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A eternização do historicamente contingente: a arrogância fatal da apologia do capital de Hayek

No documento P ara além do capital (páginas 184-194)

DO CAPITAL

4.3 A eternização do historicamente contingente: a arrogância fatal da apologia do capital de Hayek

4.3.1

A especificidade histórica da segunda ordem de mediações do capital só pode ser compreendida se sua dimensão trans-histórica (ou seja: a relativa continuidade de

sua reprodução bem­sucedida pelos séculos afora) não for confundida com seus antecedentes históricos muito distantes, mas de substância socioeconômica bastante diferente.

Isto se torna ainda mais importante diante do fato de que os apologistas do sistema do capital, como o Companion of Honour da baronesa Margaret Thatcher, F. A. von Hayek, projetam as relações capitalistas de troca até a fase mais antiga da humanidade, para poderem eternizar o modo específico de reprodução expandida do atual sistema socioeconômico baseado na regra do capital, e na respectiva “ordem econômica ampliada”.

O caráter militante antissocialista dessas teorias pseudocientíficas e não históricas torna­se evidente quando nos dizem que o sistema do capital corresponde à “ordem ampliada espontânea criada por um mercado competitivo”9 e que...

A disputa entre a ordem do mercado e o socialismo é nada menos que uma questão de sobrevivência. Seguir a moral socialista destruiria boa parte da humanidade do presente e empobreceria boa parte do restante. ... somos forçados a preservar o capitalismo por causa de sua capacidade superior de utilização do conhecimento disperso. [O capitalismo é] uma ordem econômica insubstituível.10

Nesse tipo de teoria, que funciona com analogias vazias arbitrariamente extraídas das ciências biológicas, uma escuridão proverbial desce sobre a terra em nome da eternização do capital e não apenas faz todas as vacas parecerem negras, mas ao mesmo tempo elimina suas diferenças em relação às outras criaturas. É claro que estamos sempre caindo na armadilha do “positivismo acrítico” de Hayek, uma vez que aceitemos, à luz da estipulada escuridão, que a única cor que pode legitimamente existir (no espírito daquele decreto de Henry Ford: o freguês pode escolher qualquer cor para seu carro, desde que seja o preto) é o preto mais negro possível, senão a sobrevivência humana correria um risco mortal com os presunçosos socialistas – “que destruiriam boa parte da humanidade hoje exis­

tente”. Pois se aceitamos seu pensamento – que iguala qualquer possibilidade de expansão socioeconômica com sua variedade capitalista – também se espera que aceitemos “racionalmente” a irracional proposição segundo a qual a atualmente dominante “ordem ampliada”...

emergiu da conformidade acidental a certas práticas tradicionais amplamente morais, muitas das quais os homens não apreciam tanto e cujo significado eles não compreendem e cuja validade não podem comprovar.11

A lógica suicida invertida com que Hayek justifica o capital absolutamente não conhece limites. Segundo ela, o capital é a origem do trabalho (não o contrário), merecendo portanto a veneração intelectual sem fronteiras e a maior aprovação moral. Nas palavras de Hayek: “Quando perguntamos o que os homens devem

9 F. Hayek, The Fatal Conceit: The Errors of Socialism, p. 7.

10 Id., ibid., pp. 7­9.

11 Id., ibid., p. 6. O grifo em “morais” é de Hayek.

às práticas morais dos chamados capitalistas, a resposta é: suas próprias vidas”12. Não obstante, os ingratos trabalhadores criados e mantidos vivos pelos generosos sujeitos chamados de capitalistas não hesitam em morder a mão que os alimenta, em vez de “se submeterem à disciplina impessoal”13 necessária para o bom fun­

cionamento do melhor dos mundos, a “ordem econômica ampliada” do capital...

Pois, “embora essa gente talvez se sinta [o grifo é de Hayek] explorada e os políticos possam brincar com esses sentimentos para ganhar poder, grande parte do proleta­

riado ocidental e grande parte dos milhões no mundo em desenvolvimento devem sua existência às oportunidades que os países avançados criaram para eles”14. Sua ingratidão também traz consigo a mais lamentável e autodestrutiva irracionalida­

de porque, como consequência, “o capital às vezes é impedido de fornecer tudo o que poderia para os que desejam aproveitar­se dele, porque os monopólios de grupos de trabalhadores organizados, ‘sindicatos’ que criam uma escassez artificial de seu tipo de trabalho, não permitem que outros façam, por salário mais baixo, o trabalho que recusam”15.

