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Atitudes e representações sobre o fenómeno de transferência línguístico-

Capítulo 5 – Análise interpretativa dos dados

5.2.3. Atitudes e representações sobre o fenómeno de transferência línguístico-

Começando pelo conceito de transferência, notamos, antes mesmo das entrevista, em conversas informais e em pesquisas feitas anteriormente e da nossa própria experiência como professores de língua portuguesa neste contexto, que o conceito de transferência não é conhecido no nosso meio escolar. A noção de transferência é trabalhada sob a designação de interferência. Portanto, para os professores que entrevistamos, o que designamos de transferência eles designam de interferência, ou seja, para eles, transferência é igual a interferência, isto é, só conhecem a transferência negativa. Vimos já que o conceito de transferência e interferência são muitas vezes utilizados de forma indistinta e que Weinreich (1953) introduz uma nova orientação à problemática, ao utilizar o termo interferência para se referir à transferência negativa, conceito que ele considera muito mais interessante que o de transferência dita positiva, entendida como “the facilitating influences that may arise from cross-linguistic similarities” (cf. Carvalho 2004; Andrade 1987; Pinto 2005)

a) O caso do professor P01

Para P01 a transferência é um expediente que o aluno usa para transmitir aquilo que tem a dizer, de uma forma quase natural. Acha que este processo linguístico é positivo na aprendizagem. Neste particular, a posição de P01 vai de encontro com a dos cognitivistas que encaram a transferência como uma estratégia usada pelo aprendente na construção da sua interlíngua e que consiste em recorrer, sempre que possível, a conhecimentos prévios (cf. Kellerman & Sharwood Smith, 1986; Kohn, 1986; Odlin, 1989; Sharwood Smith, 1986, in Andrade 1997). Questionada sobre o discurso híbrido do aluno que recorre à transferência, o professor responde que: “isso é normal, nós verificamos isso constantemente e, por vezes, naturalmente, temos que parar para mostrar um pouco a diferença e vou chamar a atenção, não de forma que possa ferir a sua sensibilidade, mas de forma a mostrar que, em língua portuguesa, a forma mais correcta seria diferente, por exemplo, da forma por ele utilizada”. Notamos aqui que o professor, para ajudar o aluno a desenvolver a sua competência linguístico-comunicativa, aproveita o discurso do aluno e faz a análise contrastiva entre as duas línguas, clarificando a especificidade de cada uma sem menosprezar a LM do aluno, conforme as próprias palavras do professor, a cima enunciadas. Portanto, a representação que o professor tem do fenómeno de transferência é uma representação positiva, representação que é uma verbalização de uma prática. A representação que o professor tem do fenómeno permite que ele não seja hostil com os seus alunos, que tenha uma atitude estimuladora da produção verbal, visto que, está sempre preocupado em não provocar o acanhamento do aluno, tendo a clara consciência de que desvalorizar a LM do aluno é uma atitude que o inibe. Desta forma, acha que trabalhar pedagogicamente as transferências é melhor do que hostilizá-las.

b) O caso do professor P02

Verificamos que P02 tem uma representação negativa da LM, da sua introdução no sistema de ensino e, consequentemente, do processo de transferência. Daí que as atitudes face a este fenómeno, também, sejam negativas e conduzam à inibição e ao acanhamento do aluno e, até, a uma certa revolta. Vejamos registos deste facto no seu discurso: “Eu sinto quando falam, por exemplo, em crioulo, eu peço que repitam a frase, mas em

português, às vezes os meninos até dizem: ”óh professor então eu não falo, então eu não falo”.

Questionado sobre se o processo de transferência linguística é um processo que facilita ou dificulta a aprendizagem da LP o professor responde: “(…) não sei se facilita ou se dificulta, mas eu acho que dentro da sala de aula devíamos falar a língua portuguesa.” P02 demonstra uma espécie de intolerância relativamente à transferência e, mesmo sem saber se esta facilita ou se dificulta a aprendizagem, continua firme na sua posição de que dentro da sala de aula se deve falar a LP. Não encara a transferência como um fenómeno intrínseco ao processo de aprendizagem de línguas numa situação de línguas em contacto. Não vê que é impossível que alunos do 8.º ano que tenham como LM a LCV, que sempre falaram o crioulo, isolem, no seu repertório lingüístico, o seu único instrumento de comunicação para impedir que este influencie a produção lingüística em LP, (cf. Hagège, 1996; Coste, Moore e Zarate, 1997)

“Eu penso que isto também, o facto dos alunos introduzirem o crioulo ao falarem português, introduzirem o crioulo, penso que prejudica, prejudica muito a aprendizagem sim, prejudica muito.”

