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ULISSES COMO HERÓI DO ESCLARECIMENTO

2. O HERÓI TRÁGICO

2.2. ULISSES COMO HERÓI DO ESCLARECIMENTO

Do ponto de vista do ego ou da consciência egóica, as potências inconscientes aparecem como algo superior, externo e transcendente à própria consciência humana, ou seja, como potências divinas ou deuses que interferem nas ações humanas. Assim, a conquista da racionalidade e a emancipação da consciência implicam em uma libertação do homem do domínio dos deuses. Se o sujeito do Esclarecimento define-se pela racionalidade, então o uso da razão para os fins e objetivos do homem foi o instrumento e a arma para efetuar essa libertação, isto é, pelo uso da razão e da astúcia o homem sobrepujou os deuses, que são forças mais poderosas do que ele próprio, nesse processo de racionalização.

Vale salientar que esse processo ultrapassa o Iluminismo ou Esclarecimento ocorrido na Europa a partir do século XVIII e é responsável pela constituição da razão ocidental e de definição do sujeito a partir dela. Uma das figuras exemplares do processo de racionalização é representada pelo personagem Ulisses da “Odisséia” de Homero (Adorno & Horkheimer, 1944/1985). De certa forma, ele pode ser considerado como um herói desse processo, representando um modelo a ser seguido e encarnando os valores relativos a essa visão de mundo racional. Ela precede o Esclarecimento e possui as suas origens entre os gregos, na passagem da consciência mítica para a consciência filosófica, na constituição da cidade grega, da substituição das potências divinas da natureza e dionisíacas pela sociedade hierárquica divina do Olímpio, do elemento dionisíaco da cultura grega pelo imperialismo de Apolo.

Essa passagem possui como etapa de transição as tragédias gregas, onde os elementos apolíneo e dionisíaco são conciliados, mas eles aparecem ainda em um momento anterior, nos cantos ou textos de Homero (séc. IX a.C.), A “Ilíada” e a “Odisséia”, que narram a luta dos gregos contra Tróia. A obra de Homero situa-se entre a epopéia e mito, mostrando o entrelaçamento do mito e do processo apolíneo de racionalização, da constituição de um “ego” ou identidade que suporte e sofra esta racionalidade porque ela nega a multiplicidade, a complexidade do mundo sensível e de sua subjetividade em função da aparência da unicidade e clareza da ilusão apolínea.

Segundo Homero, o responsável pela vitória final dos gregos sobre os troianos foi Ulisses, rei de uma pequena cidade grega denominada Ítaca. Não conseguindo romper as muralhas de Tróia, o plano dele consistiu em simular uma retirada das tropas deixando um grande cavalo oco de madeira como troféu aos troianos, mas no seu

interior estavam guerreiros gregos escondidos. Os troianos trouxeram o troféu para o interior das muralhas da cidade e festejaram a vitória ficando embriagados. Os gregos saltaram do interior do cavalo, abriram as portas da fortaleza para o exército grego penetrar e efetuar o massacre e a destruição de Tróia. Isto atraiu a ira dos deuses gregos, especialmente do deus dos oceanos Poseidon, em direção a Ulisses. A determinação divina era não deixar o rei de Ítaca retornar para sua pátria e para isto colocou diversos obstáculos na jornada de retorno tais como vendavais, sereias, monstros míticos e feiticeiras. A jornada de retorno de Ulisses à sua terra natal e a sua luta contra os deuses é o tema da “Odisséia”. O retorno durou 20 anos, mas com sua inteligência e astúcia ele consegue chegar à sua pátria, mesmo enfrentando a fúria dos deuses, especialmente do deus dos mares Poseidon. A luta de Ulisses contra os deuses para retornar ao seu lar e continuar sobrevivendo representa a batalha do indivíduo contra as potências míticas e da natureza, figurando como um dos modelos de constituição do indivíduo ou como o herói do processo de Esclarecimento que se iniciou entre os gregos (Adorno & Horkheimer, 1944/1985).

