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PARTE III – A GESTÃO DA CASA DA ÓPERA

III.1. A máquina em funcionamento

III.1.3. As tarefas habituais

A produção e montagem de cerca de quinze espectáculos por mês envolviam o cumprimento de tarefas rotineiras. A primeira, de carácter burocrático, consistia na submissão dos textos dramáticos à Real Mesa Censória, com respectivo requerimento para licença para representação. Quem se dirigia habitualmente à instituição censória eram os próprios empresários, que deixavam a petição em nome dos «empresários do Teatro do Bairro Alto» e até mesmo o escriturário do teatro, Teodoro Clemente da Silva Torres, encarregava-se da tarefa. Alguns elementos da companhia que tinham uma relação próxima com os textos também assumiam, por vezes, essa responsabilidade; o ensaiador e apontador do teatro, Manuel José Neves, assim como Nicolau Luís da Silva e António José de Paula, enquanto autores e tradutores, chegaram a deixar os seus nomes nos requerimentos. O tempo que demorava todo o processo censório variava, mas até se conhecer a deliberação da mesa e obter, ou não, a licença solicitada, os empresários podiam aguardar entre uma semana a um mês. Obtidos os pareceres favoráveis dos censores, era necessário copiar os textos e as partes e distribui-las aos

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respectivos actores que, segundo os contratos de 1762 e 1763, tinham quinze dias para estudar os seus papéis (ADL 5 e ADL 10).

João Gomes Varela encarregava-se de fazer as compras dos materiais necessários para abastecer o teatro, mas não se deslocava a pé. Alugava seges e, desse modo, andava por Lisboa, adquirindo os produtos. No decorrer da temporada de 1767-1768 deslocou-se pelo menos sete vezes aos locais de venda (CTBA, f. 32, f. 43, f. 88v, f. 97, f. 104 e f. 105). Outras vezes, eram os próprios «operários» da casa da ópera que cumpriam a tarefa, ficando indicadas nas Contas as compras do mestre alfaiate António Francisco (f. 197, f. 235), ou do oficial de alfaiate Matias Lopes (f. 225). Alguns dos pontos de venda de mercadoria vêm mencionados, como o Rossio ou a Calçada de Santa Ana, mas o mercador mais solicitado, entre Novembro de 1769 e Fevereiro de 1770, era aquele que vendia fiado a fazenda (f. 206 e f. 236).

A lista das compras dos materiais necessários à execução dos cenários e trajes de cena aparecem, nas Contas do Teatro do Bairro Alto, sob a designação «Despesas extraordinárias e diárias»161. Percorrendo as listas, encontramos o durante, o ruão, o lustrim, o tafetá, o cetim e o brim como os tecidos mais utilizados pelos alfaiates, que também usavam com frequência lantejoulas, galões, fitas e froco para os adornos162. As cores prevalecentes eram o cor-de-rosa, o azul, o carmesim, o verde, o preto, o branco e o encarnado. Para os carpinteiros compravam-se ferragens, vários tipos de papelão e papel «para transparentes», tábuas de várias dimensões e espessuras, sendo recorrente a utilização de tábuas de estiva, tábuas de casquinha, serrafos, barrotes, pagando-se os necessários carretos (transporte). O papelão, provavelmente para os telões, e o cordel são dois tipos de material que surgem continuamente nos róis mensais, havendo apenas uma menção à funcionalidade do cordel «para as transformações» (CTBA, f. 70) –, apontando, talvez, para a sua utilização nas mutações de cena ou nos maquinismos. E não podiam faltar os fundamentais pregos – de carda, pontais, do Alentejo, galeotas. Para os pintores compravam-se todos os apetrechos e matérias necessários ao ofício, como brochas, e os pigmentos para a composição das tintas, como o alvaiade e gesso (pigmentos brancos), goma-arábica (pigmento vermelho), jalde e ocre (pigmentos

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Como já dissemos, só existem os registos detalhados dos róis mensais referentes aos anos de 1767, 1769 e 1770. Os róis dos pintores, alfaiates e carpinteiros, que se incluem nas listas dos gastos com os materiais, devem corresponder ao pagamento dos trabalhadores.

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Consulte-se o artigo de Manuela Pinto da Costa, «Glossário de termos têxteis e afins», Revista da Faculdade de Letras. Ciências e Técnicas do Património. Porto, I Série vol. III, 2004, pp. 137-161 ( PDF disponível na Biblioteca Digital da Faculdade de Letras da Universidade do Porto em http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/4088.pdf., acedido a 13 de Junho de 2016).

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amarelos), verdete (pigmento verde), anil (pigmento azul), preto de Itália, aguarrás e sabão163.

