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O “capital permanente universal” de Hegel: a falsa mediação entre a individualidade personalista e a universalidade abstrata

No documento P ara além do capital (páginas 58-67)

A QUEBRA DO ENCANTO DO “CAPITAL PERMANENTE UNIVERSAL”

1.3 O “capital permanente universal” de Hegel: a falsa mediação entre a individualidade personalista e a universalidade abstrata

“plano da natureza” providencial de Kant ou a “astúcia da Razão” de Hegel – que se afirmava e impunha suas próprias metas acima e contra as intenções, desejos, ideias e planos conscientes dos seres humanos. Encarar a possibilidade de um sujeito coletivo real como ator histórico – materialmente identificável e social-mente eficaz – era algo totalsocial-mente incompatível com o ponto de vista eternizado da

“sociedade civil”. Por isto não poderia haver qualquer atuação histórica transindivi-dual em tais concepções. Somente uma ação supraindivitransindivi-dual (consequentemente, também supra-humana) seria compatível com o ponto de vista do capital – e com o correspondente “ponto de vista da economia política” –, postulando assim a misteriosa solução das incontáveis contradições da “sociedade civil” fragmentada, sem alterar sua base material. Em outras palavras, a projetada solução hegeliana não visava nenhuma mudança significativa na própria “sociedade civil” existente e inerentemente dilacerada por conflitos.

Assim, apesar dos grandes avanços em detalhamento de Hegel sobre seus predecessores, em sua filosofia da história ele nos ofereceu a condição de destino último atribuída ao “reino germânico”, que representaria o “ponto crítico ab-soluto”. Pois ele declarou que, naquele reino, o espírito do mundo “apreende o princípio da unidade da natureza divina e da humana, a reconciliação da verdade e da liberdade objetiva com verdade e liberdade que aparecem na consciência e na subjetividade, uma reconciliação cujo cumprimento fora confiado ao princípio do norte, o princípio dos povos germânicos”10.

Hegel saudou o progresso sob o “princípio dos povos germânicos” – inclu-sive os ingleses, que construíam um império, a seu ver, animados pelo “espírito comercial” – como a “solução e reconciliação de todas as contradições”; ele assim resumiu suas afirmações relativas ao que estava em processo de realização:

O reino do fato se desfez de sua barbárie e de seu capricho amoral, ao passo que o reino da verdade abandonou o mundo do além e sua força arbitrária, de modo que a verdadeira reconciliação, que expõe o Estado como a imagem e realidade da razão, tornou-se objetiva. No Estado, a consciência encontra a realidade de sua vontade e de seu conhecimento substantivos em um desenvolvimento orgânico.11 Hegel muitas vezes protestou contra a intrusão do “deveria” na filosofia.

Mas, na verdade, o que seria mais claramente o “deveria” da racionalização do desejo senão sua própria maneira de fazer o desenvolvimento histórico culminar no Estado moderno definido como imagem e realidade da razão?

1.3 O “capital permanente universal” de Hegel: a falsa mediação entre a

a globalização não é de modo algum problemática e é realmente uma mudança necessariamente positiva que traz resultados elogiáveis para todos os interessados.

É melhor que se deixe fora de qualquer questionamento legítimo o fato de que o processo de globalização, como de fato o conhecemos, se afirme reforçando os centros mais dinâmicos de dominação (e exploração) do capital, trazendo em sua esteira uma desigualdade crescente e uma dureza extrema para a avassaladora maioria do povo, pois as respostas de um escrutínio crítico poderiam entrar em conflito com as políticas seguidas pelas forças capitalistas dominantes e seus cola-boradores espontâneos no “Terceiro Mundo”. No entanto, com essa globalização em andamento, que se apresenta como muito benéfica, nada se oferece aos “países subdesenvolvidos” além da perpetuação da taxa diferenciada de exploração. Isto está muito bem ilustrado pelos números reconhecidos até mesmo pela revista The Economist de Londres, segundo a qual, nas fábricas norte-americanas recentemente estabelecidas na região da fronteira norte do México, os trabalhadores não ganham mais do que 7 por cento do que recebe a força de trabalho norte-americana para fazer o mesmo trabalho na Califórnia12.

Ainda assim, a questão do desenvolvimento global tem, sem a menor dúvida, grande importância e tem estado presente nas discussões teóricas há bem mais de um século e meio. Foi o próprio Hegel quem chamou enfaticamente a atenção para ela, ainda que de forma idealista, em suas duas obras estreitamente interligadas: A filosofia da história e A filosofia do direito.

