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A “utilidade marginal” e a economia neoclássica .1

No documento P ara além do capital (páginas 136-151)

DO CAPITAL

3.2 A “utilidade marginal” e a economia neoclássica .1

Apesar das palavras tranquilizadoras de Adam Smith sobre o controle benevolente da ordem capitalista pela “mão invisível”, esta não conseguiu manter-se à altura das expectativas. Crises de gravidade crescente tornaram-se um aspecto inegável do “sistema de perfeita liberdade e justiça natural”, compelindo seus defensores a oferecer alguma espécie de explicação que também sugerisse um remédio.

Dadas as novas circunstâncias, uma simples declaração de fé na “mão invisível”

que bem orientava as ações dos capitalistas individuais em suas “situações locais”

não era suficiente. Era preciso encontrar uma forma diferente de avaliar a questão do controle; em parte, porque as unidades dominantes das empresas se tornavam cada vez maiores (e, claro, inextricavelmente entrelaçadas com conexões que não as

a temporalidade do projeto socialista não está dividida. Quando a divisão ocorre, ela tende a assumir uma forma em que o presente efetivamente se contrapõe ao futuro e o domina.

Não é preciso dizer que é impossível haver uma boa transformação socialista sem a mediação dinâmica entre a imediatez da ordem estabelecida e o futuro que se desdobra, porque necessariamente as estruturas herdadas do sistema do capital hierárquico continuam a dominar o processo de reprodução social depois da revolução.

Elas devem ser radicalmente reestruturadas durante a inevitável mediação entre presente e futuro, se desejamos que o projeto socialista tenha alguma possibilidade de sucesso. Tragicamente, no entanto, quanto maiores as dificuldades de reestruturação e mediação dinâmica, mais a temporalidade do projeto socialista – futuro em processo de desdobramento – tende a ser subvertida pela inércia das determinações de passado e presente.

Declaram-se estados de emergência, adiando o futuro para um período indefinido quando, com alguma sorte, tais estados de emergência já não forem mais necessários.

Um “futuro adiado” é, na verdade, um futuro negado e, mais cedo ou mais tarde, completamente perdido, até como promessa. A princípio, alguns estados de emergência são impostos às sociedades pós-revolucionárias por meio de intervenções contrarrevolucionárias reais ou ameaçadas, como ocorreu na Rússia depois de 1917 ou na China de Mao por vários anos, tornando-se assim um instrumento de subversão fatídica da temporalidade socialista. Mais tarde, no entanto, as “emergências” tornam-se rotineiras e funcionam como desculpa pré--fabricada muito conveniente para todos os fracassos evitáveis. Assim, as sociedades pós-revolucionárias que passam por uma transformação pela qual a arbitrária imposição de estados de emergência se torna sua característica “normal”, um aspecto mais ou menos permanente de seus intercâmbios socioeconômicos e políticos, realmente não têm futuro algum (e nenhuma possibilidade de sobrevivência em seu estado de animação suspensa) – como por exemplo na Rússia stalinista – por se terem permitido ser mais uma vez dominadas pela temporalidade decapitada do sistema do capital. Não podem ser consideradas sequer

“sociedades de socialismo viável” – muito menos “sociedades de socialismo realmente existente” – porque o único “futuro” compatível com sua temporalidade decapitada é a temporalidade restauradora do capital, tendente a construir um “futuro” como uma espécie de versão do status quo ante (ou seja, “comercialização”

e “privatização” capitalista).

Quando os estados de emergência rotineiros (e, naturalmente, os correspondentes campos de trabalho forçado etc.) já não funcionam mais, a pressão pela restauração – sob a devastadora influência dos fracassos visíveis por toda parte, em comparação com as mentiras da “construção do socialismo” e até da “construção do estágio mais elevado do comunismo” – vem de dois lados. Em primeiro lugar, a partir do tipo soviético de personificação do capital, que deseja assegurar seu domínio permanente sobre o trabalho, reinstituindo o direito legal à posse hereditária da propriedade privada capitalista. Em segundo, ironicamente, vem também das massas do povo, que continuam a sofrer as consequências dos fracassos. Ironicamente, porque a última coisa que podem realmente esperar da restauração da “sociedade de mercado” capitalista é o fim de sua dominação estrutural pelo sistema do capital. Entretanto, pressionam pela mudança radical, por mais incertas que sejam as condições visadas, porque é impossível viver num estado de emergência permanente que não leva a lugar algum, sob circunstâncias em que já não é mais possível esconder, nem por cínicos exercícios de propaganda, que o “futuro adiado” na verdade é futuro traído e abandonado. Retornaremos a estes problemas na Parte III.

