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Elementos para uma reconstituição arquitectónica da sala de espectáculos

PARTE I – O TEATRO DO BAIRRO ALTO E A HISTORIOGRAFIA

I.3. O teatro do palácio do conde de Soure

I.3.1. Elementos para uma reconstituição arquitectónica da sala de espectáculos

O Teatro do Bairro Alto foi concebido por Lourenço da Cunha, considerado por Volkmar Machado como «o maior pintor português que temos tido no género de arquitectura, e perspectiva» (1922 [1823], p. 156). Uma vez que a planta do teatro ainda não foi encontrada, teremos de recorrer à análise das notícias existentes de forma a reunir os dados e sugerir hipóteses que contribuam para uma futura reconstituição do espaço arquitectónico.

A tabela de preços dos bilhetes, publicada com os estatutos da Instituição da Sociedade Estabelecida para a Subsistência dos Teatros Públicos da Corte, promulgados em 1771, indica a presença de elementos que sugerem a configuração da sala de espectáculos. Uma primeira leitura do preçário do teatro em que «se representam os dramas na linguagem portuguesa» (o Teatro do Bairro Alto) permite delinear a organização do espaço, constituído por plateia, superior e inferior, varanda, «primeiro andar das frissuras», «segundo andar» e «terceiro andar», como se pode ler na Figura 11.

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Intervenção Arqueológica na Travessa Conde de Soure, n.º 16 a 20 – Lisboa. Nota técnica 1 – Junho 2015; Projecto 1020/1038-2015, Doc. 1. Data de trabalhos: 16 e 17 de Abril de 2015. A nota técnica foi gentilmente cedida pela equipa de arqueólogos responsáveis pela intervenção arqueológica – Nuno Rocha, Raquel Santos e Nuno Neto – da empresa Neoépica, Arqueologia e Património.

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Figura 11 – Instituição da sociedade

Estabelecida para a Subsistência dos Teatros Públicos da Corte. Lisboa: Na Régia

Tipografia Silviana, [1771], p. 19.

Se quisermos adoptar uma terminologia menos ambígua («andar» é, hoje, comumente usado para indicar cada um dos pisos acima do piso térreo), as frissuras, ao nível da plateia, situavam-se no piso zero, constituindo a primeira ordem de camarotes; os camarotes do «segundo andar» localizavam-se no primeiro piso e os do terceiro andar, no segundo piso. As folhas de rendimento do Teatro do Bairro Alto de Julho de 1774 (CTPC, caderno n.º 329), que incluem o assentamento da ocupação dos camarotes (Figura 12), indicam que o Teatro do Bairro Alto oferecia, em 1774, 79 camarotes: o piso das frissuras (numerados de 1 a 24) alojava 24 camarotes; o primeiro piso (numerados de 25 a 45) albergava 22 camarotes, incluindo o camarote n.º 46, que não vem indicado na folha de assentamento, mas é tido em conta na enumeração, pois talvez correspondesse a um lugar cativo (ocupado, eventualmente, pelas autoridades); o segundo piso teria 33 camarotes (numerados de 47 a 79).

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Figura 12 – Folha do rendimento do Teatro do Bairro Alto, Julho de 1774. Contas dos Teatros Públicos da Corte, caderno n.º 329, UCFL. I.E.-JF.

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Sugere-se, no entanto, uma nova interpretação das folhas de rendimento32. As torrinhas, embora assentes no esquema do «terceiro andar» (equivalente ao segundo piso), deveriam situar-se no último piso da varanda, localizando-se três camarotes de um lado e do outro do proscénio. Ou seja, o segundo piso alojaria apenas 27 camarotes e haveria seis camarotes na varanda do teatro.

