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A transferência com ênfase no processo de construção situada do

1 INTRODUÇÃO

2.5 A transferência de conhecimento

2.5.2 A transferência enfatizando o conhecimento como um processo de

2.5.2.3 A transferência com ênfase no processo de construção situada do

Quando o conhecimento é pensado como um ativo intangível, um recurso do qual podem advir vantagens competitivas, algo que admite ser estocado e como posse, tem-se a transferência como um processo decidido, formalizado, planificado.

Porém, quando o conhecimento é tomado como um processo emergente, aleatório, dinâmico e nascido das interações entre o sistema físico e o dos atores, outras considerações são necessárias e, como conseqüência, a transferência admite características diferenciadas.

O conhecimento organizacional criado pelas interações e por intermédio de processos de aprendizagem distribui-se socialmente através do tempo e do espaço alocando-se nos atores, nas práticas, nos artefatos e nos símbolos que surgem como meios de transferência através dos indícios de ação de que são portadores (BERTHON, 2004, p. 78).

Essa propriedade acionável entre o mundo e o indivíduo, nomeada como affordance é evidente unicamente no contexto de interação com o mundo. O conceito dá o sentido elementar de como algo, podendo ser algo material, design ou situação, dá indícios de utilização ou ação se percebidas algumas de suas características (GIBSON, 1986).

Affordances dinâmicas, ou seja, coisas que podem ser aprendidas somente quando se as está fazendo, e o ato de aprender, têm um papel essencial em explicitar como o conhecimento, explícito ou tácito, individual ou de grupo é gerado, transferido e utilizado nas organizações. Estas atividades adquirem um aspecto e sentido para aqueles contextos organizacionais, ou seja, mais do que ações, elas se transformam em práticas. Em decorrência, entender como é o conhecer nas organizações requer entender o efeito entre a epistemologia da posse, que se refere ao conhecimento como conteúdo, e a epistemologia da prática, que remete ao fato de que o conhecimento se constitui no processo, tanto do fazer na prática como do ato de conhecer o que é feito (COOK e BROWN, 1999, p. 390). No Quadro 2 apresenta-se um comparativo entre as abordagens da transferência com ênfase no conteúdo e no processo de construção do conhecimento.

Quadro 2 - Comparativo entre as abordagens da transferência com ênfase no conteúdo e no processo de construção do conhecimento

Aspectos Transferência baseada no

conteúdo processo de construção do Transferência baseada no conhecimento

Objeto de análise conteúdo objetivado do

conhecimento: explícito, tácito, individual e coletivo

uso do conhecimento como ferramenta de integração com o mundo, dependência cultural

Características do

conhecimento possível de ser difundido, transferido, acumulado, convertido, estocado e controlado

emerge do processo, é construído em interação com o contexto, é uma ação resultante da interação ator/situação

Caráter do conhecimento

estático, individual, deliberado emergente, dinâmico, situado em um contexto sóciocultural

Local de estocagem do conhecimento

memória de longo termo atores sociais, artefatos e contexto

Características da

transferência processo decidido, formalizado, planificado, centrado na natureza e conteúdo do conhecimento

processo dinâmico, contínuo, ancorado nas interações entre o sistema físico, atores sociais e condições do contexto

Prescrição determinante da ação estrutura mas não determina a

ação

Decisão de ação depende dos limites das

estruturas cognitivas através das quais a informação é tratada. A prescrição é o elemento central para a execução da tarefa

depende da interação com a situação, é fruto de posições interpretativas. Representações e situação se articulam na ação, objetivando estruturar a execução da tarefa

2.6 Considerações finais do capítulo

Com este capítulo subsidia-se teoricamente a proposta formulada para a tese. Partindo-se de conceituações de tecnologia e transferência de tecnologia, focaliza- se a questão do conhecimento que a constitui e a importância de sua decodificação para que dela se aproprie quem a recebe. O tópico abordado deu suporte para introduzir a discussão sobre antropotecnologia, um breve histórico e estudos e a apresentação de um modelo proposto para estudos que a contemplam.

Para enfatizar aspectos situados da transferência de tecnologia, incluiram-se tópicos sobre a ação e cognição situadas e sobre o suporte cultural da cognição, sinalizando o conhecimento que pode ser extraído da situação e em situação. Uma vez que o alvo do trabalho é a identificação e explicitação do conhecimento tácito utilizado pelos ostreicultores no cultivo de ostras, a fim de facilitar a sua transferência a outras regiões produtoras, aborda-se a questão da transferência de

conhecimentos com enfoque no conteúdo e também a importância do contexto situacional para a construção do conhecimento.

As duas perspectivas são apresentadas a fim de dar conta operacionalmente das questões relacionadas à transferência da tecnologia conhecimento – enfoque no conteúdo – e para atender a questões conceituais, relacionadas à construção do conhecimento na mesma – enfoque no processo.

Na seção 2.5.1, que trata da transferência do conhecimento com enfoque no conteúdo, verificou-se a conversão do conhecimento tácito em conhecimento explícito. Na seção 2.5.2, sobre a transferência do conhecimento enfatizando seu processo de constituição, verifica-se um entendimento de que existe um conhecimento que permanece enigmático, situado, encarnado nos artefatos e práticas, implicando em saber, na prática, como se refere Berthon (2004, p. 78), “como ser competente na ação ancorada em um ambiente de aplicação” mais do que em fazer uma distinção entre sujeito e objeto.