Entretanto, a culpa da irracionalidade não reside nas tentativas dos trabalhadores de se defenderem, com muito pouco sucesso, contra a compulsão infinita de reduzir custos do capital. Ao contrário, é a glorificação que Hayek faz do sistema “insubstituí­

vel” do capital – com seu círculo vicioso de mediações da segunda ordem – que torna a teoria das manchas solares das crises econômicas formulada por Jevons o paradigma da racionalidade.

Segundo Hayek, a única forma aceitável da racionalidade é a anarquia do mer­

cado, “precipitada nos preços”16, que deve ser tratada como o referencial absoluto de toda atividade econômica, social e política. Naturalmente, o “mercado livre” idea­

lizado pelo autor de A arrogância fatal não existe em lugar algum. Nem em relação a sua arrogância fatal, altamente divulgada pelos interesses capitalistas. Pois, se por um lado o autor sucintamente descarta “os intelectuais em geral” por sua relutância em abandonar o controle de seus próprios produtos a uma ordem de mercado”17, por outro ele é a última pessoa a permitir que o mercado seja o único juiz da viabilidade econômica de seus próprios livros. Ao contrário, este sumo sacerdote do “mercado livre” da “ordem ampliada” do capital se entrincheira atrás dos batalhões ricamente encouraçados das mais reacionárias organizações de propaganda do chamado sistema de “livre empresa”, desde The Heritage Foundation, em Washington D.C., e do Institute of Economic Affairs, em Londres, até a Fundação Sueca da Livre Empresa, em Estocolmo – todos atuando como generosos patrocinadores financeiros na pu­

12 Id., ibid., p. 130.

13 Id., ibid., p. 153.

14 Id., ibid., 131. Na p. 111, Hayek acrescenta que “os principais beneficiários” do sistema capitalista são os

“membros do proletariado”. Com isso, podemos nos perguntar por que ele protestaria, na p. 74, contra

“a infrutífera tentativa de tornar justa uma situação”. Se a ordem existente é tão generosa em favor do proletariado, como ele afirma, não há nada a temer da controvérsia moral racionalmente formulada.

15 Id., ibid.

16 Id., ibid., p. 99.

17 Id., ibid., p. 82.

blicação de sua obra completa: prática que Hayek, seus amigos e ricos promotores da “direita radical” sem dúvida condenariam com a maior indignação ideológica se ocorresse na esquerda... Como os capitalistas em geral, que pensam que os outros devem se adaptar às “regras do jogo”, ao passo que eles mesmos quebram as regras sempre que possam fazê­lo sem riscos, Hayek e seus amigos militantes da ala direita descaradamente dobram as condições do “mercado livre” a seu favor, exigindo ao mesmo tempo em altos brados que os intelectuais – especialmente os intelectuais socialistas – “abandonem o controle de seus próprios produtos a uma ordem de mer­

cado”. Assim, supõe­se que um conjunto de regras é apropriado para o Companion of Honour de Margaret Thatcher e outro muito diferente para seus adversários. A não existência do “mercado livre” idealizado não tem a menor consequência para Hayek e seus patrocinadores. A sua apologia serve aos fins da cruzada antissocialista e a mais nada. Não se espera nem se permite que alguém questione a validade dos procedimentos adotados, muito menos os críticos socialistas. Condenam­se todas as formas viáveis da alternativa socialista como “racionalismo construtivista” e, no mesmo fôlego, isentam­se as mediações de segunda ordem do próprio sistema do capital de qualquer escrutínio racional.

Hayek não defende a rede estabelecida das mediações de reprodução com ar­

gumentos racionais, mas com definições circulares. A racionalidade é excluída a priori do tribunal, em nome dos insondáveis “mistérios” da “ordem econômica ampliada”, cuja validade ninguém pode nem deve sequer tentar demonstrar, segundo o autor de A arrogância fatal. Se Stanley Jevons pelo menos desejou sustentar uma estrutura causal explicativa, mesmo deixando de identificar as causas reais das crises capitalistas, em sua tentativa de torná­las inteligíveis e de, no devido tempo, enfrentá­las, a apologia pseudocientífica de Hayek está muito ansiosa por excluir todas as explicações causais.