O personagem Ulisses é um herói errante e aventureiro, sendo a imagem prototípica de afirmação da identidade do indivíduo e do modelo do herói burguês, e imagem de um personagem com o eu (“ego” ou “identidade”) muito fraco em relação ao seu oponente, mas que inicia a tomada de consciência de si mesmo no confronto, neste caso de Ulisses, com as potências míticas e da natureza. Os obstáculos de sua jornada operam como seduções que desviam o personagem, ou o “ego”, da trajetória de constituição de sua lógica de operação ou funcionamento. A unidade do eu, assim como o personagem, constrói-se e conforma-se a partir dos confrontos, da oposição e da negação da multiplicidade de tudo o que ele não é, ou seja, do que desvia Ulisses de seu caminho. Isto pode ocorrer novamente na forma de aventura ou epopéia em períodos de enfraquecimento da identidade do eu, onde se deve conformar e buscar a si próprio, tal como na época de Homero onde ela é “a tal ponto função do não-idêntico, dos mitos dissociados, inarticulados, que ela tem de se buscar neles” (Adorno & Horkheimer, 1944/1985: 56).

A conformação e a construção da identidade do eu ou do ego racional é realizada através da confrontação com os seres e potências divinas e, para ganhar esta luta, Ulisses utilizou-se da astúcia, pois aceita a sua impotência diante deles, abandona-se à natureza e oferece uma troca na forma de um sacrifício para estes seres mitológicos, o que gera um contexto e uma obrigação para ambos, deuses e heróis. Com isto, ele pode

escapar do seu destino traçado pelos deuses e vencer as batalhas, mas apenas dentro das obrigações conformadas com os seres mitológicos. Na realidade, com a astúcia do sacrifício e da lógica da troca do ritual, Ulisses logra as divindades, pois realiza “uma cerimônia organizada pelos homens com o fim de dominar os deuses, que são derrubados exatamente pelo sistema de veneração de que são objetos” (Adorno & Horkheimer, 1944/1985: 57).

Estas cerimônias subordinam as divindades aos objetivos humanos e dissolvem os seus poderes, pois os homens racionalizam e calculam o sacrifício a ser oferecido em função de seus objetivos e com isto ocorre a negação da potência sobre-humana da divindade. Este logro ou engano que os sacerdotes impõem aos deuses é realizado da mesma forma pelos sacerdotes incrédulos sobre o restante da sociedade e o povo, pois aquele ou aquilo que é sacrificado torna-se semelhante aos deuses. Todo sacrifício implica em uma violência contra os homens e a natureza rompendo o “fluxo natural” dos eventos e a astúcia de Ulisses é “o desdobramento subjetivo dessa inverdade objetiva do sacrifício que ela vem a substituir” (Adorno & Horkheimer, 1944/1985: 59).

A protoracionalidade que aparece na forma da astúcia de Ulisses como uma substituição ou troca do sacrifício por algo subjetivo conforma um eu ou uma identidade do eu que se opõe ao contexto da natureza, mas sempre idêntica a si mesmo e rígida. Desse modo, a racionalidade civilizatória possui um núcleo que dissemina a “irracionalidade mítica”, pois a dominação sobre os outros homens e sobre a natureza que é exigida pela civilização exige a negação da própria natureza no homem e, portanto, “não apenas o telos da dominação externa da natureza, mas também o telos da própria vida se torna confuso e opaco” (Adorno & Horkheimer, 1944/1985: 60). Todos os objetivos de sua existência tais como o progresso material, o desenvolvimento social, perdem sua validade e o domínio do homem sobre si mesmo torna-se a destruição de seu próprio ser, pois o que o homem pretende dominar em seu próprio ser é justamente a sua parte subjetiva e individual que ultrapassa as funções de sua autoconservação e que o torna humano. A civilização se constrói com a introversão do sacrifício e o capitalismo tardio, com a sua sociedade racionalizada e tecnificada, desenvolve ao máximo a função de autoconservação do indivíduo, procurando satisfazer totalmente as necessidades humanas, o que é uma ilusão e irrealizável. Então, o capitalismo passa a exigir um sacrifício de cada indivíduo nesta sociedade, isto é, para se conservar, ele sacrifica a si mesmo e isto já aparece de forma simbólica

na história de Ulisses. Para realizar a sua vontade, ele deve adquirir um domínio sobre si mesmo que é prerrogativa divina; esse domínio é conquistado realizando uma troca como os deuses, na qual ele dá ou sacrifica algo de si, mas os deuses lhe cedem o domínio do seu próprio destino e de sua vontade.

