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Causalidade e tempo sob a causa sui do capital .1

No documento P ara além do capital (páginas 170-174)

DO CAPITAL

4.1 Causalidade e tempo sob a causa sui do capital .1

O aspecto mais problemático do sistema do capital, apesar de sua força incomen­

surável como forma de controle sociometabólico, é a total incapacidade de tratar as causas como causas, não importando a gravidade de suas implicações a longo prazo. Esta não é uma dimensão passageira (historicamente superável), mas uma irremediável dimensão estrutural do sistema do capital voltado para a expansão que, em suas necessárias ações remediadoras, deve procurar soluções para todos os problemas e contradições gerados em sua estrutura por meio de ajustes feitos estritamente nos efeitos e nas consequências.

Os limites relativos do sistema são os que podem ser superados quando se expande progressivamente a margem e a eficiência produtiva – dentro da estrutura viável e do tipo buscado – da ação socioeconômica, minimizando por algum tempo os efeitos danosos que surgem e podem ser contidos pela estrutura causal fundamental do capital.

Em contraste, a abordagem dos limites absolutos do capital inevitavelmente coloca em ação a própria estrutura causal. Consequentemente, ultrapassá­los exigiria a adoção de estratégias reprodutivas que, mais cedo ou mais tarde, enfraqueceriam inteiramente a viabilidade do sistema do capital em si. Portanto, não é surpresa que este sistema de reprodução social tenha de confinar a qualquer custo seus esforços remediadores à modificação parcial estruturalmente compatível dos efeitos e consequências de seu modo de funcionamento, aceitando sem qualquer questionamento sua base causal – até mesmo nas crises mais sérias.

O modo de controle sociometabólico – que não considera a possibilidade de um futuro, a menos que o futuro projetado seja visto como uma extensão direta de determinações presentes e passadas – não tem nada parecido com um

“mais longo prazo”. Os apologistas do capital gostam de citar o dito keynesiano:

“a longo prazo, estaremos todos mortos” – como se esse tipo de frívola despreo­

cupação com o futuro resolvesse a questão. No entanto, a verdade é que, devido

à sua necessária negação do futuro, o sistema do capital está encerrado no círculo vicioso do curto prazo, embora seus ideólogos procurem apresentar esse defeito como virtude insuperável. Esta é a razão por que o capital é incompatível com qual­

quer tentativa significativa de um planejamento abrangente, mesmo quando este se mostre avassaladoramente necessário no problemático relacionamento de empresas capitalistas globais. Também é por isso que o sistema do capital de tipo soviético, desmentindo todas as suas reivindicações explícitas ao estabelecimento de uma economia socialista planejada, só poderia resultar numa horrenda caricatura do planejamento. A metamorfose das personificações do capital representadas pelo capitalista privado em suas variantes, como os burocratas soviéticos, introduziria mudanças apenas no plano dos efeitos manipuláveis, deixando inalteradas suas bases causais historicamente há muito estabelecidas.

A razão por que o capital é estruturalmente incapaz de tratar as causas como causas – em vez de tratar a todas as dificuldades e complicações emergentes co­

mo e feitos manipuláveis com maior ou menor sucesso – é que esta é a sua própria fundamentação causal: uma verdadeira causa sui perversa. Qualquer coisa que aspire à legitimidade e à viabilidade socioeconômicas deve ser adaptada ao seu quadro estru­

tural predeterminado. Na qualidade de modo de controle sociometabólico, o capital não pode tolerar a intrusão de qualquer princípio de regulação socioeconômica que venha restringir sua dinâmica voltada para a expansão. A expansão em si não é apenas uma função econômica relativa (mais ou menos louvável e livremente adotada sob esta luz em determinadas circunstâncias, e conscientemente rejeitada em outras), mas uma maneira absolutamente necessária de deslocar os problemas e contradições que emergem no sistema do capital, de acordo com o imperativo de evitar, como praga, as causas subjacentes. Os fundamentos causais que autoimpelem o sistema não podem ser questionados sob hipótese alguma. Quando aparecem, os problemas devem ser tratados como disfunções “temporárias”, a serem remediadas com a reafirmação sempre mais rigorosa do imperativo da reprodução expandida. Por esta razão, não pode haver alternativa alguma para a busca de expansão – a todo o custo – em todas as varie­

dades do sistema do capital.

