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Estrutura da tese

1. ENQUADRAMENTO TEÓRICO

1.6 A verdade do aqui e agora

Destacada a importância e o lugar do trabalho de campo, o passo seguinte para de- finir as arestas e as metodologias de ação deste estudo, foi assumir uma forma de se comportar neste e especificar o tipo de informação que interessaria ser recolhida e produzida. Compreender esta questão significava, também, ir para o terreno com uma ideia mais clara sobre como conduzir a relação e a interação com o assunto, com, ou sem a câmera.

Assim, foi estabelecido que a verdade desta investigação tem como princípio assumir e respeitar aquilo que o outro pretende oferecer e/ou apresentar diante do documen- tarista. Se, ao ligar a câmera, ou o gravador, há uma mudança de postura imediata por parte de quem se apresenta diante deles, então será esta a verdade do aqui e agora do trabalho de campo.

A interação das pessoas retratadas com a câmera e o documentarista, as mudanças de foco e direção repentinas, o andar enquanto se filma, o transe-lúcido. Tudo isto inte- gra a forma de se fazer o tipo de documentário etnográfico em questão. Trata-se da combinação do improviso, do caráter dinâmico e não controlável da realidade, e da câmera como extensão do próprio corpo, assumindo os olhos e as mãos de quem fil- ma o cenário. A esta combinação intrínseca, acrescenta-se a importância da intuição enquanto exercício de confiança no instinto do próprio documentarista. “(...) what is there is that sudden intuition about the necessity to film, or conversely, the certainty that one should not film.” (Rouch & Feld, 2003, p. 43)

Nesse sentido, Jean Rouch revela-se, mais uma vez, fundamental para este trabalho. Steven Feld aponta quatro temas principais para descrever a produção fílmica e os contributos teóricos de Rouch para o documentário, todos eles relevantes para a in- vestigação aqui apresentada:

To further situate this general overview of Rouch’s career and films, it is useful to review the four key themes that are revealed in his films and writings. These are an attempt to synthesize and elaborate the key documentary impacts of Robert Flaherty and Dziga Vertov; the refinement of the concepts of cinema verité and direct cinema; the development of the ethnographic fiction genre; and the preoccupa- tion with filmic conventions of reflexivity, authorship, autocritique, and “shared anthropology.” (Rouch & Feld, 2003, p. 12)

O Cinéma Vérité de Rouch compromete-se com a verdade do momento em que filma. A câmera transita entre os cenários, caminha nas mãos do documentarista, descarta a necessidade de repetições para se buscar o melhor ângulo de uma ação, e assume a participação ativa do que e de quem é filmado. Estas características permeiam o tra- balho de recolha e tratamento do material desta investigação, e reforçam a valoriza- ção do trabalho de campo como momento decisivo na produção direta de conteúdo. It is this aspect of fieldwork that marks the uniqueness of the ethno- graphic filmmaker: instead of elaborating and editing his notes af- ter returning from the field, he must, under penalty of failure, make his synthesis at the exact moment of observation. In other words, he must create his cinematic report, bending it or stopping it, at the time of the event itself. (Rouch & Feld, 2003, p. 39)

Como consequência, este tipo de cinema se afasta do glamour das grandes produções e do espírito colonialista com relação ao assunto. Ao invés disso, se aproxima das relações espontâneas e improvisadas entre o eu e o outro e dá voz às individualidades.

Para além do Cinemà Verité, outros movimentos cinematográficos trabalharam for- mas distintas de se abordar o assunto que interessam nesta investigação. Paul Henley reúne algumas características comuns entre eles que se aproximam do estilo aqui praticado:

(…) the making of ethnographic films had been greatly influenced by the cluster of filmmaking approaches known variously as cine- ma verite, direct cinema, observational cinema, participatory cine- ma and so on (…) what they had in common was a commitment to making films that largely followed the activities of the protagonists rather than directing them according to some predetermined script, as earlier filmmakers had tended to do, be it on account of technical limitations or as a matter of esthetic preference. Observation was an intrinsic aspect of all these new approaches, but it was a process of observation that arose from an active participation in the protago- nists’ lives rather than being the sort carried out from some remote watchtower (…) (Henley, 2000, p. 212)

Assim como a aproximação e a participação mais ativa da câmera nas ações dos personagens, assumir o cunho autoral e subjetivo do trabalho ajuda a afastar o con- ceito de verdade absoluta sobre um tema. Trata-se da interpretação de um recorte possível, dentre infinitas outras possibilidades, de uma determinada realidade, e não da sua caracterização, ou do seu retrato fiel. Para Michael Renov, é precisa- mente este compromisso ético do encontro o responsável por diferenciar o docu- mentário da ficção, ainda que haja cada vez mais hibridização entre os dois campos. “That’s really what documentary has to share to the world, and we can’t, no matter how interested we are in the formal, we can’t ever give up that connection to the ethical register” (Renov, 2008, p. 174).

Ao se libertar da ilusória objetividade e do compromisso com uma verdade absoluta, o documentário transita entre variações, torna-se apto a assumir a interferência do seu autor e a participação ativa do assunto que aborda. Esta abertura para a experi- mentação torna tênue a linha entre o documentário e a ficção e abre precedentes para se assumir o caráter ficcional presente em todos os documentários e o documental na base de toda a ficção. A diferenciação feita por Renov parece esclarecer esta questão sem, no entanto, privar ambos os campos dos resultados deste cruzamento.

Assume-se, portanto, que o documentário etnográfico trabalhado nesta investigação é, em sua essência, o encontro com o outro, seja este uma cidade, uma população, ou uma pessoa. Encontro este, regido, inevitavelmente, pela subjetividade do olhar de quem provoca e constrói o objeto final e a daquele que reage ativamente a esta ideia.

Trata-se de um diálogo ético sensível à atitude de quem controla a câmera e de quem opta por aceitá-la. Uma negociação constante do aqui e agora do trabalho de campo.

(…) our challenge is to remain connected with this notion of the ethi- cal, that the relationship always is about the I and the thou, myself and the person on the other side of the camera (…) (Renov, 2008, p. 172)