Os testemunhos de dois viajantes que frequentaram o Teatro do Bairro Alto aproximam-se da interpretação do esquema das folhas de receita e do preçário. Richard Twiss, que chegou a Lisboa em Novembro de 1772, descreve numa frase o Teatro do Bairro Alto: «[T]here are four rows [ordens] of boxes [camarotes], twenty-seven boxes in each row» (Twiss, 1775, p. 3); o abade Grosier, por sua vez, oferece mais pormenores no seu relato33:

Il est assez vaste; le parterre [plateia] est divisé en deux; il y a un rang [ordem] de loges [camarotes] qui ne sont guère plus élevées que le parterre, et qu’on appelle frisures [frissuras]. On voit rarement ici des femmes, à moins que la salle ne soie absolument remplie, deux rangs de loges sont au-dessus des frisures, 11 loges de chaque côté, et 5 dans le fond. Du quatrième rang, la moitié seulement (les deux côtés voisins du théâtre) s’appelle loges, le reste se nomme galerie [galeria]. Le souffleur est, comme à l’ordinaire, sur le devant du théâtre, mais il est assez élevé pour être apperçu de tous côtés. (Grosier, 1781, p. 391)

A menção a uma quarta ordem de camarotes no último piso, registada pelo viajante inglês, não se ajusta nem ao preçário do teatro nem à descrição de Grosier. Por sua vez, o terceiro e último piso, segundo Grosier, estaria dividido numa zona de camarotes («rangs de loges») instalados junto ao proscénio – «les deux côtés voisins du théâtre» – e lugares de galeria, coincidindo com a hipótese que localiza as torrinhas no último piso do teatro.

Sobre a arquitectura do espaço teatral, apenas se podem indicar mais algumas pistas, reveladas numa passagem de uma das epístolas de Sulpice Gaubier, espectador do Teatro do Bairro Alto, em 1771. Na vívida descrição de uma noite na ópera, o

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A hipótese clarividente é colocada por José Camões em reunião de trabalho. A par da localização das torrinhas no último piso, o investigador sugere a contabilização dos traços duplos, inscritos nas ditas folhas, e que solucionaria uma aparente contradição das fontes. Assim, no piso das frissuras, acrescentavam-se 3 camarotes, totalizando 27 camarotes; no primero piso acrescentavam-se 3 camarotes, totalizando 25; no segundo piso, retiravam-se os 6 camarotes das ditas torrinhas, totalizando 27 camarotes.

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Colocamos entre parêntesis a tradução dos termos relacionados com a arquitectura teatral, de forma a evitar equívocos nas deduções subsequentes.

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francês menciona a existência de um camarim que dava para a zona da orquestra: «Je passai tout de suite dans la loge de Maria Joaquina qui est sur l'orchestre» (BNP 2). Há referência, ainda, a escadas que ligavam o edifício a um pátio grande, situado nas traseiras: «Louise [Todi] renverse tout ce qui se trouve sur son passage, sentinelle, hommes, femmes, rien ne l'arrête, elle saute les escaliers quatre à quatre et court après son mari presque jusqu'à la porte de la grande cour de derrière» (idem). O testemunho permite, assim, sugerir a posição do edifício teatral entre dois pátios e situado num patamar elevado em relação ao nível do solo.

A sala, como diz Grosier, seria «assez vaste»: possuía uma plateia dividida em duas zonas, «plateia inferior e superior», que estaria rodeada pelas frissura, e mais duas ordens de camarotes. No terceiro piso, encontrava-se a varanda com torrinhas e lugares individuais, pois indica-se no preçário «Varanda, cada lugar». Escolhendo esta zona, os espectadores podiam adquirir os bilhetes mais baratos do teatro. A dimensão da Casa da Ópera do Bairro Alto teria capacidade para receber centenas de espectadores, tanto os habitantes como os visitantes de Lisboa – cidade da corte, onde se concentrava a maior parte da população portuguesa, sede da governação, onde se multiplicavam as ocupações e as profissões, capital de um império e cidade portuária que estabelecia relações comerciais com Ásia, África e as Américas.

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PARTE II – AS TEMPORADAS DO TEATRO DO BAIRRO ALTO

(1761-1775)