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As respostas da economia política clássica .1

No documento P ara além do capital (páginas 128-136)

DO CAPITAL

3.1 As respostas da economia política clássica .1

SOLUÇÕES PARA A INCONTROLABILIDADE

O único modo de controle reprodutivo social que se qualifica como socialista é o que se recusa a submeter as aspirações legítimas dos indivíduos aos imperativos fetichistas de uma ordem causal estruturalmente predeterminada. Em outras palavras, é um modo de reprodução sociometabólica verdadeiramente aberto com relação ao futuro, já que a determinação de sua própria estrutura causal permanece sempre sujeita à alteração pelos membros autônomos da sociedade. Um modo de controle sociometabólico que pode ser estruturalmente alterado pelos indivíduos diante dos fins conscientemente escolhidos, em lugar de um que lhes impõe, como hoje acontece, uma gama estreita e reificada de fins que emanam diretamente da rede causal preexistente do capital:

uma causalidade supostamente inalterável que opera acima das cabeças dos indivíduos.

Em contraste, até os maiores pensadores que perceberam e teorizaram o mundo do ponto de vista do capital, como fez o autor da Riqueza das nações, tiveram de defender a ilusão interesseira da permanência do sistema, não apenas de facto mas também de jure, ou seja: como alguém destinado por direito a continuar seu reinado até o final dos tempos. Eles justificavam essa postura argumentando que a ordem social com que se identificavam representava “o sistema natural da liberdade e da justiça perfeita”1 e, portanto, não seria concebível que necessitasse de grandes mudanças estruturais e, muito menos, das fundamentais.

A fatal incontrolabilidade do sistema do capital jamais foi um problema para aqueles que, dado seu ponto de vista social, não poderiam considerá-lo um modo de controle transitório. Mesmo quando dispostos a admitir que a própria ideia do controle era um tanto problemática em seu sistema preferido (na medida em que eram obrigados a postular a viabilidade do “controle sem um controlador ou controladores identificáveis”), fugiram das dificuldades implícitas nessa admis-são, apresentando um quadro idealizado – a princípio ingenuamente mas, com o passar do tempo, e tornando-se a crise de controle bastante óbvia para ser negada, cada vez menos ingenuamente.

Sem dúvida, os termos com que se “remediou” a reconhecida ausência de con-trole em todas essas teorizações do sistema do capital foram mudados para adaptar-se às circunstâncias, mas a idealização do remédio proposto – ilogicamente antecipado no diagnóstico tendencioso do próprio problema encontrado – continuou sendo seu método comum, de Adam Smith até o presente. Para mostrar essas correlações, bastaria discutir aqui três variedades representativas de avaliação da ausência de con-trole nesses dois últimos séculos, todas formuladas no espírito de retomar no final a admissão original e negar que o defeito admitido pudesse afinal ser considerado um defeito. Depois de examinada a solução de Adam Smith, a primeira na ordem histórica, a segunda abordagem típica que devemos observar rapidamente é a das diversas teorias da “utilidade marginal”, apegadas à crença no poder de controle do

“empresário” inovador, sob a condição de que ele traduza em boas estratégias de negócios as exigências do consumidor “maximizador de utilidade”. E, por fim, a terceira tentativa típica de discutir, e ao mesmo tempo “resolver” apologeticamente os dilemas do controle inseparáveis do sistema do capital, está centrada no semimítico

1 Adam Smith, An Inquiry into The Nature and Causes of the Wealth of Nations, ed. por J. R. McCulloch, Edimburgo, Adam and Charles Black, 1863, p. 273.

conceito do “administrador” da década de 1930 em diante, passando pela “revolução gerencial” de Burnham (1940) e pela réplica ansiosa de Talcott Parsons nos anos 50 até a “tecnostrutura” fictícia de Galbraith, que promete a todos os prováveis crentes nada menos do que a eliminação definitiva do problema socialista, graças à aclamada

“convergência” de todas as formas viáveis da reprodução socioeconômica eficaz sob a ordem das corporações.