Com este discurso concluímos que, para P02, a transferência linguístico-comunicativa é prejudicial à aprendizagem e por isso deve ser evitada. Como vimos anteriormente ele chamava a atenção para o facto de todos os professores terem de tentar fazer com que os alunos parem com esta prática:

(…) então nós, a escola, temos que fazer com que os alunos parem com isso, principalmente nós os professores de língua portuguesa. Mas não apenas os professores de língua portuguesa, os outros professores também, porque também dão aulas em língua portuguesa e, de certeza, que os alunos também falam em crioulo. Então, vejo que os outros professores devem fazer com que os alunos exprimem em português dentro da sala.

Até aqui vimos a representação de P02 sobre a transferência e concluímos que esta é muito distinta da que tem P01. Como vimos atrás, a representação determina a atitude e esta, por sua vez, guia as práticas. Muito próximo das atitudes e das representações de P02 sobre o fenómeno de transferência estão as atitudes e as representações de P03 que passaremos de seguida a analisar.

c) O caso do professor P03

Assim como P02 P03 também tem uma representação negativa do fenómeno de transferência lingüístico-comunicativa. Questionado sobre o impacto deste fenómeno no processo de ensino/aprednizagem, responde:

De certo modo acho que podia facilitar. Também dificulta muito, porque a nível de, escrevermos fica muito mal, muito mal, a interferência do crioulo. Leva a fazer frases incompletas a nível da organização frásica, as frases ficam mal organizadas. Eu acho também que quando estamos a expressar e não sabemos aquela palavra dizem em crioulo e nós ajudamos, e dizemos como é que se diz em português, e, eh, eles, ao dizer aquela palavra, começam por entronizar aquelas palavras que por vezes não conhecem.

A professora mostra a sua preocupação perante a interferência morfo-sintáctica do

crioulo no português, principalmente a nível da produção escrita. Defende que, se por um lado dificulta porque dá lugar ao erro, por outro, pode facilitar porque, ao longo da expressão verbal se se recorre à LM para procurar uma palavra que não se sabe dizer em LP, o professor ajuda, facultando a palavra que falta, dando ao aluno a oportunidade de conhecer e aprender uma nova palavra, ou seja neste caso o recurso à LM deu ao aluno a oportunidade de ampliar o seu léxico em LP. P03 considera que a interferência é benéfica quando acontece na oralidade e se for de natureza lexical, sendo maléfica se for uma interferência de natureza morfo-sintáctica e se manifestar na produção escrita.

Portanto, a professora posiciona-se do lado da perspectiva behaviorista que não valoriza a transferência, enquanto estratégia de aprendizagem (Carvalho, 2004:69)

Tendo como base estas representações sobre o recurso à LM e sobre o processo de transferência em si P03 afirma:

Portanto, eu, quando isto acontece, eu mesmo os obrigo a falar, vamos falar o português, eu sou professor de português, vamos falar português, vamos escrever, mando escrever frases, depois: - vamos entender o que é que esta frase diz, começamos a ver, começamos a interpretar, começamos a ver formas de interpretações, as vezes vejo interpretações que ficam muito longe do que a frase está a dizer.

A atitude de P03 revela o tipo de tratamento que ela dá ao fenómeno de transferência linguístico-comunicativa, tratamento esse que, na nossa opinião, é pouco pedagógica. Não nos parece razoável obrigar os alunos a falarem uma língua da qual têm fraco domínio de produção, como se falar ou não falar a referida língua dependesse única e exclusivamente do querer e da vontade do aluno, sem considerar as suas limitações e as suas dificuldades. Uma outra atitude que P03 indica é a de converter o código oral no código escrito a procura de intercompreensão, ciente de que, utilizando o código escrito, é mais fácil corrigir as interferências. Portanto, segundo P03, a técnica é: falar – competência de produção oral, escrever - competência de produção escrita, entender – competência de compreensão escrita, interpretar - competência de leitura, isto é de múltiplas interpretações.

Uma vez analisadas as atitudes e as representações dos professores face aos processos de transferência, passamos a analisar o tratamento pedagógico que os professores dizem dar a esses fenómenos.