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O círculo vicioso da segunda ordem de mediações do capital .1

No documento P ara além do capital (páginas 174-184)

DO CAPITAL

4.2 O círculo vicioso da segunda ordem de mediações do capital .1

produção de ferro­gusa maior do que a americana, como critério indicador de se ter atingido o estágio mais elevado do comunismo) é a única linguagem entendida pelo sistema e, sob nenhuma circunstância, há de ser a força orientadora de algo qualitativamente diferente que emerge da necessidade humana há muito ignorada.

O mesmo vale para as considerações sobre o custo, que sempre deve ser avaliado de maneira mecanicamente quantificável. Consequentemente, a ideia de que a defesa da expansão poderia trazer consigo custos proibitivos, não em termos financeiros pronta­

mente quantificáveis, mas no plano das considerações qualitativas – isto é, que, sob determinadas condições, a busca da “eficiência econômica” e a “expansão lucrativa”

poderiam realmente resultar em prejuízos para as condições elementares de um pro­

cesso de reprodução social sustentável – é forçosamente inadmissível pelo modo de funcionamento do sistema do capital.

É assim que as mais profundas determinações causais do capital confinam as ações viáveis de correção do sistema aos efeitos e consequências estruturalmente assimiláveis, segundo a natureza do capital como inalterável causa sui. Com isso, elas também projetam a sombra da total incontrolabilidade quando a perversa derrubada do relacionamento entre relativo e absoluto já não pode mais ser mantida – tratar o relativo historicamente produzido e limitado (ou seja, a ordem estrutural do capital) como absoluto intranscendível, e as condições absolutas da reprodução sociometabólica e a sobrevivência do ser humano como relativo pron-tamente manipulável.

4.2 O círculo vicioso da segunda ordem de mediações do capital

sempre seguramente isolada em porções convenientes por uma nova muralha chinesa que se estendesse até a lua... É também como se as atividades produtivas dessas “indústrias de chaminé”, aqui e ali hipocritamente deploradas, não fossem o resultado – e como se não continuassem forçosamente a emergir da estrutura reprodutiva existente – das determinações de busca do lucro da economia global­

mente entrelaçada da ordem sociometabólica em vigor (geralmente em benefício dos países “metropolitanos” dominantes).

A segunda ordem de mediações do sistema do capital pode ser assim resumida:

• a família nuclear, articulada como o “microcosmo” da sociedade que, além do papel de reproduzir a espécie, participa de todas as relações reprodutivas do “macrocosmo” social, inclusive da necessária mediação das leis do Estado para todos os indivíduos e, dessa forma, vital também para a reprodução do próprio Estado;

• os meios alienados de produção e suas “personificações”, pelos quais o ca­

pital adquire rigorosa “vontade férrea” e consciência inflexível para impor rigidamente a todos submissão às desumanizadoras exigências objetivas da ordem sociometabólica existente;

• o dinheiro, com suas inúmeras formas enganadoras e cada vez mais dominan­

tes ao longo do desenvolvimento histórico – desde a adoração ao bezerro de ouro na época de Moisés e das tendas dos cambistas no templo de Jerusalém na época de Jesus (práticas muito reais, apesar de figurativamente descritas, castigadas com fúria pelo código moral da tradição judeu­cristã – embora, considerando a evidência histórica, totalmente em vão), passando pelo baú do usurário e pelos empreendimentos necessariamente limitados do antigo capital mercantilista, até chegar à força opressora global do sistema monetário dos dias de hoje;

• os objetivos fetichistas da produção, submetendo de alguma forma a satis­

fação das necessidades humanas (e a atribuição conveniente dos valores de uso) aos cegos imperativos da expansão e acumulação do capital;

• o trabalho, estruturalmente separado da possibilidade de controle, tanto nas sociedades capitalistas, onde tem de funcionar como trabalho assala­

riado coagido e explorado pela compulsão econômica, como sob o capital pós­capitalista, onde assume a forma de força de trabalho politicamente dominada;

• as variedades de formação do Estado do capital no cenário global, onde se enfrentam (às vezes com os meios mais violentos, levando a humanidade à beira da autodestruição) como Estados nacionais autônomos...

e

• ... o incontrolável mercado mundial, em cuja estrutura, protegidos por seus respectivos Estados nacionais no grau permitido pelas relações de poder prevalecentes, os participantes devem se adaptar às precárias condições de coexistência econômica e ao mesmo tempo esforçar­se por obter para si as maiores vantagens possíveis, eliminando os rivais e propagando assim as sementes de conflitos cada vez mais destruidores.