Por isso, ele insiste em que “a criação da riqueza ... não pode ser explicada por uma cadeia de causa e efeito”18 – e anuncia a decisiva inquestionabilidade dessa posição arbitrária para desqualificar o questionamento, feito por outros, em bases racional­

mente contestáveis, da viabilidade das mediações da segunda ordem do capital, tão propícias à crise.

Se alguém levanta a questão de como se justificaria uma teoria tão estranha, a resposta é outro rodeio falaciosamente autoritário, a alegação de que “a questão da justificação é apenas uma cortina de fumaça”19 – e, com isso, somos convidados a adotar o bom­senso popperiano: “Nunca se sabe do que se está falando”20. Aquele que pensa ser um objetivo legítimo da pesquisa econômica racional tentar remediar os problemas identificados do sistema de reprodução social é logo descartado pelo autor de A arrogância fatal como gente que sofre “da ilusão de que a macroeconomia existe e é útil”21.

18 Id., ibid., p. 99.

19 Id., ibid., p. 68.

20 Id., ibid., p. 61. A citação é da p. 27 da “Autobiografia” de Popper, em The Philosophy of Karl Popper, editado por P. A. Schilpp, La Salle, Open Court, 1974; nova edição revisada com o título Unended Quest, Londres, Fontana/Collins, 1976.

21 Hayek, ibid., p. 98.

Com a defesa de uma postura tão irracional, não é de espantar que Hayek definisse a natureza da teoria econômica em termos igualmente irracionais e ocos, quando proclamou que “a estranha tarefa da economia é demonstrar aos homens como eles realmente conhecem muito pouco do que imaginam poder planejar”22. Ao mesmo tempo, descobrimos que não apenas a abordagem marxista, mas virtualmente todo o conjunto da filosofia e da teoria social, política, psicológica e sociológica (até mesmo a maior parte da teoria econômica, com a notável exceção da “revolução marginal” e seus supostos anunciadores, como Adam Smith) – a começar pelas ideias de Platão e Aristóteles, prosseguindo com as de Tomás de Aquino, Descartes, Rousseau, Hegel, Comte, James e John Stuart Mill, chegando às de Einstein, Max Born, G. E. Moore, E. M. Forster, Keynes, Freud, Bertrand Russell, Karl Polányi, Monod, Piaget e muitos outros – é sumariamente descartado como “erros” e con­

cepções fatalmente equivocadas. Além deles, não apenas “os intelectuais relutantes ao mercado”, mas também o sistema educacional em geral é seriamente censurado, por impedir que as pessoas enxerguem a luz no espírito das proposições de Hayek.

Segundo este, seus princípios (que pena!) são “altamente abstratos, especialmente difíceis de serem apreendidos pelos que têm formação nos cânones da racionalidade mecanicista, cientificista ou construtivista que dominam o sistema educacional”23. Tudo isto num livro cujo autor tem a petulância de papaguear sobre a “arrogância fatal” de outras pessoas.

Apesar disso, o âmago teórico da eternização da “ordem econômica ampliada”

de Hayek nada tem de “altamente abstrato, especialmente difícil de ser apreendido”.

Ao contrário, está construído em torno de uma tautologia perfeitamente singela: ele apenas afirma o fato incontestável, e singularmente pouco esclarecedor, de que o imenso número de pessoas hoje existentes não sobreviveria materialmente se a econo­

mia necessária para sua sobrevivência material não lhes tornasse possível sobreviver.

Mas, é claro, esta proposição ignora totalmente os incontáveis milhões que tiveram (e continuam tendo) de sofrer, e até de perecer, sob as condições da “ordem ampliada do capital”, além de não dizer absolutamente nada sobre a sua futura sustentabilidade – ou insustentabilidade, fosse lá qual fosse o caso. Em vez disso, o autor dessa A arro-gância fatal extrai de sua afirmação central (com a autoridade de um dos habituais decretos falaciosos ex-cathedra hayekianos) a glorificação da tirania e da perversidade estruturalmente reforçadas das relações de mercado capitalistas, que, em sua visão, devemos aceitar – a não ser que sejamos favoráveis à extinção da humanidade. O que Hayek chama de “justiça distributiva” é...