apenas locais); em parte porque se teria de admitir que os “ciclos do comércio”, que estavam assumindo as proporções mais danosas, deveriam ser no mínimo explicados (em pleno acordo com os imperativos do sistema), sem o que a tranquilizadora mensagem não mereceria mais qualquer crédito. Foi assim que a segunda teoriza-ção típica dos dilemas de controle e incontrolabilidade, mencionados na seteoriza-ção 3.1.1, surgiu de uma consciência parcial dos sintomas da crise. Não obstante, os represen-tantes da nova interpretação também se recusaram caracteristicamente a admitir as causas das dificuldades identificadas. Preferiram dar atenção apenas aos sintomas, reinterpretando as descrições anteriores do modo de reprodução sociometabólica estabelecido de uma forma que, no mínimo, não questionasse a crença, assumida sem crítica pelos clássicos da economia política burguesa, na naturalidade e absoluta permanência do sistema do capital.

W. Stanley Jevons, um dos pioneiros dessa nova abordagem – mais tarde celebrada como a “revolução marginalista” ou “revolução subjetiva” –, insistia em que se deveria utilizar um rigoroso método científico, com instrumental ma-temático apropriado, para enfrentar os problemas identificados. O fato de seu livro definidor da tendência – Theory of Political Economy – ter aparecido em 1871, em meio a uma grande crise internacional e no ano da Comuna de Paris, foi, naturalmente, uma coincidência. Também foi por mera coincidência que o mais influente econo-mista inglês a oferecer os frutos dessa mesma “revolução”, Alfred Marshall, estivesse em Berlim desenvolvendo seu projeto de pesquisa, na mesma época em que as tro-pas prussianas de Bismarck cercavam Paris, dando uma grande contribuição para a explosão da Comuna de Paris. No entanto, o que definitivamente não se tratou de coincidência foram a frequência e a intensidade cada vez maiores das crises por décadas e décadas, até que uma expansão imperialista aliviasse a tensão no “cantinho do mundo” europeu e desse vida nova ao capital nos países imperialistas dominantes.

Afinal, o próprio Stanley Jevons teve de interromper seus estudos na universidade e procurar emprego na Austrália durante cinco anos, até conseguir economizar dinheiro suficiente para retomar seus estudos – porque seu pai, um rico comerciante de ferro, havia falido em consequência de uma séria crise econômica.

O fato é que o espectro da crise assombrou Jevons até o fim da vida. Ainda muito jovem, ele expressava esta preocupação a seu irmão Herbert, numa carta datada de abril de 1861 (dois anos antes de receber o diploma no University College, em Londres), em que dizia:

Se as revoluções comerciais são ou não tão necessárias e inevitáveis, como a montante e a vazante das marés, é uma questão intrigante e problemática. O certo é que elas aparecem no curso normal dos negócios, quando não em períodos exatamente regulares, pelo menos em ciclos, cuja extensão média não é difícil calcular. Por mais difícil que seja estabelecer com precisão os princípios que as regulam, habitualmente elas são precedidas por sintomas e seguidas por resultados que têm alguma analogia, se não semelhança, entre si. Um exame atento de nossos empresários representaria muito para a disseminação dessa boa informação relativa às leis do comércio, o que reduziria imensamente a gravidade das crises comerciais.11

11 W. Stanley Jevons, Carta a Herbert Jevons, 7 de abril de 1861, citada em Types of Economic Theory: From Mercantilism to Institutionalism, de Wesley C. Mitchell, editado por Joseph Dorfman, Nova York, Augustus M. Kelley, 1969, v. 2, p. 16.

Quinze anos depois, numa palestra de 1876 no Clube da Economia Política sobre

“O futuro da economia política” – por ocasião das comemorações do centenário da Riqueza das nações de Adam Smith –, ele insistia em que...