Só se pode falar de círculo vicioso com relação à maneira como estão unidos todos esses componentes do modo estabelecido de controle sociometabólico. As mediações

1 “Si le journalier est misérable, la nation est misérable” – verbete “Journalier”, na Enciclopédia de Diderot.

particulares de segunda ordem sustentam­se reciprocamente, impossibilitando con­

trabalançar a força alienadora e paralisante de qualquer uma isoladamente enquanto se mantiver intacto o poder de autorregeneração e autoimposição do sistema global.

Baseada na dolorosa evidência histórica, surge a verdade desconcertante: através das interconexões estruturais das partes que o constituem, o sistema do capital consegue se impor sobre os esforços emancipadores parciais que visam alvos específicos limita­

dos. Com isso, os adversários da ordem estabelecida da reprodução sociometabólica, incorrigivelmente discriminatória, têm de enfrentar e superar não apenas a força positiva autossustentada de extração do trabalho excedente pelo capital, mas também a força devastadoramente negativa (a inércia aparentemente ameaçadora) de suas ligações circulares.

É por esta razão que a verdadeira meta da transformação socialista radical deve ser o próprio sistema do capital com todas as suas mediações de segunda ordem e não apenas a expropriação legal das personificações capitalistas privadas do ca­

pital. Pois não somente o ato da expropriação legal pode ser anulado com relativa simplicidade pela mudança da forma capitalista privada tradicional das personi­

ficações do capital em alguma de suas variações pós­capitalistas historicamente viáveis, como acontece por exemplo nas sociedades de tipo soviético. Mais do que isso, permanece também o fato desconcertante de que qualquer coisa instituída numa determinada conjuntura histórica por meios legislativos pode ser revertida e totalmente desfeita através das devidas medidas legais sob circunstâncias históri­

cas diferentes. Assim, a “expropriação dos expropriadores” legalmente decretada, na qual tanta esperança foi depositada, especialmente nas primeiras etapas da história do movimento socialista internacional, pode também “voltar atrás” nas sociedades pós­capitalistas pela reafirmação aberta, no devido tempo e quando as circunstâncias permitirem, da lógica restauradora do capitalismo privado mencionado na seção 4.1.2. Isto já foi tentado na Rússia de Gorbachev e foi mais ou menos realizado nos últimos sete anos – depois de uma breve tentativa totalmente fútil do fantasioso remédio chamado “socialismo de mercado” – nos países do Leste europeu pós­guerra dominados pelos soviéticos.

4.2.2

Os defensores do capital gostam de descrever a ordem existente como uma espécie de predestinação divina para a qual não houvesse alternativa civilizada. Muitos deles arbitrariamente projetam as relações capitalistas de troca até a aurora da história, eliminando assim sua contingência e capacidade histórica de transcendência, para poderem idealizar (ou pelo menos justificar) até seus aspectos mais destrutivos.

Na verdade, até o final do século XVIII, exploradores europeus nas partes recém­descobertas do mundo impressionavam­se com a total ausência do sistema de valor possessivo – considerado inquestionável em seus países. De fato, Diderot, o mais radical e clarividente pensador do Iluminismo francês – o mesmo filósofo que insistia que “se o trabalhador diarista é miserável, a nação é miserável”1 –, fez uma séria crítica da alienação capitalista, ao comparar favoravelmente o estilo de vida das

até então desconhecidas tribos de algumas ilhas do Pacífico ao de seu país. Neste aspecto, ele foi mais intransigente do que até mesmo seus melhores contemporâneos, inclusive Rousseau. Ao comentar imaginativamente uma comunidade descoberta pelo famoso capitão Bougainville, explorador francês, Diderot indicou como contradições fundamentais do sistema socioeconômico dominante na Europa “a distinção entre o teu e o meu” (la distinction du tien e du mien), a oposição entre “a utilidade particular de alguém e o bem geral” (ton utilité particulière et le bien général ) e a subordinação do