Em A filosofia da história, depois de examinar o rumo do desenvolvimen-to histórico do mundo e após definir sua essência como “a necessidade Ideal de transição”13, curiosamente Hegel concluiu que “A História do Mundo viaja do Oriente para o Ocidente, pois a Europa é absolutamente o fim da história”14. Assim, não há mais transição, pois atingimos “absolutamente o fim da história”, após o que só se pode pensar em ajustes mínimos na ordem do Espírito do Mundo, a que finalmente se chegou. Para Hegel, dizer isto não era uma questão de contingência histórica contestável, mas o próprio “destino da Razão” em si. Ele assim definiu a matéria em discussão:

A investigação sobre o destino essencial da Razão – quando considerada em relação ao Mundo – é idêntica à pergunta: qual é a finalidade do Mundo? E a expressão implica que esta finalidade destina-se a ser realizada.15

Assim, tinha-se de declarar que o “absolutamente inalterável” domínio colonial europeu do mundo seria forçosamente nada menos que o próprio “destino da Ra-zão”. Assim, tanto pior para os trabalhadores mexicanos que este sublime desígnio do “Espírito do Mundo” lhes tivesse atribuído uma posição eternamente subordi-nada e pauperizada no grande esquema das coisas. Nada se poderia fazer para remediar isso sem violar as exigências da própria Razão. E nada seria considerado mais censurável do que tentar fazê-lo.

12 “O México acena, os protecionistas tremem”, The Economist, 20 de abril de 1991, pp. 35-6.

13 Hegel, The Philosophy of History, p. 78.

14 Id., ibid., p. 103.

15 Id., ibid., p. 16.

Naturalmente, esta era a maneira de Hegel dizer: “Não há alternativa!”. No entanto, a questão é: estaremos realmente destinados a viver para sempre sob o en-cantamento do sistema global do capital, glorificado em sua conceituação hegeliana, resignados – como nos aconselhou ele em sua referência poética à “coruja de Minerva que só abre suas asas com o cair do crepúsculo”16 – à tirânica ordem exploradora de seu Espírito do Mundo?

Paradoxalmente, a resposta de Hegel teve sombrias implicações para todos os membros das classes inferiores. Se os trabalhadores em condições relativamente van-tajosas, situados no estágio histórico “absolutamente final” da Europa colonialista, pensassem que seu destino, a ser tolerado nos termos hegelianos da “compreensão da racionalidade do real, adaptando-se e resignando-se a ele”17, não era extremamente pro-blemático, eles deveriam sentir-se grandemente decepcionados com o filósofo alemão.

Pois foi assim que este descreveu a ordem interna – em suas relações externas altamente privilegiadas – da Europa em A filosofia do direito:

Por um avanço dialético, a busca subjetiva do próprio interesse transforma-se na mediação do particular através do universal, com o resultado de que, ao ganhar e produzir para seu próprio gozo, cada homem está eo ipso produzindo e ganhando para deleite de todos os demais. A compulsão que produz este resultado está enraizada na complexa interdependência de cada um em relação a todos, e agora ela se apresenta a cada um como o capital permanente universal .18

Deste modo, o “destino essencial da Razão” e o “desígnio final do Mundo”, no sistema hegeliano, terminavam sendo o mundo prosaico do “capital permanente universal” (ou seja, certa maneira de produzir e distribuir a riqueza), que funciona por

