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Capítulo 2 – O processo de transferência na aprendizagem de línguas

2.4.3. A transferência lexical ou empréstimo

Andrade denomina de transferência lexical ou empréstimo a transposição de lexemas ou unidades lexicais de uma língua para outra. E define este fenómeno como:

a transferência de unidades lexicais (lexemas simples, inteiros ou modificados) de uma língua para outra, assentado fundamentalmente em três tipos de procedimentos discursivos: na tradução literal, na estrangeirização de palavras e/ou na criação de novas palavras, procedimentos estes que remetem para a influência que uma dada língua exerce sobre a outra. (1997:…)

Convém notar que, em situação de contacto de línguas, estes procedimentos são reversíveis, isto é a LM influencia a produção em LNM, e a aprendizagem desta influencia a produção em LM. Por isso em Cabo Verde ouve-se falar do aportuguesamento do crioulo, ou seja, do fenómeno de descrioulização, assim como muitos professores caracterizam o discurso dos alunos como sendo um crioulês, isto é, palavras portuguesas pronunciadas com o sotaque da LCV e respeitando as regras morfo-sintácticas desta.

Assim, Odlin, por exemplo, utiliza o termo “borrowing” para significar a influência que tem uma língua alvo numa língua fonte, esta já adquirida, e a expressão "substratum transfer" para significar a influência de uma língua fonte, normalmente a LM, na aquisição de uma língua alvo (1989: 12). O que justifica falar de influência translinguística.

Na aprendizagem de uma LNM o aprendente substitui lexemas ou vocábulos que pretende enunciar em LE por aqueles que julga serem equivalentes em LM. O desenvolvimento de uma competência em LNM atenua a influência da LM sobre a LNM e clarifica o significado dos lexemas dentro da LNM. Assim, o aprendente vai-se libertando, paulatinamente, da necessidade de recorrer à LM, aumentando a probabilidade de, conscientemente, alternar os dois códigos em presença no seu repertório linguístico. Estamos cientes de que, principalmente no início da aprendizagem de uma LNM, a LM exerce uma influência muito maior sobre a LNM do que ao contrário. Porém a convivência entre as línguas continua activa. Estudos mostram que no início da aprendizagem de uma LE os alunos são mais rápidos na tarefa de tradução do que na tarefa de nomeação e, por

isso, recorrem com mais frequência a associação de representações semânticas com as palavras da LM (Kroll & Sholl, 1992, Altarriba, 1992; Chen, 1992, in Andrade 1997).

A transferência lexical ou empréstimo é muitas vezes relacionada com a competência referencial, abrangendo conhecimentos temáticos dominados pelos sujeitos e relacionados com um dado campo semântico e lexical. (cf. Dubois et al, 1994: 423; Lavaur, 1995). Neste domínio verificamos que os campos semânticos e lexicais onde o aluno mais recorre à LM são os que estão ligados ao seu quotidiano às suas emoções, aos aspectos da sua cultura e da sua vivência diária.

Andrade defende que o empréstimo, para além de constituir uma estratégia pessoal de resolução de um problema comunicativo, aparece ainda como um fenómeno de evolução linguística. Por exemplo o crioulo de São Vicente emprestou termos ingleses como boy, filling, nice, que são usados correntemente, pois, os empréstimos foram adaptados pela sociedade que compartilha o seu sentido e os usa diariamente. Razões como a permanência dos ingleses nas companhias de carvão sedeadas em São Vicente determinaram esses empréstimos. Enquanto processo colectivo, se a palavra emprestada vai conviver com outra com o mesmo significado, e já existente, uma delas terá que se especializar, enquanto a outra pode cair em desuso. (Romaine 1986: 65). Se o sentido é novo para a comunidade que faz o empréstimo, então nasce a possibilidade de exprimir uma noção ou um objecto que, até então, não possuía. Aqui evocamos palavras do campo semântico das novas tecnologias de informação e comunicação como Internet, computador e telefone que entraram para a nossa realidade ao mesmo tempo que as respectivas realidades. Mas o empréstimo, para além de constituir uma estratégia pessoal de resolução de um problema comunicativo, aparece ainda como um fenómeno de evolução linguística, já que as línguas naturais emprestam itens lexicais umas às outras, normalmente para se referirem a experiências que não provêm das comunidades que as utilizam (cf. Auer, 1987; Corder, 1992: 26; Hatim & Mason, 1990: 27; Hazael-Massieux, M. C., 1993; Hoffman, 1991: 101-102 in Andrade 1997).

Na formação da LCV, a maioria das palavras foram transportadas e assimiladas através de um processo colectivo e reorganizadas numa estrutura própria. Esta realidade nos impondo alguma ressalva, ao falarmos de empréstimos que é uma das formas de transferência, já que a transferência é definida como uma estratégia individual. Este fenómeno é o resultado da forte presença portuguesa em Cabo Verde ao longo do processo

de formação do crioulo, do domínio que o grupo exerceu sobre os outros durante o regime colonial, do facto da alfabetização/instrução se processar nesta língua e ainda devido a frequência da exposição de um grupo bastante heterogéneo, em termos linguísticos, à LP, através da escola e dos meios de comunicação social, fazendo com que a LP fosse a língua de domínio científico-cultural e político-institucional. Por isso faz sentido falar de empréstimo lexical, enquanto processo individual de interacção e enquanto fenómeno linguístico integrado na língua que o aprendente usa, sendo o primeiro, individual, e o segundo, colectivo (Andrade 1997).

Para nos certificarmos de que o empréstimo é uma transferência lexical, temos de procurar nas palavras do interlocutor a confirmação de uma procura lexical, os traços de operações de reformulação ou de tradução que envolvem as línguas em contacto. Se o importante é observarmos como é que os sujeitos relacionam as duas línguas nas operações de comunicação, o empréstimo ou transferência lexical identifica-se com uma operação de alternância ou de mistura de códigos (Morsly, 1991).

Uma vez que somos uma língua de base lexical portuguesa, penso que o empréstimo tem funcionado e continua a funcionar como um processo de enriquecimento lexical e a nossa maior fonte de empréstimo contínua sendo a LP. A LCV e a LP têm muitas palavras cognatas o que nos permite fazer referência a experiências que não provêm das nossas comunidades. Outro tipo de transferência, com Características diferentes dos que já vimos, é a transferência comunicativa, da qual nos ocuparemos no ponto que se segue.