... Precisamos de uma ciência do mercado do dinheiro e das flutuações comerciais, que deveria investigar por que o mundo está cheio de atividade durante alguns anos e depois tudo fica inativo; enfim, por que existem essas marés nos negócios dos homens?12 Ainda assim, a elaboração e a bem-sucedida aplicação da “ciência do dinheiro e das flutuações econômicas” de Jevons permaneceu desde então um sonho ilusório, apesar de todos os esforços nele aplicados e apesar de todas as honrarias (inclusive uma porção de prêmios Nobel) prodigalizadas a seus proponentes. Não obstante, desde então persistiu a ilusão, arraigada num otimismo exagerado, de que tal ciência – capaz de eliminar as deploradas “flutuações comerciais” e crises periódicas ou, na expressão de Jevons, “reviravoltas” – seria viável dentro dos parâmetros estruturais do capital, desde que fossem adotados “métodos quantitativos rigorosos” (encerrados em fórmulas mate-máticas) por seus representantes; e na verdade rapidamente o foram, constituindo uma característica distintiva da nova ortodoxia. Mesmo Alfred Marshall, que estava muito ansioso por manter o acesso popular a seus escritos, de modo a poder influenciar os empresários, aceitou alegremente a caracterização de Edgeworth para sua obra: “sob as vestes da literatura, a armadura da matemática”13.

Entretanto, em vez de o remédio proposto tocar a base causal do sistema, somente os efeitos foram atacados, muitas vezes com excessivo aparato matemático e estatísti-co, produzindo resultados bastante problemáticos, até na opinião dos que esperavam soluções da mesma ciência formalizada do dinheiro. Muitos anos depois, em 1936, Keynes teve de insistir nas advertências contra as expectativas otimistas, recorrendo ao intercâmbio normal de ideias e ao bom-senso como corretivos necessários ao zelo matemático. Ele dizia o seguinte:

... no discurso comum, onde não estamos cegamente manipulando, mas sabemos o tempo todo o que fazemos e o que significam as palavras, podemos guardar “na cabeça” as reservas e limitações necessárias e os ajustes que teremos de fazer mais adiante, de forma que não possamos esconder diferenciais parciais complicados “atrás” de muitas e muitas páginas de álgebra que pressupõem que todos eles desapareçam. Uma proporção muito grande da economia “matemática” é simples ficção, tão imprecisa quanto as premissas iniciais em que se baseia, o que permite que o autor perca de vista as complexidades e interdependências do mundo real, num labirinto de sintomas pretensiosos, que em nada ajudam.14

12 Id., “The Future of Political Economy”, em Jevons, The Principles of Economics: A Fragment of a Treatise on the Industrial Mechanics of Society, and Other Essays, com um prefácio de Henry Higgs, Reprints of Economic Classics, Nova York, Augustus M. Kelley, 1965, p. 206.

13 F. Y. Edgeworth, “Reminiscences”, em A. C. Pigou (ed.), Memorials of Alfred Marshall, Reprints of Economic Classics, Nova York, Augustus M. Kelley, 1966, p. 66. Quarenta e cinco anos antes, na formulação original da opinião de Edgeworth sobre Marshall, citada acima, o autor afirmava que os argumentos de Marshall,

“mesmo sob as vestes da literatura, traziam as armas da matemática”. (Ver “On the Present Crisis in Ireland”, em Mathematical Psychics: An Essay on the Application of Mathematics to the Moral Sciences, 1881, Reprints of Economic Classics, Nova York, Augustus M. Kelley, 1967, p. 138.) Contudo, a última versão parece uma comparação mais adequada.

14 John Maynard Keynes, The General Theory of Employment, Interest and Money, Londres, Macmillan, 1957, pp. 297-8.

No entanto, as raízes do problema, desde a sua forma matematizada das décadas de 1860-70, eram bem mais profundas para serem retificadas por qualquer apelo à orientação do bom-senso e do discurso normal. É verdade, conforme a afirmação de Keynes, que, no final dos anos 1860, “a noção da aplicação de métodos matemáticos estava no ar”15. Mas algo de importância muito maior – a preocupação profunda (ou alarme) das personificações do capital com o crescente movimento trabalhista socia-lista – também estava no ar. As diversas teorias da “utilidade marginal” – das versões inglesa e suíça às variações austríacas – foram em boa parte concebidas como antídoto contra isso. Wesley C. Mitchell enfatizou em suas palestras de 1918 na Universidade de Colúmbia:

