezes citado por estudiosos, contém várias imprecisões, que talvez sejam justificadas por ter sido escrito anos depois dos acontecimentos vivenciados – publicado em 1781, o texto menciona João Gomes Varela como empresário do Bairro Alto, o que situa as observações do autor nos anos sessenta do século XVIII.

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As qualidades interpretativas ficaram gravadas para memória futura num soneto laudatório, que terá circulado entre os espectadores, dedicado a «Cecília Rosa de Aguiar, primeira-dama da Casa da Ópera do Bairro Alto»:

[...] Representando, és pasmo enobrecido; Recitando, és assombro da mesma arte; E mal pode o discurso exagerar-te, Entre pasmos, assombros divertido […] (BGUC, 2)

A versatilidade, que lhe permitia representar em óperas, comédias e tragédias, conjugada com a qualidade artística que o público lhe reconhecia, terão mantido Cecília Rosa ao topo da hierarquia203. Não há, no entanto, dados que indiquem se o estatuto artístico, que lhe dava condições económicas mais favoráveis do que a dos colegas, se traduzia numa autoridade da primeira-dama sobre as orientações da companhia, sobretudo na escolha do repertório ou da música e dos músicos. Já a matéria factual é reveladora de «lealdade» dos empresários para com a sua primeira-dama que, por sua vez, nunca abandonou a companhia. A actriz-cantora morreu no dia 13 de Maio de 1789, aos quarenta e três anos de idade, na freguesia dos Anjos (Moreau, 1981, p. 38), sem que haja notícia de outro local onde possa ter continuado a sua carreira profissional, que parece ter chegado ao fim no ano de encerramento do teatro do palácio do conde de Soure, em 1775.