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1 INTRODUÇÃO

2.3 Antropotecnologia

2.3.1 Breve histórico da antropotecnologia

Já no início dos anos sessenta, Wisner acredita que a ergonomia não possa ser construída sobre uma problemática experimental, trabalhada em laboratório. Observa que, afastada dos aspectos que interferem e compõe a situação de trabalho, os resultados obtidos podem constituir-se em recomendações normativas. No laboratório de fisiologia do trabalho do Conservatoire National des Arts e Métiers

– CNAM, focaliza sua atenção sobre as questões colocadas pelo sistema de produção nas condições de trabalho, e traça planos científicos para estudá-las e a suas relações na análise da atividade, tendo em consideração o contexto técnico, organizacional, social e econômico (LAVILLE, 1997, p. 225).

Em 1971, no texto A quel homme le travail doit-il être adapté?1 Wisner demonstra sua preocupação em reconhecer a diversidade dos trabalhadores, visão diferenciada daquela do modelo taylorista, para quem os operadores humanos eram tidos como intercambiáveis, estáveis, desprovidos de história pessoal e seguidores, sem questionamentos, de regras e procedimentos editados por outros (LAVILLE, 1997, p. 226).

Em viagens realizadas a países em desenvolvimento, na década de 1980, Wisner depara-se com situações onde ocorreram transferências de tecnologia e com as ilhas antropotecnológicas, onde foram desconsiderados o ambiente e populações locais. Essas constatações, e a orientação, nas décadas de 70 a 90, de estudos que registraram particularidades determinantes do sucesso ou insucesso da tecnologia transferida ligadas a aspectos mais abrangentes que aqueles circunscritos ao âmbito do local de trabalho, ampliam seu entendimento sobre a inter relação da diversidade das características físicas, culturais, sociais e econômicas da população de trabalhadores com aquela dos ambientes técnicos, geográficos e econômicos sobre a tecnologia (WISNER, 1985, 1994 e 1997a).

Dentre os estudos citados por Wisner (1985, 1992, 1994, 1997), encontram- se aqueles de Sinaiko (1975) sobre a interferência da qualidade da tradução de manuais para a manutenção de material militar americano por operários vietnamitas; Meckassoua (1986) sobre a não-adaptação de sistema automatizado de uma cervejaria transferido da França e operado manualmente em Bangui; Sagar (1989) sobre a rotatividade de técnicos em uma indústria de papel transferida da França para a Tunísia, dificultando a aquisição de competências e sobrecarregando cognitivamente os trabalhadores locais; Aw (1989), sobre dificuldades originadas de diferenças culturais entre os dirigentes e aquelas com origem no contexto industrial e geográfico, em estudo realizado no Senegal em uma usina de tratamento de fosfato transferida da França; Rubio (1990) sobre conseqüências da retenção de saber por

1 O autor refere-se ao texto: WISNER, A. et MARCELIN, J. (1971). À quel homme le travail doit-il être adapté? Paris: Laboratoire de Phisiologie du Travail-ergonomie du CNAM, rapport n. 22.

fornecedores de telefones filipinos; Kerbal (1990) sobre dificuldades relacionadas ao contexto geográfico, industrial e social-demográfico, em estudo em indústria de papel transferida da França para a Argélia; Langa (1993) em uma fábrica de mistura de óleos de petróleo, transferida da França e implantada no Congo, estuda a diversidade das atividades desenvolvidas por um gerente; estudo realizado por Madi (1996) em uma indústria de cimento com tecnologia transferida da França para Argélia enfatiza as competências coletivas adquiridas.

Geslin (1997), mais contemporâneo, estuda com abordagem antropológica, transferências de tecnologia com demandas formuladas por parceiros sociais (ONG, produtores de sal na Guiné e de açafrão em Lot). Na Guiné, o objetivo da intervenção foi conceber, em colaboração com os produtores soussou, uma técnica que atendesse necessidades da população e do contexto sociotécnico, questionando as escolhas técnicas feitas pelos agentes de desenvolvimento. São aatendidos três objetivos centrais: o ecológico, social e o econômico. O conjunto de dados para a realização do projeto surgiu da análise de práticas em situação e enfatizou que a escolha técnica constitui-se em escolha social e que as relações entre o grupo social e seu ambiente passam necessariamente pelas atividades técnicas e os saberes que as envolvem. O pesquisador (1999, 2002) descreve a interdependência das atividades afirmando que a mudança em uma técnica repercute em domínios insuspeitados em uma sociedade.

Os primeiros estudos adotando a abordagem antropotecnológica realizados por pesquisadores brasileiros, estudantes no CNAM, e orientados pelo Professor Alain Wisner, são os desenvolvidos pelo Professor Neri dos Santos (1985) e Júlia Abrahão (1986).

Santos (1985) verifica, com a análise de movimentos dos olhos e as comunicações, em pesquisa comparativa entre controladores de tráfego do metrô no Rio de Janeiro e em Paris, que na ocorrência de incidentes, a diferença de comportamento entre os controladores era determinada pela experiência de trabalho anterior na condução de trens. Como os controladores parisienses ascenderam à função após terem atuado como condutores de trens de metrô, conhecem na prática a situação de trabalho a que se referem os controles, o que lhes possibilita uma ampla representação mental sobre todo o processo. No caso dos controladores brasileiros isso não ocorre porque foram recrutados para a função de controladores e seus treinamentos foram realizados em sala de controle, o que interfere na

constituição da representação da situação real e na antecipação, em caso de incidentes.