Não se pode ler os autores austríacos, cujo sistema de modo geral assemelhava-se ao de Jevons, sem sentir que eles estavam interessados em desenvolver o conceito da maximização da utilidade, em grande parte porque pensavam que isto respondia à crítica socialista de Marx à moderna organização econômica. Pelo menos a uma primeira leitura, este conceito parecia mostrar que, desde que a interferência com a competição seja reprimida, o resultado seria, teoricamente, a melhor organização possível da sociedade quando todos são deixados perfeitamente livres para tomar suas próprias decisões. ... Um dos desenvolvimentos interessantes e bastante irônicos da geração depois de Jevons foi o fato de que essa linha de teorização econômica usada pelos austríacos para responder a Marx tenha sido adotada pelos socialistas fabianos como sua doutrina econômica básica e que um novo sistema de socialismo, de caráter muito diferente do de Marx, tenha se erguido sobre esta fundamentação.16

Os economistas que adotaram os principais dogmas da teoria da utilidade marginal distribuíam-se, politicamente, desde a posição conservadora extrema de Francis Ysidro Edgeworth, levada ao ponto de uma insanidade obscurantista17 – e,

15 Idem, “Alfred Marshall, 1842-1924,” em Memorials of Alfred Marshall, p. 19.

16 Wesley C. Mitchell, op. cit., v. 2, p. 77.

17 Edgeworth era obcecado pela ideia de que a condição de seu país natal, a Irlanda – “um país abalado pela conspiração política e a associação econômica” (ou seja, os sindicatos, p. 127 do Mathematical Psychics, citado na nota 13 deste capítulo) –, poderia espalhar-se por todos os cantos; assim, ele tentou criar um antídoto

“científico” na forma de um “utilitarismo aristocrático” (p. 80), o que garantiria “votos plurais conferidos não apenas à sagacidade, como pensava Mill, mas também à capacidade de ser feliz” (p. 81). E – surpresa!

surpresa! – o plano “científico” da “psicologia matemática” de Edgeworth estava perfeitamente sintonizado com seu “utilitarismo aristocrático,” com a seguinte argumentação:

Se supusermos que a capacidade para o prazer é um atributo da habilidade e do talento (a); se considerarmos ser a produção uma função assimétrica do trabalho manual e científico (b); poderemos ver uma razão, mais profunda do que a oferecida pela economia, pela qual o trabalho da aristocracia da capacidade e do talento, apesar de mais agradável, tenha maior remuneração. A aristocracia do sexo baseia-se igualmente na presumida capacidade superior do homem para a felicidade, para a energia da ação e da contemplação; sobre o sentimento...

A mulher é o homem menor; sua paixão perto da minha é como o luar perto do sol e como água do vinho (p. 78).

Como bonificação, além de justificar a classe dominante e o chauvinismo masculino, Edgeworth lança também uma justificativa para o racismo na p. 131. Falando sobre a sociedade do futuro, ele insiste em que a dominação e a subordinação das classes devem permanecer para sempre, justificando-o com a afirmação de que “a existência de uma classe menos afortunada e subordinada não parece incriminar a generosidade da Providência” (p. 79). São estes os valores sustentados com indisfarçada consciência de classe pelas habilidades matemáticas e pelo “rigor científico” muito valorizados de Edgeworth.

para ser justo com Edgeworth, havia um toque de loucura nas concepções de todos eles, inclusive Jevons, que desejava explicar “cientificamente” o que chamava de

“crises comerciais,” associando-as estatisticamente às manchas solares (padrão pelo qual o sol estaria nessas últimas décadas exageradamente – não seria perversamente? – manchado; mas quem, em perfeita sanidade mental, desejaria brigar com o sol?) – às variedades de paternalismo em relação à mão de obra, algo proeminente nos fabia-nos. Por exemplo, o paternalista neoclássico Marshall, apesar de sua reputação de pensador cuidadoso e muito escrupuloso18, não tinha escrúpulos em dispensar Marx da maneira mais sumária – com falsas interpretações caricaturais grotescas – para ao mesmo tempo dispensar igualmente as ideias de trabalho excedente e exploração19. Depois de uns tapinhas nas costas de Marx por sua “solidariedade com o sofrimento”, não hesitou sequer em lisonjear a galeria acadêmica filistina, dizendo sarcasticamente que os argumentos de Marx estavam “encobertos por misteriosas frases hegelianas”20, embora quando Marshall estava “morando em Berlim no inverno de 1870-71, durante a guerra franco-alemã, a Filosofia da história de Hegel o tenha influenciado enormemente”21 (como sabemos pelo que diz Keynes, baseado no esboço biográfico da viúva de Marshall).