“bem geral ao bem particular de alguém” (le bien général au bien particulier)2. E foi ainda mais longe, enfatizando que, sob as condições prevalecentes, essas contradições resultam na produção de “necessidades supérfluas” (besoins superflus), “bens imagi­

nários” (biens imaginaires) e “necessidades artificiais” (besoins factices)3. Ele formulou sua crítica quase nos mesmos termos usados por Marx, cerca de um século depois, ao descrever as “necessidades artificiais e os apetites imaginários” produzidos sob o domínio alienante do capital.

A idealização das relações capitalistas de troca tornou­se regra pouco depois de Diderot e outras grandes personalidades do Iluminismo formularem suas teorias.

Essa idealização surgiu no horizonte em consequência da disseminação e conso­

lidação do sistema dos “moinhos satânicos”, trazendo consigo a aceitação pelos economistas políticos burgueses de que a alienação e a desumanização eram o preço

“que valia a pena ser pago” em troca do avanço capitalista, não importa o quanto fossem miseráveis as chances de vida do trabalhador diarista de Diderot. Ainda mais tarde, até mesmo a memória do outrora sincero dilema de se ter de optar pela produção da riqueza capitalista, com toda a sua miséria e sua desumanização, desapareceu inteiramente da consciência dos ideólogos do sistema do capital. Em nome de sua fictícia “sociedade pós­industrial”, eles podiam descaradamente cele­

brar a transferência das “indústrias de chaminé” e outras “empresas satânicas” do capitalismo avançado para o “Terceiro Mundo”. Empedernidos, não levaram em conta as inevitáveis consequências dessas “transferências de tecnologia” impostas rotineiramente aos países “subdesenvolvidos” – por exemplo, a tragédia em massa de Bhopal, na Índia “subdesenvolvida”, causada pelas atividades produtivas, com medidas de segurança criminosamente minimizadas, da “avançada” U.S. Union Carbide – com base na perversa ideia de sua dependência estrutural dentro do quadro do sistema global do capital.

Independentemente da forma como esta questão fosse apresentada pela ideo­

logia dominante, também neste caso o sistema afirmou (e continua a afirmar) seu poder como totalidade interdependente hierarquicamente estruturada, zombando perversamente de qualquer fé na descoberta de uma saída do beco da dependência estrutural por meio dos bons ofícios da “modernização do Terceiro Mundo” e

2 Diderot, Supplément au Voyage de Bougainville, em Oeuvres philosophiques, editado por Paul Vernière, Paris, Garnier, 1956, p. 482. Os itálicos são de Diderot.

Ao contrário de Diderot, Rousseau ansiava por se defender contra as acusações de que seu trabalho podia ser lido como um ataque à santidade do meum et tuum, ao afirmar que “o direito à propriedade é o mais sagrado de todos os direitos da cidadania, em certos aspectos até mais importante do que a própria liberdade”

(Rousseau, A Discourse on Political Economy, edição Everyman, p. 254).

3 Diderot, ibid., p. 468.

de uma generosa “transferência de tecnologia”. Na verdade, o círculo vicioso das mediações de segunda ordem do capital foi a garantia de que todas as expectativas dariam em nada, se não em algo pior, como aconteceu em Bhopal e em incontá­

veis outras partes dos antigos domínios coloniais afetadas de forma destrutiva. Da mesma forma, em cenário diferente, o mesmo círculo vicioso garantiu que o sonho de um “socialismo de mercado” – promovido em altos brados pelas personificações pós­revolucionárias do capital enquanto durou a muda, incrivelmente rápida, de sua pele política pós­capitalista, de maneira a assegurar para si as roupagens econômicas financeiramente bem mais lucrativas do capitalista privado – termi­

nasse em lágrimas e na “escravidão salarial” imposta economicamente às massas da Europa oriental.