3.1.2

A primeira maneira de identificar e escamotear o problema data da época do pai fundador da economia política clássica, Adam Smith. O postulado de Smith, de que as ações personalistas e limitadas de capitalistas particulares necessariamente produzem um resultado geral muitíssimo benéfico, continua sendo até hoje o modelo de todos os que ainda glorificam as insuperáveis virtudes do sistema do capital. O grande representante do Iluminismo escocês formulou sua argumentação da seguinte forma:

Assim como todo indivíduo se esforça o quanto pode para empregar seu capital em apoio à indústria nacional e assim orientar essa indústria de modo a dotar seu produto do maior valor possível, cada indivíduo necessariamente trabalha para tornar o rendimento anual da sociedade tão grande quanto possível. Em geral, ele não tenciona promover o interesse público nem sabe o quanto o está promovendo. Ao preferir apoiar a indústria nacional e não a estrangeira, ele visa apenas sua própria segurança; e, ao orientar essa indústria de modo a que seu produto tenha o maior valor, visa apenas seu próprio ganho, e neste caso, como em muitos outros, é guiado por uma mão invisível para promover um objetivo que não fazia parte de suas intenções. ... Ao buscar seu próprio interesse, é comum que promova o da sociedade com eficácia maior do que quando tenciona realmente promovê-lo. ... É evidente que o indivíduo, em sua situação local, poderá julgar, muito melhor do que qualquer estadista ou legislador, em que espécie de indústria nacional poderá empregar seu capital e qual o produto com a probabilidade de ter o maior valor.

O estadista que tentasse dirigir as pessoas quanto à maneira de empregar seus capitais não apenas se sobrecarregaria de cuidados bastante desnecessários, mas assumiria uma autoridade que não se poderia confiar seguramente, não apenas a pessoa alguma, mas a nenhum conselho, senado ou qualquer outra instituição; em lugar algum essa autoridade seria tão perigosa quanto nas mãos de um homem que tivesse tolice e presunção suficientes para acreditar-se adequado para exercê-la.2

Como se pode ver, Adam Smith primeiro admite que o capitalista individual só pode “esforçar-se o quanto puder” para tornar a riqueza de sua sociedade “tão grande quanto possível”. Contudo, quando chegamos ao final do trecho citado, ele declara ser uma “perigosa tolice” imaginar que a ordem das coisas por ele idealizada como

“sistema natural de perfeita liberdade e justiça” fosse passível de melhoria por qualquer outro tipo de autoridade decisória, esteja esta investida num indivíduo ou em algum órgão coletivo. É compreensível que desde então os conservadores mais extremados, não os progressistas seguidores do Iluminismo, tenham permanecido gratos a Smith por mostrar a obviedade dessa conclusão. Assim, para tomar-se um exemplo espe-cialmente reacionário, o guru e Companion of Honour (1984) de Margaret Thatcher,

2 Id., ibid., p. 199-200.

ganhador do prêmio Nobel, Friedrich August Hayek, escreveu que “o entusiasta do século XIX que declarou que a Riqueza das nações tinha uma importância só inferior à da Bíblia tem sido ridicularizado muitas vezes; mas ele talvez não tenha exagerado tanto”3. Sem jamais se preocupar com a contradição, Hayek também afirmava que a ideia da “mão invisível” de Adam Smith foi “a primeira descrição científica”4 dos pro-cessos do mercado, depois de acusá-lo, em capítulo anterior – pela mesma ideia – de permanecer preso ao “animismo”5.

É claro, comparada à irracionalidade – para falar a verdade, puro misticismo – do gênero de “teoria da utilidade marginal” defendida por Hayek e seus compa-nheiros ideológicos, o conceito da “mão invisível” de Adam Smith representa uma grande realização científica. O que, entretanto, não o torna científico ou plausível.