Pela bibliografia levantada e buscando um entendimento pelo recorte das correntes situadas da cognição, algumas considerações podem ser tecidas. O conhecimento da/na prática corresponderia ao conhecimento distribuído ao longo do tempo, pré-reflexivo, implícito nas tecnologias, elemento que atualiza e ao mesmo tempo remete à origem, faz a ligação tempo-espaço, porta a experiência e sinaliza o domínio de determinadas ferramentas, técnicas, usos e costumes, preferências e estilo de vida. Talvez o lado corrente a que se refere Daniellou (1996, p. 1) como consta na sua citação escolhida para abrir o Capítulo 1 da Introdução:

Lado corrente, ei-los ligados a sua própria história, a seus corpos que aprendem e envelhecem; a uma multiplicidade de experiências de trabalho e de vida; a vários grupos sociais que lhes oferecem saberes, valores, regras com as quais eles compõem dia após dia; aos próximos também, fontes de energia e de preocupações; aos projetos, desejos, augústias, sonhos...

Assim descrito, esse conhecimento da prática guardaria uma linguagem própria, construída em seu fazer em situação, compreendida tacitamente, no diálogo estabelecido em sua realização.

Dizer sobre a prática, explicitá-la, também utiliza uma linguagem, embora os elementos para o entendimento do sentido encontrem seu estatuto em uma ordem mais estável, mais organizada, mais planificada, mais generalizável, possibilitando atender aos objetivos de transmitir o saber que dela procede. Nesse processo,

busca-se estabelecer uma diferenciação entre o sujeito do fazer e o objeto a conhecer. Talvez o lado trama a que se refere Daniellou (1996, p. 1) na citação escolhida para a abertura do Capítulo 1:

Em sua atividade, os homens e as mulheres no trabalho tecem. Lado trama, os fios os ligam a um processo técnico, a propriedades da matéria, às ferramentas ou aos clientes, a políticas econômicas – elaboradas eventualmente em outro continente – a regras formais, ao controle de outras pessoas...

Pensar a prática, refletir sobre ela, inclui mobilizar os processos de pensamento e de linguagem, articulados em um sistema funcional mais complexo, e que permite interpretar e ordenar os dados do mundo objetivo por meio de símbolos e representações. Então, relacionando com o que Wisner (1997a, p. 234) e Vygostky (1998a e 1998b) afirmam, ao pensar-se sobre a prática e explicitá-la utilizando a linguagem, que é um instrumento psicológico favorecido pelas interações humanas no decorrer da história num continuum cultural, ao mesmo tempo em que se reorganizam as funções mentais superiores, como a memória, por exemplo, é possível deslocar essa construção de conhecimento no tempo e no espaço.

Ao agora da ação sobre a natureza ou artefatos, pela mediação das representações, do que é explicitável, podem ser trabalhadas as condições desse deslocamento do conhecimento situado no espaço e tempo e, como conseqüência, para a proposição deste trabalho, para a transferência de conhecimentos requisitados no cultivo de ostras, sejam eles relativos ao conteúdo ou processo.

Algumas repercussões advindas deste processo: a) socializar o conhecimento pela explicitação contribui para a sua propagação, para a evolução tecnológica e, em decorrência, para a evolução social e cultural, devolvendo ao meio, seja acadêmico ou ao setor produtivo, um novo artefato, a ser decodificado, e que ainda assim guarda aspectos implícitos; b) um outro componente surge: a des- territorialização de um saber antes encarnado no fazer, na prática, e que poderia ser relacionado com o que Daniellou (1996, p. 1) chama de duplo resultado do trabalho, constante na citação escolhida para a Introdução no capítulo 1:

O resultado do trabalho também é duplo. De um lado, com efeito, as produções são elaboradas, carregam a marca discreta do operador ou da operadora, mas serão sem dúvidas comercializadas sob um outro nome, contribuindo assim para a sobrevivência de uma empresa ou de um serviço público. De outro lado, eis que, ao mesmo tempo, se produzem novos

vínculos, novas experiências, transformações do corpo e de saberes, disponíveis para serem tecidos na obra de uma vida.

Com relação a este trabalho, poder-se-ia associar esse aspecto com o que se espera com o processo de explicitação do conhecimento: demonstrar a possibilidade de fazê-lo utilizando a ergonomia e a abordagem antropotecnológica, os aportes da cognição situada e o apoio dos mapas cognitivos.

Com a explicitação dos conhecimentos utilizados pelo ostreicultor no cultivo de ostras e evidenciados na análise da atividade possibilitando a transferência a outras regiões produtoras, acredita-se que novos vínculos possam ser formados e com repercussões em diferentes setores: sociais (na rede: maricultores, consumidores, cooperativa, associações), culturais (maricultores, núcleos ou países que compartilham a mesma tecnologia), científicos (centros de pesquisa e universidades), serviços (órgãos de difusão tecnológica, serviços de apoio e assistência técnica, comércio, transporte, turismo, gastronomia) e também relativos a políticas públicas no âmbito da educação, saúde pública, legislação entre outros.

Resumindo, algumas considerações podem ser estabelecidas: a) a transferência de conhecimentos constitui-se como um processo que se opera continuamente entre atores, sistemas de atividades e situação; b) os atores negociam na ação e pela linguagem o sentido que atribuem à sua atividade; c) a negociação é intermediada por objetos ou humanos que delimitam a atividade e d) o ato de conhecer, de extrair da prática situada um conhecimento sistematizado possibilita transferir elementos que auxiliam a estruturar a ação em outros contextos culturais na medida em que explicita como os atores utilizam as circunstâncias para dar conta de executar suas tarefas e não como aplicam as suas estruturas cognitivas para dar conta de situações particulares.

3 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS E DESCRIÇÃO DA