... incompatível com uma ordem de mercado competitiva, com o crescimento ou mesmo a manutenção da população e da riqueza ... A humanidade não poderia ter atingido, nem hoje manter, seu número presente sem uma desigualdade que não é determinada por, nem compatível com, quaisquer julgamentos morais deliberados. Naturalmente, o esforço pode melhorar as oportunidades individuais, mas não pode por si só garantir resultados. A inveja dos que o tentaram, embora perfeitamente compreensível, trabalha contra o interesse comum. Portanto, se

22 Id., ibid., p. 76.

23 Id., ibid., p. 88.

o interesse comum é realmente nosso interesse, não devemos ceder a esse traço instintivo muito humano, mas sim permitir que o processo do mercado determine a recompensa. Ninguém pode avaliar, senão pelo mercado, o tamanho da contribuição de um indivíduo ao produto total.24

Se fosse possível levar a sério essas palavras, Hayek deveria ter recusado o rico patrocínio reacionário de seus próprios livros, a recompensa politicamente motivada de seu prêmio Nobel e a igualmente política recompensa representada pelo título de Companion of Honour recebido de Margaret Thatcher – nenhum dos quais

“deter minado pelo processo de mercado”. O real significado do decreto de Hayek é bastante diferente. Está formulado a partir da posição de poder e no interesse da ordem dominante, que recompensa com prêmios Nobel e outras grandes honrarias (totalmente livres dos processos do mercado) seus meritórios filhos e filhas – na­

turalmente, mais filhos do que filhas. As normas “competitivas” da economia do

“mercado livre” foram criadas para restringir e manter permanentemente em sua posição de subordinação estrutural os que se encontram no lado fraco da “ordem econômica ampliada” – ou seja: a avassaladora maioria da humanidade. Ao mesmo tempo, até os indivíduos aspirantes à pequena burguesia que se deixam lograr pelos preceitos da propaganda conservadora segundo a qual “esforços trazem resultados”, desde que sejam “esforços bastante duros”, devem ser advertidos, para que a “inveja”

não lhes traga dúvidas sobre a idealidade da tal “ordem econômica insubstituível”.

Menos ainda podem se permitir que essas dúvidas os deixem tentados a morder a mão que os alimenta, como supostamente fez o trabalho, ao formar “sindicatos monopolistas” para proteger seus “salários injustamente elevados” à custa dos que fariam o trabalho por salários ainda mais baixos. O “interesse comum” – e agora subitamente nos deparamos com a ideia do “interesse comum” que devemos adotar como valor incontestável, ao passo que em outras partes d’A arrogância fatal Hayek nos diz que não existe algo como um discurso racional sobre moral e valores – é a aceitação inquestionável da subjugação permanente da imensa maioria da humani­

dade ao domínio do capital.

4.3.2

Dado que o mercado idealizado por Hayek tem caráter anárquico, a história deve ser reescrita de trás para diante, para caber no mesmo quadro. Os avanços capitalistas são assim explicados: “... pode­se dizer da renovação da civilização europeia na Alta Idade Média, que a expansão do capitalismo – e da civilização europeia – deve sua origem e sua raison d’être à anarquia política”25. Hipótese igualmente absurda “explica” a queda do Império Romano, com a projeção de mais um dos dogmas favoritos de Hayek – desta vez, contra a “interferência do Estado”: o declínio e queda ocorreram “só depois que a administração central em Roma tomou o lugar do livre empreendimento”26. Como se, antes de mais nada, o estabelecimento do Império Romano nada tivesse a ver com as deploradas práticas de interferência de sua “administração central”.

24 Id., ibid., pp. 118­9.

25 Id., ibid., p. 33.

26 Id., ibid., p. 32.

Nesse mesmo espírito, embora aqui invertendo a ordem histórica, relações monetárias bastante primitivas são quixotescamente projetadas à frente como um ideal para o futuro, com a postulação de que “a economia de mercado seria bem mais capaz de desenvolver suas potencialidades se o monopólio governamental do dinheiro fosse abolido”27, por “tornar impossível a experiência competitiva”28. Numa era em que o “monopólio governamental do dinheiro” exercido por Estados nacionais está ameaçado – não por algum Linen Banks local ou pela tentativa de algumas pequenas firmas construtoras de soltarem suas próprias marcas de papel moeda, mas pelo con­

traditório desenvolvimento transnacional do capital, tanto na União Europeia como em outras partes do mundo –, a proposta de Hayek de adoção de uma “experiência local” com o dinheiro, mantendo­se acriticamente a própria estrutura da “ordem eco­

nômica ampliada” do capital, diz maravilhas de sua maneira de defender as mediações de segunda ordem do capital.