Como Smith teve de admitir para si mesmo, a meio caminho no raciocínio acima citado, a intensidade do esforço do capitalista individual não é, de forma alguma, garantia de sucesso para si ou para a sociedade em geral e, portanto, o sistema não poderia funcionar sem a “mão invisível”. Hoje, o grande pensador escocês estaria completamente perdido, pois também teria de admitir que um dos principais pilares de seu edifício explicativo – o favorecimento da indústria nacional contra a estrangeira, justificado em termos da evidente motivação racional do capitalista em relação a sua própria segurança – foi demolido por inteiro pela dominância das gigantescas corporações transnacionais no sistema global do capital. Ele também teria de renunciar à idealização das importantes qualificações do capitalista por sua

“situação local” sob as circunstâncias da “globalização” – atualmente idealizada no sentido oposto – da economia, que torna extremamente ingênua, se não inteira-mente desprovida de significado, a confiança de Adam Smith nas pretensainteira-mente bem entendidas estruturas da “situação local” como garantias de sucesso, pois na realidade graves problemas são gerados pelo imperativo vital do sistema de englobar todas as “situações locais” debaixo das imensas unidades monopolistas dos países capitalistas dominantes que se enfrentam, com seus interesses conflitantes, na economia mundial. Smith também não poderia dizer algo que sequer remotamente se aproximasse da aceitação geral de sua “máxima perfeitamente óbvia” segundo a qual “o consumo é o único fim e objetivo de toda a produção”6 num momento em

3 F. A. Hayek, The Fatal Conceit: The Errors of Socialism, Londres, Routledge, 1988, p. 146.

4 Id., ibid., p. 148.

5 “...até a ‘revolução subjetiva’ na teoria econômica da década de 1870 [ou seja, a formulação da ‘teoria da utilidade marginal’, I.M.], a compreensão da criação do ser humano era dominada pelo animismo – uma concepção de que mesmo a ‘mão invisível’ de Adam Smith proporcionava apenas uma fuga parcial.” (Id., ibid., p. 108).

6 As duas citações são de Adam Smith, op. cit., p. 298. O trecho de onde foram tiradas é o seguinte:

O consumo é o único propósito de toda a produção; o interesse do produtor deve ser atendido apenas até onde seja necessário para promover o do consumidor. A máxima é tão perfeitamente óbvia, que seria absurdo tentar comprová-la.

Como se pode ver, as práticas de produção e distribuição do sistema do capital em nossos dias estão em total desacordo com a descrição do que Adam Smith supõe ser o caso, e com sua estipulação da razão por que tudo – da maneira resumida por sua máxima – deveria ocorrer. Absurdo hoje, afinal de contas, seria não a tentativa de submeter ao escrutínio da crítica a “máxima perfeitamente óbvia”, mas deixar de fazê-lo.

que na verdade as personificações do capital devem inventar todos os tipos de subterfúgios – inclusive os instrumentos diretos da política do Estado – não ape-nas para enfiar goela abaixo dos consumidores mercadorias que não fazem falta alguma, mas também, o que é bem mais importante, para poder justificar, num mundo de carências gritantes, a distribuição de recursos mais desperdiçadora que se possa imaginar em benefício do complexo militar industrial.

A misteriosa e benfazeja “mão invisível” estaria hoje irremediavelmente falida em termos dos planos de Adam Smith, pois esse gênero de capitalista, se é que existe mesmo, está agora relegado a um papel de importância quase insignificante. Por conseguinte, ainda que aceitássemos a pertinência da metáfora de Smith como metáfora teórica para encher uma lacuna em sua época, hoje não se poderia dizer que a “mão invisível” guia as corporações dominantes, ordenando com isso a si-tuação geral de maneira universalmente benéfica. Os primeiros proponentes da

“teoria da utilidade marginal”, na década de 1870, já tiveram de mudar a ênfase do capitalista individual para o consumidor individual como o mais importante

“sujeito” de sua “revolução subjetiva”. E hoje, afora as ideias fictícias da “so-berania do consumidor”, as explicações relativas à maneira como as unidades econômicas dominantes do sistema do capital estão sendo controladas estão em nítida oposição ao postulado explicativo de Adam Smith, como veremos adiante na seção 3.3, sobre a terceira teorização típica do problema do controle do ponto de vista do capital.