A grande diferença em relação às revoluções e “crises comerciais” foi que a ordem política e a produção estabelecidas estavam sendo cada vez mais contes-tadas pelo movimento socialista organizado, que ousava apresentar a proposta

“extraeconômica” de que as crises econômicas não se deviam a distúrbios cíclicos extraterrenos, nem às determinações inalteráveis da “natureza humana”, mas aos defeitos estruturais do sistema do capital.

Compreende-se que as personificações do capital tivessem de fazer algo a respeito dessa contestação, já que não poderiam esperar uma solução automática de seu deus ex machina anterior: a reverenciada “mão invisível”. Fossem con-servadores ou paternalistas, tinham de oferecer explicações e justificativas que no mínimo parecessem responder às reivindicações que emanavam do movimento da classe trabalhadora. Mesmo o extremado reacionário Edgeworth sugeria que

“toda a criação geme e suspira, desejando um princípio de arbitragem, um fim das lutas”22. Edgeworth era sem dúvida um tanto especial, pelo fato de seu “princípio”

mostrar-se a mais deslavada justificação para os privilégios das classes dominantes, apoiadas por um embuste pseudocientífico que justificava a posição social superior e a riqueza correspondente do empresário com verborreia darwiniana e camuflagem utilitarista, afirmando que “uma organização mais nervosa exigiria em média um

18 Segundo Keynes...

Marshall foi o primeiro grande economista pur sang que jamais existiu, o primeiro a devotar a vida a erigir o tema como ciência separada, sustentada em sua própria base, com padrões de exatidão científica tão elevados quanto os das ciências físicas ou biológicas.

Keynes, “Alfred Marshall, 1842-1924,” op. cit., pp. 56-7.

19 Alfred Marshall, Principles of Economics, Londres, Macmillan, 1959, p. 487.

20 Id., ibid., p. 11.

21 Keynes, ibid., p. 11.

22 Edgeworth, Mathematical Psychics, p. 51.

mínimo mais elevado de recursos para chegar à utilidade zero”23. No entanto, a essência dos ensinamentos de seus companheiros ideológicos em armas era a mesma no que diz respeito a seus “princípios” de distribuição indecentemente desigual e à sua alegada justificativa “científica”. Eles queriam escamotear até a possibilidade de levar em conta a relação entre salários e lucros, trabalho excedente e mais-valia, o fato e o remédio potencial da exploração. E isto visando proclamar o “fim das lutas” – não mais na teórica e politicamente contestável economia política, mas cada vez mais na racionalmente incontestável “ciência da economia”.

Ao mesmo propósito serviu a mudança da ênfase nas decisões dos capitalistas individuais de Adam Smith para os consumidores que maximizam a utilidade – cujas demandas são, naturalmente, muito bem interpretadas e realizadas pelos em-preendedores capitalistas. Pois, como argumentava Jevons, se era verdade que “o valor depende inteiramente do último grau da utilidade”24 – proposição compartilhada de alguma forma por todas as variantes da “teoria da utilidade marginal” –, a própria racionalidade recomendaria então que todas as reivindicações dos trabalhadores deveriam ser avaliadas em termos da demanda do comprador ou consumidor e em subordinação a ela, eliminando assim a possibilidade de contestar a determinação estrutural do sistema em termos de classes inclinadas à luta. Uma pena que a tal associação entre manchas solares e “crises comerciais” não pudesse realmente ser estabelecida, apesar de Jevons ter modificado duas vezes suas estatísticas econômi-cas “científieconômi-cas” de modo a caberem nos dados astrofísicos (infelizmente para seu sistema) revisados das manchas solares e apesar de haver ainda introduzido a ideia de “ciclos normais” – procedimento metodológico de definições e pressupostos arbitrários amplamente adotado pelos apologistas posteriores, para poder provar o que não poderia ser sustentado de nenhuma outra maneira – para excluir os ciclos teimosos que se recusavam a encaixar-se em suas elegantes e convenientes ideias preconcebidas. Pois, se tivesse conseguido, teria demonstrado o imenso absurdo de todos aqueles socialistas que procuravam explicações e remédios, não no céu, mas na terra mesmo, concentrando sua atenção nas monstruosas injustiças e contradições da ordem socioeconômica estabelecida.