Enquanto existir objetivamente espaço para a livre expansão, o processo de deslocamento das contradições do sistema pode avançar sem empecilhos. Quando as coisas não vão bem, ou seja, quando há uma falha no crescimento econômico e em seu correspondente avanço, as dificuldades são diagnosticadas em termos do racio­

cínio circular, que evita as causas subjacentes e apenas acentua suas consequências, segundo o qual “o crescimento atual não é suficiente”. Tratar dos problemas com essa perversa maneira ilógica repetindo constantemente que “está tudo pronto” para a expansão saudável, mesmo nos momentos das grandes recessões, cria a ilusão de que o modo de controle sociometabólico do capital não precisa de nenhuma mu­

dança fundamental. A mudança legítima deve ser sempre encarada como alteração e melhoria limitadas do que já está determinado. A mudança deve ser produzida pela inovação estritamente instrumental, que se pressupõe obviamente benéfica.

Entretanto, como as necessárias condições e implicações históricas que restringem a expansão contínua são sistematicamente descartadas ou rejeitadas como desprovidas de importância, o pressuposto da permanência e da inquestionável viabilidade da causa sui do capital é totalmente falacioso.

Aqui, mais uma vez, a questão não é a intrusão de uma falácia lógica na teoria – ao contrário, é a derrubada inadmissível das relações realmente existentes. Pois o corolário perverso das condições relativas absolutizadas (ou seja, históricas limitadas) exigidas pelo processo da reprodução expandida do capital – a injustificada e supos­

tamente eterna disponibilidade dos recursos e do espaço necessários para a desejável expansão do capital – é a relativização irresponsável das restrições absolutas (como, por exemplo, a deliberada ignorância dos riscos envolvidos no desperdício vigente dos recursos não renováveis do planeta). Em vez de perigosamente manipuladas, tais res­

trições deveriam ser reconhecidas como condições limitadoras necessárias em qualquer sistema finito, inclusive todas as variedades viáveis do sistema do capital, a menos que se queira brincar de roleta russa com a sobrevivência da humanidade. Contudo, como a aceitação desse tipo de restrições inevitavelmente exigiria uma grande mudança na estrutura causal fundamental do capital – pois o postulado da expansão imperativa teria de ser moderado e justificado, em vez de utilizado como a base supostamente óbvia de qualquer justificação concebível, tornando assim desnecessária qualquer justificativa –, não existe “nenhuma alternativa” para a relativização do absoluto, não importa quão irresponsável.

4.1.2

A inalterável temporalidade do capital é a posteriori e retrospectiva. Não pode haver futuro num sentido significativo da expressão, pois o único “futuro” admissível já chegou, na forma dos parâmetros existentes da ordem estabelecida bem antes de ser levantada a questão sobre “o que deve ser feito”.

Dadas as suas determinações estruturais fundamentais, às quais deve se adaptar tudo o que existe sob o sol, o modo de funcionamento do capital só pode ser reativo e retroativo, mesmo quando os defensores do sistema falam – muito inadequadamente – de sua “reestruturação” benéfica. Na realidade, nada pode criar uma abertura real. O impacto de eventos históricos inesperados – que surjam, por exemplo, de uma gran de crise – mais cedo ou mais tarde terá de ser comprimido de volta em seu molde estru tural preexistente, tornando a restauração uma parte constituinte da dinâmica normal do sistema do capital.

Tudo o que pode ser em certo sentido já foi. Assim, quando se exaltam as virtudes da “privatização”, não se considera correto nem adequado perguntar: que problemas levaram inicialmente à recém­deplorada condição da nacionalização que agora deve ser invertida para estabelecer o futuro status quo ante? Pois admite­se que, durante as transformações socioeconômicas e políticas adotadas, nada seja mudado de maneira a colocar em jogo os parâmetros estruturais do capital. A “nacionalização” das empresas capitalistas privadas, sempre que introduzida, é tratada simplesmente como uma rea­

ção temporária à crise, a ser contida dentro das determinações gerais do capital como modo de controle, sem afetar de forma alguma a estrutura de comando fundamental do próprio sistema.

O resultado é que, diante disso, mudanças econômicas importantes, mas na realidade marginais, limitam­se apenas a alguma operação de salvamento de setores insolventes de capital, precisamente porque o quadro estrutural e a estrutura de co­

mando do próprio sistema permanecem inalterados. É por isso que, com certos ajustes dos sintomas da crise original, o processo de nacionalização pode ser tão facilmente

revertido, permitindo assim a continuação do que havia antes. Portanto, é inevitável que toda a conversa sobre “a conquista do comando da economia mista” como forma de estabelecer na plenitude dos tempos uma ordem socialista – pregada ao longo de quase um século pelos líderes do movimento trabalhista social­democrata – revele seu vazio total à luz dessas determinações estruturais e temporais que a priori negam as possibilidades futuras do tempo.