A projeção da “mão invisível” de Adam Smith como força orientadora para seus capitalistas individuais equivale à admissão de que o sistema reprodutivo por ele idealizado é incontrolável. Para rebater todas as possíveis desconfianças, o grande pensador teve também de presumir que a misteriosa “mão invisível” é generosamente benevolente para os capitalistas particulares e ao mesmo tempo para toda a sociedade. Sobretudo, a “mão invisível” também deve atuar – en-quanto guia os atores capitalistas – como magnânima harmonizadora de todos os possíveis conflitos de interesse, inclusive o que existe entre produção e consumo.

Assim, é inconcebível o surgimento da contradição entre produção e controle – defeito central do sistema do capital –, pois a mão sumamente benevolente é postulada como o verdadeiro controlador que, por definição, é infalível em seu onipotente controle benéfico. Contudo, suponhamos que a “mão invisível” nem sempre, e não em relação a tudo, seja assim tão benevolente. Por um instante, este pensamento aparece como ameaça para Adam Smith:

O avanço das enormes dívidas que atualmente oprimem, e a longo prazo provavelmente arruinarão, todas as grandes nações europeias tem sido bastante uniforme.7

No entanto, ele não consegue admitir que o risco corretamente identifi-cado exige pelo menos alguma reconsideração de seu sistema geral. Não pode haver nenhuma correção para este, porque ele preenche a necessária função dual de concentrar a atenção nas dificuldades de controle – de modo a possibilitar o argumento a favor da ação remediadora em determinados contextos, no plano de efeitos e consequências – e, ao mesmo tempo, fazê-los desaparecer em termos

7 Smith, ibid., p. 143.

da caracterização do sistema como um todo. Pois, tão logo as implicações passem a ser ponderadas do ponto de vista do capital, devem-se abandonar a percepção e o reconhecimento, por parte de um grande pensador, de que os “sujeitos” que controlam um capitalista individual de seu sistema idealizado só podem constituir um pseudossujeito, por precisarem de uma força orientadora misteriosamente invi-sível mas benevolente atrás de si para obter algum sucesso. Por causa da separação radical de produção e controle, sob a regra do capital, não pode haver alternativa à afirmação dos imperativos objetivos do sistema do capital por meio da inter-mediação de tal pseudossujeito, fazendo com que as determinações incorrigíveis e incontroláveis do capital – como causa sui – prevaleçam acima das cabeças de todos os indivíduos, inclusive as “personificações do capital”. E, precisamente por-que o sistema do capital não pode funcionar de nenhuma outra maneira por-que não a identificação da pessoa ao ponto de vista do capital, como o faz Adam Smith, exclui-se a possibilidade de buscar soluções que prescindam da aceitação incondi-cional do quadro de referências estrutural do sistema – com sua incontrolabilidade objetivamente imposta – como “natural” e “perfeito”.

O ponto de vista do capital inevitavelmente derruba até um grande pensa-dor como Adam Smith. Os princípios orientapensa-dores do sistema impostos a Smith fazem-no – e a muitos outros que seguem seus passos – procurar respostas onde elas não estão. O discurso deles está limitado a tentar compreender os parâmetros do funcionamento do sistema do capital em termos das intenções e motivações do pessoal controlador. (Esta ideia persiste de Adam Smith até hoje, abrangendo todas as variedades de “marginalistas” – desde os que iniciaram a “teoria da utilidade mar-ginal” até seus recentes popularizadores intelectuais –, passando por Max Weber e Keynes, pelos que acreditam em alguma forma de “revolução gerencial”, até chegar aos mais entusiastas apologistas do sistema do capital, como Hayek.) Entretanto, não é a “intenção” ou “motivação para acumular” dos capitalistas individuais que decide a questão, mas o imperativo objetivo da expansão do capital. Sem conseguir realizar seu processo de reprodução expandida, o sistema do capital desmoronaria – mais cedo ou mais tarde, mas com certeza absoluta. No que diz respeito às motivações e “intenções subjetivas”, cada uma das personificações do capital “deve pretender”, por assim dizer, os fins delineados pelas determinações expansionistas do próprio sistema e não seus próprios “fins egoístas”, como indivíduos particulares. Sem impor a afirmação deste primado irracional do imperativo expansionista sobre todas as

“motivações” e “intenções pessoais”, o domínio do capital não se sustentaria nem no mais curto dos curtos prazos.