16 Hegel, The Philosophy of Right, p. 13.

17 Id., ibid., p. 12.

18 Id., ibid., p. 129-30. Tradução para o inglês de T. M. Knox.

Ainda que nem sempre, neste particular parágrafo (§ 199), é realmente preferível a versão para o inglês de Knox à mais recente de H. B. Nisbet da mesma obra. (Ver Hegel, Elements of the Philosophy of Right, Cambridge, Cambridge University Press, 1991, p. 233.) Knox traduz a palavra alemã Vermögen – que literalmente significa “riqueza” – por “capital”, ao passo que Nisbet, adotando uma palavra usada por Knox para o mesmo termo alemão em outro contexto, a traduz por “recursos”, no plural. No entanto, o contexto deixa claro que, no § 199, Knox está mais próximo do espírito de Hegel. As reflexões de Hegel sobre o assunto foram grandemente influenciadas pela Riqueza das nações de Adam Smith, bem como pelos escritos de Ricardo e outros economistas políticos. No § 200 (onde a tradução de Knox é bastante imprecisa), Hegel se refere explicitamente ao capital como Kapital, indicando ao mesmo tempo que a possibilidade de “participar da riqueza geral por meio da própria habilidade” – ou seja, trabalho – é determinada pelo capital em sua “sociedade civil”. Além do mais, também no § 199 Hegel chama a atenção do leitor para um parágrafo anterior (§ 170), em que está preocupado com o Vermögen como “permanente e seguro”, ou seja, com o estabelecimento da propriedade privada sobre uma base “ética”, quando exercida pela família – em oposição às posses sem base ética do “simples indivíduo”(der bloss Einzelmer) –, procurando assim fundamentar o caráter de classe da propriedade privada em algo “comunal” (ein Gemeinsames), ou seja, na família como tal, quando naturalmente ele não poderia fazer esse truque de prestidigitação com a ajuda da família burguesa. No entanto, em nota acrescentada ao mesmo parágrafo, ele tem de admitir que, embora as formas antigas de propriedade já consideradas permanentes apareçam “com a introdução do casamento”, a família “ética” como base da “propriedade permanente e segura” é bem mais recente, alcançando o nível de sua devida determinação e os meios para sua consolidação apenas na esfera da sociedade civil (in der Sphäre der bürgerlichen Gesellschaft).

meio da cruel compulsão imposta a cada um dos indivíduos, pela “complexa interde-pendência de cada um em relação a todos”, em nome da “racionalidade do real” e da

“realização da liberdade”.

1.3.2

Naturalmente, o pilar central desta concepção – a afirmação da “complexa interde-pendência de cada um em relação a todos” – era uma mistificação ideológica: um meio de fechar o círculo da sociedade de mercado, da qual não se poderia fugir. Pois, se fosse realmente verdade que a compulsão inseparável da natureza do capital – longe de universal e de modo algum necessariamente permanente – resultava da complexa interdependência dos indivíduos como indivíduos, nada se poderia fazer. Para alterar esta condição, seria preciso inventar um mundo radicalmente diferente deste em que vivemos.

Entretanto, o “avanço dialético” que racionaliza e legitima a conclusão apolo-gética hegeliana é, na verdade, pseudodialético. O particular personalista não pode ser mediado pelo universal de Hegel, porque este só existe como ficção conceitual, útil apenas para si mesmo. A verdadeira universalidade em nosso mundo realmente existente não pode emergir sem a superação das contradições antagônicas da relação entre capital e trabalho em que os indivíduos particulares estão inseridos e pela qual são dominados.

Em Hegel, este problema é resolvido – ou melhor, contornado – com a ajuda de uma dupla ficção. Primeiro, com a ajuda do postulado lógico abstrato que liga di-retamente o particular ao universal (inexistente) e convenciona idealisticamente que,

“ao ganhar e produzir para seu próprio gozo, cada homem está eo ipso produzindo e ganhando para deleite de todos os demais”. E, segundo, com a ajuda de uma mudança mistificadora, pela qual ele inverte o significado da compulsão. Depois de inventar com-pletamente seus dois termos de referência – isto é, de um lado, a particularidade eo ipso de gozo-produção-harmoniosamente-recíprocos e, de outro, a universalidade com a misteriosa capacidade de eliminar conflitos – e após equiparar o “capital permanente universal” à determinação axiomática da interdependência dos indivíduos entre si, ele tira a compulsão de onde ela realmente está: ou seja, dos imperativos produtivos e

dis-Neste contexto, também é muitíssimo pertinente que, no § 200, além do relacionamento capital/trabalho, como base determinante da participação/parte de uma pessoa no capital permanente universal (ou riqueza capitalista), Hegel só fala sobre o “acidente” ou a “contingência” como fundamentos determinantes, mencionando-os nada menos do que seis vezes em umas poucas linhas. Esta é uma maneira muito conveniente de evitar a questão da gênese do sistema do capital descrito. Seja lá o que não estiver explicitamente pressuposto por Hegel como já dado na forma de determinação de “principal não ganho” do trabalho (Knox, p. 130) ou “bens básicos” (Nisbet, p. 233) ou, em alemão, “eine eigene unmittelbare Grundlage, Kapital”