Naturalmente, o sistema do capital não surgiu a partir de alguma predesti­

nação mítica nem das determinações decisivas e das exigências autorrealizáveis da chamada “natureza humana”. Em geral, esta é sempre definida circularmente por filósofos e economistas políticos que adotam o ponto de vista do capital, e que descrevem o mundo em termos da característica de imposição de valores do sistema socioeconômico capitalista que, por sua vez, se supõe “naturalmente”

resultante da própria “natureza humana egoísta”. Todavia, apesar de toda a po­

derosa influência das ideologias que postulam nestes termos a origem do capital e sua dominação contínua, nem o início, nem a forçosa persistência desse modo de controle sociometabólico podem se tornar inteligíveis com base numa neces­

sidade natural arbitrariamente postulada e historicamente insuperável, para não mencionar a mitologia da predestinação da humanidade a uma inevitável existência capitalista. Mesmo que se considere a natureza humana com suas características ob­

jetivas conhecidas, em oposição à determinação circular dos valores capitalistas por uma “natureza humana” tendenciosamente projetada e vice­versa, que acabamos de mencionar, nem mesmo isto ajudaria aos que procuram hipostasiar a origem não histórica e a absoluta permanência do sistema do capital em sua base. A natureza humana é em si inerentemente histórica e por isso totalmente imprópria para o congelamento arbitrário da dinâmica do desenvolvimento socioeconômico real visando atender à conveniência do modo de reprodução sociometabólico do capital.

A história, ainda que muitas vezes tendenciosamente ignorada, não merece o seu nome a não ser quando concebida como aberta tanto em direção ao passado como na direção do futuro. Significativamente, os que desejam fechar, na direção do futuro, a irrefreável dinâmica do desenvolvimento histórico são obrigados a fazer o mesmo na direção do passado – ou não conseguiriam fechar o círculo ideológico necessário. Isto é absolutamente verdadeiro, não apenas para as teorias menores concebidas do ponto de vista do capital, mas também para notáveis representantes dessa abordagem, como Hegel. O monumental plano do filósofo alemão – a tarefa consciente de obter a necessária compreensão do que ele chama sem qualquer ambiguidade de “verdadeira Teodiceia, a justificação de Deus na História”4 – afirma apresentar ao leitor o grandioso plano da autorrealização atemporalmente anunciada do Espírito do Mundo. É notável que esse magnífico plano apriorista,

4 Hegel, The Philosophy of History, p. 457.

que deve ser fechado na direção do futuro, culmine, na filosofia hegeliana da his­

tória, em uma fase que não é outra senão a da dominância da Europa capitalista e imperialista, descrita como “absolutamente o fim da história”. E como, na quali­

dade de movimento histórico, ele também deve ser fechado na direção do passado para se manter perversamente coerente com sua base ideológica de determinação negadora do futuro, toda a proclamada “verdadeira Teodiceia” tem de ser descrita por Hegel como processo supra­histórico de desvendamento (o que já vimos no primeiro capítulo) do “eternamente presente”... O presente do Espírito do Mun­

do, que “sempre existiu” e só pode ser devidamente compreendido se espelhado pela encarnação filosófica do “círculo dialético”, nas palavras do próprio Hegel.

4.2.3

Nestas questões, o que realmente está em jogo é a natureza do capital, não as características fictícias da “natureza humana”, muito menos “a justificação de Deus na História”.

Esta é uma questão não só extremamente complicada, pois os aspectos his­

tóricos do modo de controle sociometabólico do capital estão inextricavelmente entrelaçados em sua dimensão trans­histórica, criando a ilusão de que o capital paira acima da história. É também da maior importância prática – e literalmente vital para a sobrevivência humana. Evidentemente, é impossível adquirir con­

trole sobre as determinações alienantes, desumanizantes e destrutivas do capital (que demonstrou ser incontrolável ao longo de toda a história), sem a compreensão de sua natureza.