As necessidades técnicas e artísticas do teatro na construção dos espectáculos podem ser avaliadas pela reconstituição da produção de a A viúva sagaz. Em meados de Março, o actor António Manuel submeteu o texto à Real Mesa Censória que terá regressado a 22 ou 29 de Março164. Em Abril, os consertos e novos vestidos para a comédia necessitaram de quatro dias de trabalho do alfaiate António Francisco, que foi acompanhado por Matias Lopes, e ajustou-se José Clemente por três dias, José António e Manuel Ferreira por três dias e meio e Bernardino de Sena por dois dias e meio (CTBA, f. 291). Com «cinco maços de linha, papel e água e uma carta de alfinetes», confeccionaram e repararam os trajes com durante branco, azul e escuro, bem como pano branco, e utilizaram vários tipos de galões, elementos decorativos muito utlizados nos acabamentos dos vestidos, tendo sido comprado galão «largo» e «estreito», e de ouro, espiguilha e velilho (idem, ibidem). Os adereços que ocuparam a cena tinham um carácter realista, tendo sido comprada uma caixa dourada, um pergaminho, um paliteiro, um vidro de água cheirosa, um lenço, um espelho, um relógio, uma tesoura, três dúzias de botões dourados, três bocetas, uma escova, um pente, folhos de papel dourado, seis copos, uma borla de arminho, uma onça de douradura, duas máscaras de cara (CTBA, f. 291v) e um chapéu grande (f. 300v). Alguns dos objectos arrolados adequam-se, precisamente, a uma das cenas que vem descrita numa didascália da edição de 1773, de Manuel Coelho Amado, «Comédia nova intitulada A viúva sagaz ou astuta ou a quatro nações, composta pelo doutor Carlos Goldoni e traduzida segundo o gosto do teatro português». No momento em que uma das personagens, Monsieur Blau, de nacionalidade francesa, cuida do cabelo da jovem Rosaura, usam-se diversos objectos que são identificados na lista de compras da empresa teatral (realçamos a negrito os coincidentes):

Vai tirando da algibeira um estojo de prata com uma tesoura e lhe corta o dito cabelo; do mesmo estojo tira um alfinete de toucar e lho acomoda, e achando não estar bem, de outra algibeira tira uma caixa e desta um pente com o qual lhe conserta o toucado; de outra caixa de prata tira uma borla com pós de Chipre, com os quais a polvilha; do estojo tira

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Sobre estes e outros materiais, consulte-se o artigo de António João da Cruz, «Os materiais usados em pintura em Portugal no início do século XVIII, segundo Rafael Bluteau», in Artis – Revista do Instituto de História da Arte da Faculdade de Letras de Lisboa, 7-8, 2009, pp. 385-405 (acessível em www.ciarte.pt/textos/html/200902.html, acedido a 10 de Agosto de 2016).

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um canivete e lhe tira os pós da testa, e com um lenço lha alimpa; depois lhe mostra um

espelho para que ela se veja, e finalmente tira um vidrinho de água cheirosa, lava as

mãos, alimpa-se no lenço e enquanto faz, tanto o que está dito, como o guardar os trastes, irá dizendo algumas palavras a propósito, e Rosaura se deixa estar sentada com admiração. (idem, p. 11)

A aquisição de duas «máscaras de cara» não servia propósitos fantasiosos, adequava-se, antes, ao carácter realista anunciado no texto de 1773: «A cena se representa em Veneza, porque a liberdade das máscaras só corresponde bem naquele país e não em qualquer outro» (idem, p. 1). Se na versão portuguesa desaparecem as personagens da commedia dell’arte, substituindo-se, por exemplo, um Arlequim por um Pascoal, a inclusão de momentos musicais terá compensado em animação, pois os registos mencionam os gastos com a «cópia e solfas para o coro de A viúva sagaz» (CTBA, f. 300). Finalmente, em Maio, os carpinteiros adequaram os dispositivos cénicos à comédia (CTBA, f. 298v) e os pintores criaram as vistas, pagando-se dois dias a Simão Caetano Nunes, um dia a Bento José e mais dois a um operário, cujo nome não ficou registado (indica-se um «rapaz») (CTBA, f. 296).

Executados os cenários e os trajes, copiado o texto para o apontador, as partes para os actores e as partes cavas das músicas, ensaiadas as danças e comédias, vinha, finalmente, a afixação dos cartazes que anunciavam o espectáculo. A tarefa impunha-se mensalmente, razão pela qual se remunerava todos os meses um moço, que se dedicava a distribuir as notícias em Lisboa, mas apenas se conhece a Rua dos Condes como local de afixação dos cartazes (CTBA, f. 105).