(“sua devida base direta, o capital”): o importante é que tudo isso não passa de “bens de capital”, que ele procura “descartar” como acidentais e contingentes e portanto, a seu ver, sem nenhuma necessidade de maiores explicações. Essencial, aqui, é que a evidente preocupação de Hegel nestes parágrafos é a modalidade de produção e distribuição da riqueza, ou seja, do sistema do capital como um controle metabólico “etica-mente fundamentado” da “sociedade civil” e, consequente“etica-mente, com plena justificativa eternizável como ordem existente de jure e não apenas de facto. (Mais sobre este problema na seção 1.3.4. p. 69 deste livro.)

tributivos que emanam do próprio capital, na qualidade de modo de controle sociometabólico historicamente específico. Desta maneira oculta-se o fato de que o capital é uma relação de propriedade – o meio de produção alienado incorporado na propriedade privada ou estatal – historicamente criada (e historicamente transcendível) que é contraposta a cada produtor e governa a todos. Em função da mudança hegeliana, a compulsão é convenientemente convertida de opressiva realidade histórica em virtude atempo-ral, com base na condição indiscutível e ontologicamente inalterável de que a raça humana é feita de indivíduos particulares. O que desaparece nesta espécie de “avanço dialético” é a realidade objetiva das classes sociais antagonistas e a subordinação sem cerimônia de todos os indivíduos a uma ou a outra delas. Subordinação que impõe um tipo de compulsão a que todos devem obedecer no mundo real não apenas como indivíduos particulares, mas como indivíduos de uma classe particular.

Certamente a relação produtiva entre sujeitos trabalhadores particulares (como indivíduos sociais realmente existentes) deve ser mediada em todas as for-mas concebíveis de sociedade. Sem o que a “totalidade agregativa” dos indivíduos ativos em qualquer tempo determinado na história jamais poderia coalescer em um todo social sustentável. Na verdade, a especificidade histórica de uma forma de mediação dada, através da qual os indivíduos se reúnem em um todo social mais ou menos entrelaçado, por meio de agrupamentos historicamente dados e respectivos corolários institucionais, tem importância seminal. É precisamente esta especificidade mediadora das inter-relações reprodutivas dos indivíduos – praticamente inevitá-vel – que define, em última análise, o caráter fundamental dos diversos modos de intercâmbio social historicamente contrastantes.

O caso é que – não devido às inalteráveis determinações ontológicas, mas como resultado da divisão do trabalho historicamente gerada e mutável, que con-tinua prevalecendo sob todas as formas concebíveis do domínio do capital – os indivíduos são mediados entre si e combinados em um todo social antagonicamente estruturado por meio do sistema estabelecido de produção e troca. Este sistema é regido pelo imperativo do valor de troca em permanente expansão a que tudo o mais – desde as necessidades mais básicas e mais íntimas dos indivíduos até as variadas atividades produtivas materiais e culturais em que eles se envolvem – deve estar rigorosamente subordinado: é o imencionável tabu ideológico das formas e estruturas realmente assumidas pela perversa mediação institucional e material sob o sistema do capital que faz Hegel ir atrás do postulado da mediação direta da individualidade particular graças a uma fictícia universalidade abstrata, de modo a extrair dela com miraculosa destreza o “capital permanente universal” como en-tidade inteiramente des-historicizada.

1.3.3

A grande mistificação ideológica consiste na distorção da compulsão como o neces-sário “dá e toma” de indivíduos envolvidos na “produção, ganho e gozo” mutuamente benéfica eo ipso com base na plena reciprocidade. No entanto, numa inspeção mais apurada, encontramos a ausência total de reciprocidade. Para dar um exemplo característico, um “bruxo financeiro” de Wall Street chamado Michael Milken, inventor das “ações sem valor” (os junk bonds), ganhava em um ano a importância

equivalente aos salários de 78.000 trabalhadores norte-americanos19 – e quando se calcula o correspondente número mexicano, as importâncias envolvidas devem ser expressas em rendimentos de bem acima de um milhão dos relativamente privilegiados trabalhadores das novas empresas norte-americanas industriais do norte do México, para não mencionar o resto deste país. Milken “ganhava” importâncias tão astronô-micas por atividades inteiramente parasitárias e, como se viu, completamente ilegais, sem produzir absolutamente nada. Deste modo, em vez de reciprocidade ou simetria, na realidade encontramos uma hierarquia de exploração estruturalmente protegida.