Em sua mais íntima determinação, o sistema do capital está totalmente orientado para a expansão – o que significa que está voltado nessa direção a partir de seu pró-prio ponto de vista objetivo – e é impelido pela acumulação, em termos da necessária instrumentalidade de seu objetivo projetado. É a mesmíssima correlação que aparece (e deve aparecer), do ponto de vista subjetivo das personificações particulares do capital, exatamente ao inverso – ou seja, eles devem apresentar seu sistema como voltado para a acumulação e impelido pela expansão. “Expansão” entra em seu campo de visão de maneira negativa, com força maior sob as circunstâncias de sua ausência nociva, em vez de entrar como a mais sólida e mais positiva determinação do sistema a que servem. Sob as condições de fracassos e distúrbios econômicos é que eles são

8 Marx, Capital, Moscou, Foreign Languages Publishing House, 1958, v. 1, p. 153.

9 A deturpação das determinações objetivas na qualidade de “motivos subjetivos” – e assim a fusão de objetivo e subjetivo de modo que o último estivesse imaginariamente subordinado ao outro – muitas vezes é associada à confusão de valor de uso e valor de troca, em nome de uma identificação igualmente semelhante de um com o outro. Esse gênero de mudança conceitual serve a uma finalidade explicativa. Com a ajuda dessas fusões arbitrariamente abrangentes, os autores em questão – de Adam Smith (que estipula o relacionamento harmonioso entre consumo e produção em sua “máxima perfeitamente óbvia” citada acima) a Hayek (que afirma que “o mercado termina produzindo um resultado sumamente moral”, op. cit., p. 119) – podem decretar não somente a “naturalidade” do capitalismo, mas também sua completa harmonia com as devidas aspirações subjetivas dos indivíduos. A análise de Marx ajuda a desemaranhar essas relações, enfatizando que...

A simples circulação das mercadorias – vender para produzir – é um meio de levar a cabo um propósito dissociado da circulação, ou seja, a apropriação dos valores de uso, a satisfação das necessidades.

obrigados a reconhecer a importância dos parâmetros sistêmicos e – esquecendo ou varrendo para baixo do tapete as críticas de Adam Smith sobre a política e os políticos

“perigosos” e também os “tolos” – fazem meia-volta, implorando a intervenção do governo para assegurar a expansão econômica geral. Pois são obrigados a perceber que, sem a livre expansão ininterrupta da economia, eles próprios, como indivíduos no mais alto escalão de suas próprias empresas, não poderão acumular nem para si nem para suas firmas. Ao mesmo tempo, no entanto, descrevem a si mesmos e a seu próprio impulso para a acumulação como o determinante decisivo da ordem estabelecida de produção, embora na realidade cumpram uma função essencialmente instrumental para o bom funcionamento do sistema – em outras palavras: atuam nele como “determinantes determinados” –, por mais vital, ou realmente insubstituível, que seja sua função instrumental, diante do fato de que o modo de controle socio-metabólico estabelecido é totalmente inconcebível sem a superposição hierárquica das personificações do capital à força de trabalho. Em qualquer caso, a própria ideia de

“acumulação” precisa ser desmistificada. Pois os fundos acumulados não podem estar livremente disponíveis para as personificações do capital a seu bel-prazer. Longe disso. Em um sentido (em suas ligações diretas a certos capitalistas), eles são mo-mentos subordinados da expansão do sistema; em outro (quando abstraídos desse elo e considerados um conjunto orgânico), a “acumulação do capital” é sinônimo de expansão. Na prática, as “intenções” e as “motivações” são determinadas de acordo com isso. Pois capital acumulado é capital morto – ou seja, absolutamente nenhum capital, apenas o entesouramento inútil do avarento –, a não ser que seja realizado como capital, constantemente reentrando em forma expandida no pro-cesso geral de produção e circulação. Se assim não fosse, o capitalista – nas palavras de Marx, o “avarento racional” – degeneraria em simples avarento: “um capitalista enlouquecido”8. Em todo caso, não há perigo de isto acontecer em escala significa-tiva; ocorre esporadicamente, pelo que o “capitalista enlouquecido” inevitavelmente deixa de ser um “capitalista racional” eficaz. O esmagador volume da acumulação capitalista está “predestinado” por determinações sistêmicas ao reinvestimento, sem o qual o processo de expansão e realização estaria encerrado, levando consigo o capital – e, naturalmente, todas as suas personificações dadas e potenciais – para o túmulo histórico9.