3.2.2

Entretanto, apesar das hipóteses e garantias de tranquilidade dos novos economistas que adotaram o credo da teoria da utilidade marginal, as deploradas “crises comerciais” (e os concomitantes antagonismos e lutas de classe) não somente não desapareceram, mas tendiam a tornar-se cada vez mais graves. Ao mesmo tempo, a persistente provocação do movimento organizado da classe trabalhadora – na França (apesar da sangrenta repressão à Comuna de Paris) e também na Alemanha, na Rússia, na Áustria/Hungria e na Inglaterra, para só mencionar o “cantinho do mundo” europeu –

23 Id., ibid., p. 54. Edgeworth acrescenta ainda, na p. 57 – para reforçar a correção e a justificativa utilitarista de seu

“princípio” –, que “alguns indivíduos podem gozar das vantagens não por qualquer quantidade de meios, mas apenas para valores acima de certo nível. Este pode ser o caso das ordens superiores da evolução”.

24 W. Stanley Jevons, The Theory of Political Economy, editado com uma introdução de R. D. Collison Black, Harmondsworth, Penguin Books, 1970, p. 187.

tornava bem mais vantajoso, do ponto de vista do capital, adotar a estratégia de cooptação e não a do enfrentamento. A preocupação com o conflito social era cons-tantemente expressada por Alfred Marshall – provavelmente o mais iluminado dos solícitos paternalistas –, que, em um ensaio escrito pouco depois da Revolução Russa de 1905, escreveu:

Na Alemanha, o domínio da burocracia combinou-se a outras causas para promover um amargo ódio de classes e, aqui e ali, fazer a ordem social depender da vontade de os soldados atirarem nos cidadãos; e a situação é muito pior na Rússia, bem mais burocrática.

Mas, sob o coletivismo, não haveria como recorrer da onipresente disciplina burocrática. ...

o coletivismo é uma séria ameaça até à manutenção de nossa atual taxa moderada de progresso.25

E Marshall uniu sua rejeição categórica ao coletivismo com um quadro idealizado do capitalista “rico” – que não apenas compreende, mas generosamente implementa os ensinamentos do compassivo credo marginalista – e da ordem socioeconômica, de que o rico marshalliano seria um representante exemplar. Segundo este quadro, na Utopia de Marshall, que se desdobrava lenta, mas inexoravelmente...

... O rico cooperaria mais com o Estado, bem mais tenazmente do que o faz agora, aliviando o sofrimento dos que, não por sua própria culpa, são fracos e doentes, e a quem um xelim poderia trazer mais benefício real do que ele obteria gastando muitas libras a mais. Sob tais condições, o povo em geral estaria tão bem nutrido e tão bem educado que seria agradável viver na terra. Nela os salários por hora seriam altos, mas a força de trabalho não seria cara. O capital portanto não estaria muito ansioso para emigrar, mesmo que se impusessem sobre ele impostos bastante pesados para fins públicos: os ricos adorariam viver nela; e assim o verdadeiro Socialismo, baseado no cavalheirismo, elevar-se-ia acima do receio de que algum país possa andar mais depressa do que os outros por medo de perder capital. Um Nacional Socialismo desse tipo estaria cheio de individualidade e elasticidade. Não haveria nenhuma necessidade daqueles laços de ferro de simetria mecânica que Marx postulava como necessários para seus projetos da “Internacional”.26

Dessa forma, caracteristicamente, a pregação das virtudes de evitar-se o conflito com o apelo às condições de conto de fada do “cavalheirismo” capitalista vindouro poderia desposar feliz um antissocialismo militante e mais uma vez representando Marx falsamente como um rude pensador mecânico. Ao mesmo tempo, Marshall tinha também de sustentar que a ordem socioeconômica capitalista idealizada continha em si o verdadeiro sistema socialista, em sua variedade “nacional-socialista”. Afinal de contas, ele não era apenas um “amigo do operariado” e do movimento cooperativista britânico (em certo momento, até seu presidente), mas também um bom imperialista inglês que – enquanto condenava energicamente a burocracia russa e alemã – acreditava e discutia com toda a seriedade nos seguintes termos: “A fidalguia que fez com que muitos administradores na Índia, no Egito e em tantos outros lugares se dedicassem aos interesses dos povos sob seu governo é um exemplo da maneira como os métodos

25 Marshall, “Social Possibilities of Economic Chivalry”, em Memorials of Alfred Marshall, pp. 341-2.

26 Id., ibid., pp. 345-6.

No documento P ara além do capital (páginas 136-151)