Entretanto, a parte sacrificada de Ulisses pelo domínio e pela vontade é o seu próprio desejo. Essa troca ou sacrifício é explicitado na parte em que ele deve atravessar a ilha das sereias. Elas possuem um canto que seduz os marinheiros e, conseqüentemente, a arrebentar os seus navios nos rochedos quando eles as seguem. Ulisses necessita passar ao lado delas e, para isto, ordena a seus marinheiros que tapem os seus ouvidos com cera, que amarrem ele - o próprio mestre e comandante - ao mastro e que não sigam as suas ordens em hipótese nenhuma. Graças a este artifício, Ulisses ultrapassa o desafio das sereias, mas para isto ele racionalizou o seu comportamento através da repressão do seu desejo atando a si mesmo e garantindo que seus subordinados não o obedecessem. Deste modo, ele suprimiu deles a possibilidade da fruição do prazer do canto da sereia ou de seguir o caminho do desejo. O herói venceu esta etapa, mas sacrificando ou renunciando a parte do desejo de si mesmo, impondo esta renúncia aos seus subordinados e aceitando a superioridade das potências divinas, no caso, as sereias.

Esse modelo de razão representado por Ulisses elimina a subjetividade e o desejo da natureza, consegue as coisas tendo paciência e esperando e “ao preço de seu próprio sonho [...] desencantando a si mesmo bem como a seus poderes exteriores” (Adorno & Horkheimer, 1944/1985: 63). A razão amolda-se a uma natureza morta e apenas instrumental.

As aventuras de Ulisses possuem um modelo pedagógico e evolutivo, pois podem ser comparadas ao confronto do ego em formação com as necessidades das diversas fases da formação ou “evolução” da sociedade: coletoras, caçadoras, agricultoras e estáveis. Além disto, este modelo relaciona a evolução do homem, do ego e da sociedade com a progressiva contenção do desejo e as conseqüências ou punições que advêm da liberação do eu ao impulso do desejo – que exige a constituição inicial de uma memória. Isto já aparece quando em um dos seus primeiros desafios, Ulisses e seus companheiros aportam em uma ilha, mas não devem comer da comida dos seus habitantes: os lotófagos ou comedores de lótus. Quem comer, perde a vontade e a memória. Os marinheiros que não seguem a proibição perdem-se em uma vida primitiva, semelhante aos animais, idílica, colhendo o doce lótus e vivendo o presente

como uma utopia, regredindo a uma etapa anterior da consciência. Ulisses transporta à força para os navios os seus companheiros apanhados nesta armadilha, que se tornaram inertes e ficaram tristes. Contra este espírito emerge a imagem do herói sofredor que deve realizar esta utopia do paraíso com a consciência através do trabalho histórico e não pela regressão, pois a felicidade encerra a verdade e é alcançada pela superação do sofrimento.

O próximo desafio de Ulisses é o povo do ciclope Polifeno, gigante de um olho e filho de Poseidon. Eles vivem sem lei e organização, em cavernas, colhendo o que a natureza lhes oferece em abundância e controlando suas mulheres e crianças, representando a sociedade na etapa dos caçadores e pastores. Nesta etapa, ainda não se configurou uma identidade estável do eu ou um caráter e, deste modo, o comportamento é inconstante, não é capaz de seguir um princípio racional ou lei, pois o pensamento é tortuoso e eventual.

Ulisses e seus marinheiros aportam em uma ilha, penetram na caverna de Polifeno que estava vazia, matam e assam alguns de seus carneiros. O gigante retorna, encontra os marinheiros, fica raivoso e pretende matá-los, mas Ulisses consegue dissuadi-lo disso, prometendo vinho e invocando o princípio da hospitalidade. Polifeno aceita, pretendendo comer os marinheiros e Ulisses mais tarde. Estes trazem vinho para o ciclope, que bebe, fica embriagado e dorme; mais tarde, os marinheiros saem da caverna, escondidos sob a pele de carneiros. Ulisses sai por último e cega o gigante, que acorda e pede por socorro aos outros ciclopes e ajuda para castigar o culpado, mas ele não percebeu que o nome que o rei de Ítaca tinha lhe dito – Ninguém – era falso e induzia ao erro. O bárbaro confunde o nome Ninguém com a coisa Ulisses. Assim, foi o fato de Ulisses renegar a sua identidade que o transformou em sujeito e utilizar uma imitação amorfa, o nome Ninguém, que salva a sua própria existência.