Sob o sistema do capital estruturado de maneira antagonista, a verdadeira questão é a seguinte: qual é a classe dos indivíduos que realmente produzem a “riqueza da nação” e qual a que se apropria dos benefícios dessa produção; ou, em termos mais precisos, que classe de indivíduos deve ser confinada à função subordinada da execução e que indivíduos particulares exercem a função do controle – como “personificações do capital”, na expressão de Marx.

O constructo hegeliano oferece um modelo insuperável de concepções fi-losóficas liberais. A necessidade ideológica subjacente consiste na idealização das relações existentes de dominação estrutural de tal modo que se eliminassem seus antagonismos explosivos. Para que se tornem sustentáveis e realmente inquestio-náveis, as condições históricas transitórias da particularidade personalista devem ser transformadas em permanência absoluta, o que se realiza por definição mediante a postulação tanto da inalterável ubiquidade da particularidade personalista – em outras palavras, a obliteração de sua base e sua especificidade históricas, subor-dinando a ela a totalidade dos indivíduos, sob todas as condições concebíveis, inclusive no futuro – como, com teor ideológico ainda mais óbvio, do caráter universalmente benéfico das interações das particularidades rigorosamente per-sonalistas dentro do referencial do “capital permanente universal”. Ao contrário de alguns de seus predecessores e descendentes intelectuais do século XX, Hegel não amontoa tudo isso sob a categoria da “natureza humana”. Sua solução é bem mais criativa. Da maneira como define seus termos de referência, ele não apenas preserva a substância burguesa – a particularidade personalista – da ordem social do capital, mas também estipula a harmoniosa conciliação de todos os seus cons-tituintes antagonistas para benefício de todos. E assim eleva a imagem eternizada de sua ordem sociometabólica ao plano do direito racionalmente incontestável.

Em uma de suas primeiras obras, Hegel castiga seus predecessores filosóficos por contrabandear para as premissas de seus argumentos as conclusões desejadas. Corre-tamente, ele critica o procedimento deles pelo qual...

... depois que a ficção do estado de natureza serviu a seu propósito, esse estado é abandonado devido a suas más consequências; isto simplesmente quer dizer que o resultado desejado é pressuposto, ou seja, o resultado de uma harmonização do que, como o caos, está em conflito com o bem ou com qualquer meta que deva ser atingida.20

19 Devo este cálculo a Daniel Singer.

20 Hegel, Natural Law: The Scientific Ways of Treating Natural Law, Its Place in Moral Philosophy, and Its Relation to the Positive Sciences of Law, University of Pennsylvania Press, 1975, p. 65.

Não obstante, ainda que Hegel não seja culpado de cair nos mesmos pressu-postos específicos, seu procedimento geral é o mesmo, em relação tanto ao método como à substância ideológica. Também ele pressupõe o “caos” necessário da indi-vidualidade personalista com suas “más consequências”, como condição inevitável da interação humana, de modo a extrair dele a desejada “harmonização” de todo o complexo por meio do “avanço dialético” estipulado, que supostamente deveria emergir da – muito misteriosa – “mediação do personalismo subjetivo” com o

“universal” apenas pressuposto.

1.3.4

Ao incorporar a economia política clássica em seu sistema como a ciência que extrai os “princípios” fundamentais da massa infinita de detalhes, Hegel apresenta um relato da divisão do trabalho e também da desigualdade. Ele funde meios de produção com meios de subsistência, bem como trabalho com força de trabalho hierarquicamente controlada e socialmente dividida. Ao mesmo tempo, e significativamente, a concepção hegeliana também confunde utilidade (ou valor de uso como algo manifesto na ine-rente “finalidade” das mercadorias produzidas para satisfação das necessidades) e valor de troca (“a demanda por igualdade de satisfação com os outros”21). No mesmo espírito, as características da divisão do trabalho capitalista são deduzidas da ideia do “processo de abstração que efetua a subdivisão das necessidades e dos meios”22, em completa harmonia com a universalidade autorrealizadora do Espírito do Mundo, eliminando assim as dimensões e implicações perniciosas do processo de trabalho capitalista. Conse-quentemente, Hegel diz que “esta separação da habilidade e dos meios de produção de um homem dos de outro completa e torna necessária, por toda parte, a dependência dos homens uns dos outros e seu relacionamento recíproco na satisfação de suas outras necessidades”23. Daí, convenientemente, Hegel pode deduzir no parágrafo seguinte o mencionado “avanço dialético” que mede a particularidade personalista com o universal pressuposto e transforma a compulsão que emana do capital em virtude eternamente válida. Portanto, não é absolutamente surpreendente que a perversa relação de troca capitalista seja explicada com base no mesmo raciocínio, segundo o qual