Abrahão (1986) estuda o funcionamento de duas destilarias de álcool de cana-de-açúcar situadas em regiões distintas do Brasil e que utilizam tecnologia nacional e constata diferenças de êxito ligadas à forma de gestão do empreendimento, densidade do contexto industrial, infra-estrutura de transporte, distância entre a matéria-prima e destilaria e de possibilidades de recrutamento de mão-de-obra.

Estudos utilizando a abordagem antropotecnológica, na Universidade Federal de Santa Catarina, são realizados inicialmente por Proença, em 1996. A pesquisadora estudou comparativamente unidades de referência na produção de alimentação coletiva localizadas na França e no Brasil, após a implantação de inovações tecnológicas, considerando especialmente os aspectos organizacionais. Evidenciou que as condições técnicas de trabalho na situação brasileira sofrem repercussões pelas carências do contexto industrial e que as condições organizacionais estavam em processo de adaptação, devido à influência exercida pelos contextos industrial, social e demográfico. O trabalho possibilitou verificar que para a utilização de novas tecnologias há necessidade de desenvolvimento de fornecedores, matérias-primas e equipamentos.

Dutra (1999) propôs o desenvolvimento de um modelo de avaliação em processos de transferência de tecnologia, tendo por base as abordagens antropotecnológica e da análise de custo/benefício acrescendo aos aspectos quantificáveis desta última a consideração sobre os fatores humanos e a influência dos contextos no funcionamento da tecnologia.

A pesquisa foi realizada em uma situação de referência localizada em São Paulo, que emprega tecnologia francesa semelhante àquela a ser transferida para modernizar um instituto de análises laboratoriais ligado à Polícia Técnico-Científica do Estado. Evidenciaram-se na situação catarinense dificuldades relacionadas ao contexto industrial, geográfico-demográfico e sociocultural que podem incidir sobre o sucesso da tecnologia a ser transferida.

Sousa (2001) analisou comparativamente o trabalho do dietista/nutricionista em unidades de alimentação e nutrição hospitalares no Brasil e na França, objetivando formular parâmetros para subsidiar a adaptação de tecnologia

relacionada à gestão dos cuidados nutricionais para a realidade brasileira. A pesquisadora evidenciou maiores desafios com relação a aspectos do contexto social e demográfico brasileiro, ligados ao baixo investimento em saúde, dificuldade para acesso aos bens de consumo, nível de formação dos operadores, mudanças no comportamento alimentar e envelhecimento populacional, porém constatou que o contexto industrial encontra-se em evolução, os nutricionistas são experientes e apresentam formação qualificada.

Os estudos realizados denotaram a importância de se ter em consideração os aspectos situados, estejam eles ligados aos contextos mais globais como o geográfico, demográfico, industrial, sociocultural, como a questões mais específicas relativas ao homem na situação de trabalho. Os aspectos abordados nos estudos antropotecnológicos, mais que interferirem de uma situação exterior, constituem-se em elementos que se interrelacionam com as decisões tomadas pelos operadores.

Segundo Geslin (2006, p. 150, 151), a antropotecnologia contemporânea reúne um conjunto de campos disciplinares com bases conceituais próximas daquelas da “antropologia das técnicas”. De um ponto de vista epistemológico, as transferências de tecnologia, segundo o autor, possibilitam investir em uma forma de “antropologia de passagem”, integrando no campo de pesquisa atores que inscrevem suas ações entre dois mundos, ampliando a tradicional relação entre quem concebe e quem utiliza a tecnologia.

O autor assinala que a antropotecnologia posiciona-se progressivamente entre as ciências humanas e sociais, tendo o reconhecimento de instituições européias como, por exemplo, Universidade de Neuchâtel e Escola de Altos Estudos em Ciências Socias de Paris. Na primeira universidade, no Instituto de Etnologia, há cursos e seminários de formação para a prática no domínio da antropotecnologia. Na segunda, ocorrem conferências sobre seus objetos e métodos, trabalhando com suas bases conceituais.

O enfoque inicial dado por Wisner, e coerente com os debates da época, passa por algumas alterações. As relações entre as ciências sociais e as técnicas evoluíram conceitualmente, bem como as políticas relacionadas ao desenvolvimento tecnológico, as novas formas de circulação de práticas e objetos técnicos para além dos espaços delimitados pelas fronteiras territoriais e geográficas.

Com as mudanças tanto do ponto de vista científico como político nos últimos vinte anos, novas questões são formuladas sobre o lugar ocupado pela

antropotecnologia. Se tomada como uma disciplina emergente, é complexa a constituição de sua epistemologia pela quantidade de disciplinas convocadas por Wisner em sua formação. Se considerada como uma tecnologia, então, um deslizamento teórico se impõe. Uma hipótese seria que a antropologia das técnicas, poderia pretender constituir-se em campo de referência conceitual para a antropotecnologia e, suas modalidades de intervenção poderiam ser compostas pelo conjunto de campos disciplinares que a formam (GESLIN, 2006, p. 150-151).

As transformações constituem-se em oportunidades, segundo o autor, tanto para o programa antropotecnológico como para a antropologia das técnicas, porém, atuar no domínio das transferências de tecnologia exige refletir sobre o científico e o político na prática antropotecnológica. À antropotecnologia, concebe Geslin (2006, p. 151), cabe contribuir para a resolução de problemas colocados pela sociedade, o que vincula situações de grande complexidade, onde estão mescladas questões éticas, culturais, econômicas, tecnológicas e políticas.

2.3.2 Modelo de análise proposto para estudos utilizando a abordagem