Da mesma forma (ainda que num cenário um tanto mais surpreendente), a ordem pós­revolucionária de tipo soviético, funcionando dentro dos parâmetros estruturais do sistema do capital, não faz qualquer tentativa de alterar fundamental­

mente a estrutura hierárquica de comando de dominação do trabalho que herdou. Em vez de entrar na difícil estrada da instituição de um processo socialista de trabalho – dentro de uma estrutura de temporalidade aberta que liga o presente a um futuro de verdade que já se abre à frente – pela criação das condições de uma autogestão significativa, ela reage à grave crise da Primeira Guerra Mundial e suas dolorosas consequências apenas mudando o pessoal no comando – e até isso de maneira absolu­

tamente incompatível. Modifica os direitos legais hereditários – direitos automáticos de propriedade – do pessoal dominante, mas deixa os novos tipos de personificação do capital no controle autoritário do processo herdado de trabalho hierárquico. No entanto, ao fazê­lo, permite que algumas determinações fundamentais do velho controle sociometabólico permaneçam em vigor, das quais, no devido tempo, também pode emergir a exigência de restauração do direito legal à propriedade, como realmente aconteceu na “perestróika” de Gorbachev (outro exemplo do uso inteiramente equivocado da ideia de “reestruturação”). Assim, não é por acaso nem surpreendente que a mais veemente defensora britânica da privatização, a primeira­

­ministra Margaret Thatcher, e o político soviético Mikhail Gorbachev, que procla­

mou a “plena igualdade de todos os tipos de propriedade” (em linguagem muito clara, a restauração da propriedade privada capitalista sancionada pelo Partido), tenham se adotado tão rápida e entusiasticamente como amigos do peito. Esses fa­

tos são, não apenas possíveis, mas absolutamente inevitáveis, enquanto prevalecer a paralisante temporalidade restauradora do capital e enquanto o passado – com sua inércia amortecedora – continuar dominando o presente, eliminando as chances de uma ordem futura qualitativamente diferente.

Nos termos da temporalidade inevitavelmente reativa e retroativa do capital, a mu­

dança só é admissível se absorvida ou assimilada à rede de determinações estruturalmente já dada. O que não se puder conduzir dessa maneira deve ser totalmente eliminado. É por isso que as verdadeiras mudanças qualitativas são inaceitáveis – correspondendo ao espírito do axioma francês: plus ça change, plus c’est la même chose –, pois colocariam em risco a coesão de ordem estrutural aceita. A quantidade reina absoluta no sistema do capital, de acordo com sua temporalidade retroativa.

Isto também está de acordo com a exigência de expansão, necessariamente concebida em termos estritamente quantitativos. Não existe uma maneira de definir a própria expansão dentro da estrutura do sistema de capital senão de modo pura­

mente quantitativo, projetando­a como extensão direta do que existe. Tal expansão deve ser vista como algo além do que existe – mesmo quando as perspectivas de assegurar o acréscimo defendido pareçam mais problemáticas, para não dizer absur­

das... O absurdo deste acréscimo inquestionável (inclusive a defesa de Stalin de uma

produção de ferro­gusa maior do que a americana, como critério indicador de se ter atingido o estágio mais elevado do comunismo) é a única linguagem entendida pelo sistema e, sob nenhuma circunstância, há de ser a força orientadora de algo qualitativamente diferente que emerge da necessidade humana há muito ignorada.

O mesmo vale para as considerações sobre o custo, que sempre deve ser avaliado de maneira mecanicamente quantificável. Consequentemente, a ideia de que a defesa da expansão poderia trazer consigo custos proibitivos, não em termos financeiros pronta­

mente quantificáveis, mas no plano das considerações qualitativas – isto é, que, sob determinadas condições, a busca da “eficiência econômica” e a “expansão lucrativa”

poderiam realmente resultar em prejuízos para as condições elementares de um pro­

cesso de reprodução social sustentável – é forçosamente inadmissível pelo modo de funcionamento do sistema do capital.

É assim que as mais profundas determinações causais do capital confinam as ações viáveis de correção do sistema aos efeitos e consequências estruturalmente assimiláveis, segundo a natureza do capital como inalterável causa sui. Com isso, elas também projetam a sombra da total incontrolabilidade quando a perversa derrubada do relacionamento entre relativo e absoluto já não pode mais ser mantida – tratar o relativo historicamente produzido e limitado (ou seja, a ordem estrutural do capital) como absoluto intranscendível, e as condições absolutas da reprodução sociometabólica e a sobrevivência do ser humano como relativo pron-tamente manipulável.

4.2 O círculo vicioso da segunda ordem de mediações do capital

No documento P ara além do capital (páginas 170-174)