Entretanto, talvez devido ao medo de perder a sua identidade, Ulisses revela seu verdadeiro nome, gritando-o. Ele sucumbe à hybris e, como conseqüência, atrai a ira de Poseidon, sendo o seu navio quase atingido pelas pedras arremessadas por Polifeno, que embora cego localiza-o por seus gritos. Isso aponta para o fato de que o discurso da astúcia é incapaz de se deter, assumindo um aspecto de loucura maníaca, na qual o sujeito é possuído pela racionalidade como uma hybris e acessa a realidade pelo discurso. O discurso racional defende-se da realidade por um movimento contínuo, pois se parar ele pode ser dominado pela força da realidade.

Um desafio posterior é representado pelo encontro com a feiticeira Circe que remete à fase mágica, onde o ego ou o eu é desintegrado, dissolvendo o sentido do tempo e da memória. Ao aportar na ilha da feiticeira, os marinheiros são transformados em porcos, representando o abandono dos homens à sua pulsão instintiva, exceto Ulisses que recusa as oferendas sexuais e prazerosas advindas dela. Circe apresenta-se como ambígua, pois realiza a felicidade dos homens, mas destrói a autonomia e individualidade de quem recebe a sua felicidade, fazendo-os regredir. Ao recusar a feiticeira5, Ulisses pode dormir com ela sem se transformar em animal, o preço para o seu prazer é a negação inicial do mesmo, assim, “a força de Circe, que submete e reduz os homens à servidão, converte-se na servidão do homem que, pela renúncia, recusou a submissão” (Adorno & Horkheimer, 1944/1985: 75).

A última etapa da jornada é a transposição do Hades, o reino dos mortos, onde eles existem apenas como imagens. As primeiras almas que aparecem para Ulisses são as imagens matriarcais, de antigas heroínas e da mãe, mas ele recusa a realidade dessas imagens, pois as reconhece apenas como aparências e se afasta delas. Isto apenas é possível ao indivíduo que já é senhor de si e que, deste modo, pode reconhecer a falsa realidade do mundo das imagens.

Como último obstáculo, Ulisses realiza um sacrifício destinado a acalmar a ira de Poseidon e possibilitar o retorno para o seu lar ou sua pátria-mãe. Foi justamente a saudade da sua pátria como um ponto fixo de sua existência que impediu o rei de ser engolido pelo mundo primitivo. A fixação do homem em um local e a ordem fixa da propriedade gerou a alienação dos homens e também a noção de pátria-mãe e de lar, as quais recebem a nostalgia e a saudade de um estado originário perdido que se fixou nestas imagens.

A trajetória de Ulisses mostra bem o processo de emancipação do homem da natureza externa e interna através do uso da razão que acaba sendo uma forma de astúcia para enganar os deuses ou as potências naturais percebidas como superiores ao homem. Para isto foram necessários o controle do desejo e a instituição de procedimentos rituais racionalizados de troca com as divindades, tais como o sacrifício. Assim conformado, o indivíduo possui enfatizadas apenas as suas funções de autoconservação e sacrifica partes de seu próprio desejo, pois está separado da

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A feiticeira representa a última hetaira e o primeiro personagem feminino, tornando-se impotente na medida que, apenas com a mediação masculina, lhe é concedido o poder. Como hetaira, ela é subjugada

natureza e do fluxo espontâneo dos eventos. Ele termina por possuir uma identidade rígida e que é semelhante a si mesmo apenas e, tendo perdido a noção da finalidade de sua própria vida, vivendo apenas da ilusão apolínea, o indivíduo desenvolve um anseio disperso e fugidio pelo retorno à unidade primordial com a natureza, uma integração que implica em sua dissolução e o contato com o elemento dionisíaco da vida.

pelo papel de esposa e só retoma as relações de posse vendendo o prazer, adaptando-se a ordem patriarcal (Adorno & Horkheimer, 1944/1985).