A força orientadora da apologia que Hayek faz do capital é o ódio patológico ao projeto socialista. Como Marx critica a reificação e o fetichismo do dinheiro, para Hayek eles devem ser aclamados como boa coisa e, consequentemente, “o misterioso dinheiro e as instituições financeiras nele baseados” devem estar isentos de qualquer crítica29. A lente distorcida de seu ódio, encerrada em mais um “argumento” circular, transforma até Aristóteles num deplorável socialista, com base em que na cada vez mais desperdiçadora “ordem econômica ampliada” do capital...

A preocupação com o lucro é exatamente o que possibilita o uso mais eficaz dos recursos.

... O nobre slogan socialista, produção para uso, não para lucro, que encontramos sob uma ou outra forma, de Aristóteles a Bertrand Russell, de Albert Einstein ao arcebispo Câmara do Brasil ( geralmente, desde Aristóteles, com o acréscimo de que esses lucros são feitos “à custa de outros”), trai a ignorância de como a capacidade produtiva é multiplicada por diferentes indivíduos.30

O problema com esse raciocínio não é apenas sua circularidade: a presunção arbitrária do que se deveria pelo menos tentar comprovar – que “a preocupação com o lucro é exatamente o que possibilita o uso mais eficaz dos recursos” – é que justi­

fica a triunfante e falaciosa conclusão de que Aristóteles e outros socialistas ignoram a “verdade” não comprovada de Hayek. Pior ainda, Hayek se mostra cego – tem de ser assim, em nome da apologia do capital – para o aspecto realmente óbvio de sua hipótese. Literalmente: o “uso mais eficaz dos recursos” de que ele fala, quando associado à “preocupação com o lucro”, está rigorosamente confinado ao tipo de produção sujeita à produção de lucro, em cujos termos sua viabilidade é avaliada e aprovada ou – caso não corresponda aos critérios de lucratividade estipulados – im­

27 Id. ibid., p. 104.

28 Id. ibid., p. 103.

29 Assim, ficamos sabendo que “o preconceito que surge da desconfiança das misteriosas esferas atinge um tom ainda mais alto quando dirigido às mais abstratas instituições de uma civilização avançada da qual depende o comércio, que faz a mediação dos efeitos da ação individual mais geral, indireta, remota e desapercebida e que, embora indispensável para a formação da ordem estendida, tende a velar seus mecanismos de orientação das sondagens: o dinheiro e as instituições financeiras nele baseados”. Id., ibid., p. 101.

30 Id., ibid., p. 104.

placavelmente rejeitada. E rejeitada de maneira muito negligente (ou deliberadamen­

te ignorante) em relação ao sofrimento, e até à mais descuidada eliminação das condições da reprodução sociometabólica sustentável, causada inevitavelmente pela adoção deste caminho.

Isto nos leva ao aspecto mais problemático da abordagem de Hayek até em seus próprios termos de referência: sua incapacidade de assumir uma postura críti­

ca em relação até mesmo às dimensões mais destrutivas do sistema do capital. Por definição, “crescimento” deve ter uma conotação positiva em sua teoria, já que ele deseja provar em base quase dogmática a superioridade das mediações de segunda ordem do capital em relação a qualquer alternativa viável do socialismo. Com isso, ignoram­se as consequências destrutivas do crescimento capitalista, e a preocupa­

ção com a sombra cada vez mais escura desse crescimento, em quaisquer de seus aspectos ligados às tendências conhecidas da “ordem ampliada”, é descartada como insignificante, até mesmo quando essa preocupação é expressa por seus próprios camaradas de luta. Hayek então afirma com desaprovação que “até um filósofo sensível [quer dizer: um adepto da “direita radical”] como A.G.N. Flew louvou Julian Huxley por admitir prematuramente, ‘antes que isso fosse admitido ampla­

mente como o é hoje, que a fertilidade humana representa a maior ameaça para o bem­estar presente e futuro da raça humana’”. E Hayek logo acrescenta: “Tenho argumentado que o socialismo constitui uma ameaça para o bem­estar presente e futuro da raça humana, no sentido de que nem o socialismo nem qualquer outro substituto conhecido para a ordem do mercado poderia sustentar a atual população mundial”31. Contudo, logo em seguida, tudo o que ele apresenta é uma esperança otimista, expressa em termos de “acredito que”