Os movimentos infinitamente complexos e entrecruzados de produção e troca recíprocas e a multiplicidade igualmente infinita de meios neles empregados cristalizam-se, devido ao universal inerente a seu conteúdo, e separam-se em grupos gerais. Como resultado, o complexo inteiro é organizado em sistemas particulares de necessidades, de meios e tipos de trabalho relativos a essas necessidades, modos de satisfação e de educação prática e teórica, ou seja, sistemas, para um ou outro dos quais os indivíduos são encaminhados – em outras palavras, em divisões de classes.24

Assim, a dedução hegeliana, com sua mediação imaginária e sua “infinita complexidade” arbitrária e tendenciosamente estipulada (entusiasticamente adotada

21 Hegel, The Philosophy of Right, p. 128-29.

22 Id., ibid., p. 129.

23 Id., ibid.

24 Id., ibid., p. 129-30.

no século XX por todos os apologistas do sistema do capital e de sua alegada insu-perável “modernidade”) termina sendo a racionalização de uma relação estrutural antagônica. Sabendo que pisa em solo não muito firme ao defender a qualquer custo a ordem de coisas estabelecida, Hegel tenta conferir a ela o status da mais elevada racionalidade. Descarta, em termos claros, todos os que questionam ou que poderiam questionar a postulada racionalidade absoluta da situação que descreve e diz-lhes que seus argumentos críticos ficam tolamente presos no nível inferior do Entendimento (Verstand), incapazes de atingir o sublime domínio da própria Razão (Vernunft). Para ele...

... os homens são desiguais por natureza, onde a desigualdade está em seu elemento, e na sociedade civil o direito de particularidade está tão longe de anular esta desigualdade natural que ela a produz sem pensar e a eleva a uma desigualdade de habilidade e riqueza e até mesmo a uma de realização moral e intelectual. Opor a este direito uma exigência de igualdade é uma tolice do Entendimento, que toma por real e racional sua igualdade abstrata e seu “dever-ser”.25

O que nos poderia levar além das limitações filosoficamente inadmissíveis do mero Entendimento é revelado na sentença que encerra o último parágrafo citado. Este diz que “é a razão, imanente ao inesgotável sistema das necessidades humanas, que articula a esfera da particularidade em um todo orgânico com di-ferentes membros”26. Naturalmente, esse “todo orgânico” corresponde ao ideal hegeliano de sociedade de classes capitalista. Assim, em nome do próprio Vernunft recebemos uma peculiaríssima concepção de “mediação” e de “universalidade”. Os conceitos de Hegel de “mediação” e “universalidade” não poderiam ser realmente mais peculiares e problemáticos do que são, pelo fato de juntos produzirem a proclamada idealidade das divisões permanentes de classe, solidificadas e eternizadas como o todo orgânico (mais uma premissa sem fundamento, mas bastante con-veniente, no venerável espírito de Menenius Agripa). Ao mesmo tempo, a ideia de antagonismo de classe continua a ser um conceito rigorosamente proibido (aparentemente justificado pela premissa que projeta a característica “orgânica”

da ordem estrutural dada), pois o conflito como tal deve ser mantido no nível da individualidade personalista na “sociedade civil” burguesa, de modo a que todo o edifício que incorpora o “princípio do Norte” seja erguido sobre ele.

1.3.5

Entretanto, o edifício assim erguido está construído de cabeça para baixo, pois, como vimos acima, Hegel usou o mesmo procedimento que ele próprio condenava em outros. Foi construído sobre a premissa falaciosa de que a divisão do trabalho, num sentido neutro e técnico, seja a base determinante suficiente de uma especificidade sócio-histórica – a conclusão desejada e eternizada, obtida por meio do procedimento filosófico adotado por Hegel – em vez de demonstrar a característica determinada de um certo tipo de divisão social hierárquica do trabalho (que deve ser oculta ao exa-me, no interesse da absoluta permanência do sistema do capital vigente). Outro dos

25 Id., ibid., p. 130.

26 Id., ibid.

No documento P ara além do capital (páginas 58-67)