O importante aqui é que o sistema do capital permanece incontrolável preci-samente porque o relacionamento estrutural objetivo entre a intenção consciente e a exigência expansionista objetiva não pode ser revertido dentro dos parâmetros deste sistema sociometabólico particular em favor de intenções verdadeiramente controla-doras (isto é, intenções que deixariam a própria expansão sujeita ao teste das limitações positivamente justificadoras). Não pode haver espaço para intenções operacionais conscientemente executadas – ou seja, realmente autônomas – no quadro de referências estrutural do capital, porque os imperativos e as exigências rigorosamente instrumentais do sistema como um todo devem ser impostos e internalizados pelas personificações do capital como “suas intenções” e “suas motivações”. Qualquer tentativa de afastamento da necessária instrumentalidade resulta em intenções frustradas e nulificadas, ou seja, inteiramente quixotescas. O sistema segue (e implacavelmente afirma sobre todos os indivíduos, inclusive suas personificações “controladoras”) as próprias “determina-ções férreas”, não importando a gravidade de suas implica“determina-ções até para a sobrevivência humana e num prazo nem assim tão longo. Mas é claro que isto não pode ser admitido por aqueles que enxergam e teorizam o mundo do ponto de vista do capital. É este o motivo pelo qual o profundo diagnóstico de Adam Smith de um defeito fatídico no sistema do capital – sua incontrolabilidade por ação humana – teve de ser combina-do a uma renovada confiança mítica na sua, apesar de tucombina-do, continuada viabilidade (realmente “natural” e “permanente”). E também é por isso que Hegel – no rastro de Adam Smith – teve de caracterizar até mesmo os “indivíduos históricos do mundo”

como simples ferramentas nas mãos do “Espírito do Mundo”: o único ser com um relacionamento não ilusório entre consciência e ação.

Para examinar o controle do sociometabolismo, não pela misteriosa “mão in-visível” ou por sua reformulação hegeliana “universalizada” para toda a história do mundo, mas por meio de uma ação humana consciente e independente (uma ação capaz de agir de tal modo, que suas intenções não sejam uma camuflagem perversa e ilusória para a instrumentalidade sumariamente imposta de uma ordem reprodutiva fetichista), é preciso dar um passo para fora do quadro de referências estrutural do capital e abandonar sua base material determinante, que só está sujeita à constitui-ção de um modo de controle incontrolável. É precisamente isto que dá significado ao projeto socialista10.

A circulação do dinheiro como capital, ao contrário, é um fim em si. O aumento do valor acontece apenas dentro deste movimento constantemente renovado. Portanto, a circulação não tem nenhum limite. Como representante consciente desse movimento, o possuidor do dinheiro se torna um capitalista. Sua pessoa, ou melhor, seu bolso, é o ponto de onde parte o dinheiro e para onde ele volta. A expansão do dinheiro, que é a base objetiva ou mola-mestra da circulação D-C-D, torna-se a sua meta subjetiva e é apenas na medida em que a apropriação de mais e mais riqueza abstrata torna-se o único motivo de suas operações que ele funciona como capitalista, ou seja, como capital personificado e dotado de consciência e de uma vontade. Portanto, os valores de uso jamais devem ser vistos como a meta real do capitalista; nem o lucro por qualquer transação única. O seu fim é o interminável e incansável processo da formação do lucro.

Marx, ibid., pp. 151-2.

10 Naturalmente, tal projeto só pode ser concebido como uma alteração muito importante, com dificuldades quase proibitivas. Como projeto, seu objetivo a realizar está no futuro, mas para ser realizado deve superar a inércia amortecedora do passado e do presente. Antes da conquista do poder tudo parece relativamente simples em relação às condições pós-revolucionárias, pois as expectativas do futuro estão no centro da atenção e

No documento P ara além do capital (páginas 128-136)