Podemos ter a esperança e a expectativa de que, uma vez exaurido o restante da reserva de pessoas que estão agora entrando na ordem ampliada, o aumento de seu número, que tanto aflige as pessoas, irá aos poucos retroceder. ... Acredito que o problema já esteja diminuindo: a taxa de crescimento populacional aproxima­se agora de seu ponto máximo ou já o atingiu e não subirá muito, mas cairá.32

Certamente o risco de uma “explosão populacional” frequentemente enuncia­

do é apresentado de maneira tendenciosa pelos que se identificam com o ponto de vista do capital, pois têm de buscar soluções compatíveis com os limites estruturais do sistema – de preferência, capazes até de estendê­los. Será necessário levar este problema em conta na seção 5.4. Como dificuldade histórica a ser enfrentada hoje (mesmo que, como inegável dificuldade, tenha natureza muito diferente dos habi­

tuais diagnósticos neomalthusianos de uma prevista “explosão populacional”), ela tem implicações bem mais graves para a viabilidade do sistema do capital do que se poderia manejar por meio de um genérico “controle populacional” biológico, seja na tradicional forma selvagem, afirmando­se como fome em massa e outras cala­

midades, ou por meio de uma variedade mais sofisticada de controle populacional, administrada em sintonia com os requisitos de uma “alta tecnologia” lucrativa. No

31 Id., ibid., p. 121. A citação é da p. 60 de Evolutionary Ethics, Londres, A. G. N. Flew, Macmillan, 1967.

32 Hayek, ibid., p. 128.

presente contexto, o importante é que A arrogância fatal de Hayek se recusa ob­

tusamente a levar a sério o problema em si, cuja existência é admitida até por seus aliados ideológicos mais chegados. Se ele tivesse de reconhecer que algo está errado neste importante plano do processo de reprodução capitalista, estariam certamente solapados sua idealização da “ordem econômica ampliada” e seu conceito de “cres­

cimento” cruamente identificado à acumulação do capital, defendidos sem a menor crítica por Hayek, ainda que só se possam realizar com a violação das necessidades elementares de incontáveis milhões de seres humanos.

Para Hayek, as coisas são muito simples em suas equações de apologia do capital: “sem os ricos – os que acumularam o capital – os pobres que existissem seriam ainda mais pobres”33. E assim, no que diz respeito às pessoas “que vivem nas periferias ... por mais doloroso que seja este processo, também elas, ou melhor, especialmente elas se beneficiam da divisão do trabalho formada pelas práticas das classes empresariais”34 ... “ainda que isto signifique morar por algum tempo [sic!] em favelas das periferias”35. Naturalmente, defende­se a costumeira selvageria de deixar a última palavra do julgamento ser pronunciada pela presença ou ausência de acu-mulação lucrativa de capital – para o que absolutamente nenhuma alternativa deve ser contemplada, nem por um momento – em questões que afetam o tamanho da população, quando se argumenta, com ilimitada hipocrisia (em nome da retidão moral), que...

... poderá realmente surgir um conflito moral, se os países materialmente avançados continuarem a dar assistência ou mesmo a subsidiar o crescimento das populações [nas regiões subdesenvolvidas]... qualquer tentativa de manter as populações além do volume em que o capital acumulado ainda possa ser normalmente reproduzido, o número que poderia ser mantido diminuiria. A menos que interfiramos, somente as populações capazes de se alimentar aumentarão.36

Depois de tudo isso, não é de espantar que a linha de argumentação de Hayek termine em uma nota autocomplacente: “De qualquer maneira, não há risco de que, em algum futuro previsível que possa nos preocupar, a população esgote os recursos materiais naturais do mundo; temos todas as razões para pressupor que forças ineren-tes deterão esse processo muito anineren-tes de isso acontecer”37. E assim a idealização das mediações de segunda ordem do capital é levada a seu extremo, apresentando uma rematada tranquilização sobre a absoluta viabilidade e a eterna persistência da única ordem econômica “natural”...

4.3.3

Com esses cânticos, os louvores às estruturas estabelecidas e ao modo de controle sociometabólico deve ter sido música suave para os governos dos países capitalistas dominantes no final dos anos 70 e por toda a década de 80. Algo compreensível

33 Id., ibid., p. 124.

34 Id., ibid., p. 130.

35 Id., ibid., p. 134.

36 Id., ibid., p. 125.

37 Id., ibid.

No documento P ara além do capital (páginas 184-194)