Segundo Marx, a natureza do capital permanece a mesma tanto em sua forma desenvolvida como na subdesenvolvida5. Isto não é absolutamente uma sugestão de que o capital possa fugir às restrições e limites da história, inclusive à delimitação histórica de seu período de vida. Para tornar inteligíveis esses problemas não de­

vemos situá­los num “círculo dialético” hegeliano determinado pela classe, mas no quadro de uma ontologia social dialética de fundamentação objetiva, que não deve ser confundida com as tradicionais variedades teológicas ou metafísicas da ontologia. A identidade das formas desenvolvida e subdesenvolvida do capital só se aplica à sua natureza mais profunda, não à sua forma e a seu modo de existência sempre historicamente adaptados.

O papel socialmente dominante do capital em toda a história moderna é óbvio. No entanto, é necessário explicar como é possível que, sob certas condições, uma dada “natureza” (a natureza do capital) se desdobre e se realize – de acordo com sua natureza objetiva, com suas potencialidades e limitações inerentes – seguin­

do suas próprias leis internas de desenvolvimento (apesar até dos antagonismos mais violentos, com as pessoas negativamente afetadas por seu modo de funcio­

namento), desde a forma subdesenvolvida até a forma da maturidade.

Neste sentido, é preciso entender a dialética objetiva da contingência e da necessidade, assim como do histórico e do trans-histórico no contexto do modo de funcionamento do sistema do capital. Esses são os parâmetros categorizadores

5 Marx, O capital, vol. 1, p. 288.

que ajudam a identificar os limites relativos e absolutos dentro dos quais o poder sempre historicamente ajustado do capital se afirma trans-historicamente, através de muitos séculos. Sujeito a essas determinações categóricas e estruturais, o capital – na qualidade de modo de controle sociometabólico – pode afirmar, acima de todos os seres humanos, as leis funcionais que emanam de sua natureza, sem levar em conta a boa ou a má disposição que pudessem ter em relação ao impacto dessas leis sob determinadas circunstâncias históricas.

A natureza inalterável do capital (o mesmo que sua determinação estrutural objetiva) o torna

• 1) eminentemente próprio para a realização de certos tipos de objetivos na estrutura sistêmica de suas mediações de segunda ordem e

• 2) total e poderosamente hostil a aceitar todos os tipos que não se ajustam à rede estabelecida da segunda ordem de mediações, não importando quão vitais forem os interesses humanos em suas raízes.

É isto que circunscreve a viabilidade histórica do capital para cumprir as funções de um processo de reprodução social viável em termos (1) positivos e (2) negativos.

Um dos exemplos dados por Marx para ilustrar a identidade da natureza do ca­

pital em sua forma desenvolvida e na subdesenvolvida diz respeito ao relacionamento entre credor e devedor:

O código que a influência dos proprietários de escravos impôs sobre o território do Novo México pouco antes da irrupção da guerra civil norte­americana diz que o trabalhador, dado que o capitalista comprou sua força de trabalho, “é o seu [do capitalista] dinheiro”.

A mesma ideia corria entre os patrícios romanos. Através dos meios de subsistência, o dinheiro que estes haviam adiantado ao devedor plebeu foi transformado na carne e no sangue do devedor. Portanto, essa “carne e sangue” eram seu dinheiro. Por isso a lei de Shylock das Dez Tábuas, a hipótese de Linguet de que os credores patrícios de vez em quando preparavam do outro lado do Tibre banquetes com a carne dos devedores podem continuar tão sem confirmação quanto a de Daumer sobre a Eucaristia cristã.6

O caso é que o capital deve afirmar seu domínio absoluto sobre todos os seres humanos, mesmo na forma mais desumana, quando estes deixam de se adaptar a seus interesses e a seu impulso para a acumulação. É isto que faz da “lei de Shylock” não uma aberração ou uma exceção, mas a regra “racional” durante as metamorfoses das formas subdesenvolvidas do capital para as desenvolvidas. Se compararmos as monstruo­

sas desumanidades do sistema do capital no século XX realizadas numa escala de massa outrora inconcebível (dos horrores da primeira guerra imperialista global de 1914­18, passando pelo Holocausto nazista e pelos campos de trabalho de Stalin, até as bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki), a abordagem “artesanal” limitada de um Shylock shakespeariano se desbota, tornando­se insignificante. A adaptação histórica às novas circunstâncias do extermínio de massa em nada mudou a natureza do capital. Ao adotar a variante despersonalizada da “lei de Shylock” original para atender às circunstâncias mudadas, o capital foi capaz de impor à humanidade as desumanidades ditadas por sua natureza numa escala incomensuravelmente maior do que nunca, ao mesmo tempo isen­

6 Id., ibid.

tando muito convenientemente suas próprias personificações de culpa e responsabilidade.

Com isso, o capital apenas mudou seu modo e seus meios de funcionamento anteriores, utilizando todas as tecnologias e todos os instrumentos de destruição disponíveis contra as dificuldades que teve de superar, de acordo com sua natureza.

Do ponto de vista do capital, até as mais problemáticas formas do desenvolvi­

mento histórico devem ser caracteristicamente apresentadas com “positivismo acrítico”.

Isto realmente deve ser feito até pelos maiores pensadores, inclusive por Hegel, que conceituam o mundo a partir do ponto de vista necessariamente simplificado do capital. Portanto, não é nada espantoso que a racionalização idealista das contin­

gências materiais e, assim, sua estranha elevação ao plano sublime da “necessidade ideal” imponha suas consequências negativas a todos os níveis da filosofia hegeliana.

Mesmo os mais palpáveis processos materiais devem ser virados e revirados de todos os lados no interesse da apologética social. Ou seja, dada sua condição de fato material, eles se originariam da absolutamente inquestionável, acima de tudo incensurável, autodeterminação da Ideia em si, conforme o “princípio” e a “categoria” idealmente estipulados do período histórico a que pertencem os fatos em questão.

À guisa de exemplo, poderíamos pensar na maneira como Hegel idealiza até mesmo a tecnologia da guerra moderna. Ele chega a essa idealização “deduzindo” o armamento moderno do que, em sua visão, deve ser o ápice das determinações filoso­

ficamente mais louváveis: “o pensamento e o universal”. Hegel assim apresenta a seus leitores uma peculiaríssima dedução filosófica:

O princípio do mundo moderno – o pensamento e o universal – deu à coragem uma forma superior, porque sua manifestação agora parece mais mecânica, não ato desse indivíduo particular, mas do membro de um conjunto. Além do mais, parece ter­se voltado não contra um único indivíduo, mas contra um grupo hostil, daí a bravura pessoal parecer impessoal. É por esta razão que o pensamento inventou o canhão, e a invenção desta arma, que transformou a forma da valentia exclusivamente pessoal em uma bravura mais abstrata, não é acidental.7

Assim, por sua origem direta do “princípio do mundo moderno”, a contin­

gência material do armamento moderno cada vez mais poderoso, enraizado na tecnologia capitalista em expansão global, não adquire apenas sua “necessidade ideal”. Ela também é simultaneamente colocada acima de qualquer crítica conce­

bível, em virtude de ser plenamente adequada – “a racionalidade do real” – a este princípio. Além do mais, como Hegel associa de maneira inextricável a coragem como “mérito intrínseco” ao “final absoluto, a soberania do Estado”8, encerra­se o círculo apologético da história, atingindo sua culminação no Estado germânico

“civilizador” do sistema do capital, com seu armamento moderno cruelmente eficaz

“inventado pelo pensamento” em nome da realização da “imagem e realidade da razão” numa adequada forma “impessoal”.

No entanto, apesar da grandeza intelectual de seu mentor, é mais do que absur­

do o pensamento de que a destruição em massa de seres humanos (exatamente por dirigir­se contra grupos e não contra indivíduos particulares, como se grupos de pes­

soas eliminadas pudessem ser simplesmente considerados “números de um conjunto”

7 Hegel, The Philosophy of Right, p. 212.

8 Id., ibid., p. 211.

No documento P ara além do capital (páginas 174-184)