• Nenhum resultado encontrado

Estrutura da tese

1. ENQUADRAMENTO TEÓRICO

3.2 Fase exploratória: Citadocs e derivas

3.2.3 Uma rua inteira

Figura 14: ilhas de São Vítor

A outra edição do medialab Rescuing Oral Memory, em 2015, que se seguiu ao da Ilha da Bela Vista, já com o coletivo Citadocs oficialmente formado – portanto, já assu- mindo o meu papel como tutora, juntando-me aos outros dois integrantes mencio- nados –, tinha como proposta abordar não uma, mas um aglomerado de ilhas. Nesta altura, a investigação Fixos no Transitório já havia sido realizada e a presente, Cidade

Ilha, recentemente iniciada.

A Rua de São Vítor, na freguesia do Bonfim, foi o espaço escolhido para o trabalho do coletivo por abrigar uma concentração deste tipo de habitação. Desta forma, seria possível deixar os participantes mais livres para encontrarem as ilhas e as histórias que gostariam e conseguiriam documentar, um modelo diferente do aplicado na Bela

Vista, em que os grupos eram previamente direcionados para os moradores com quem iriam realizar as entrevistas.

Um conjunto de recomendações técnicas e processuais foi desenvolvido e distribuído pelos participantes de forma a facilitar o trabalho no terreno. O contributo surgiu dos resultados provenientes da experiência do workshop anterior a este, procurando suprir possíveis dúvidas que poderiam surgir ao longo do trabalho na ausência dos tutores, e também abranger aqueles que não tivessem prática no campo do audiovi- sual, uma vez que não havia pré-requisito para a participação na atividade.

Semanas antes do workshop, os tutores realizaram um trabalho de campo prévio. Fomos à algumas ilhas em São Vítor para falarmos com os moradores sobre a ideia de levarmos os participantes para a Rua para conhecerem o espaço e um pouco da histó- ria local. De maneira informal estivemos, através destas conversas, a buscar possíveis temas a serem abordados pelos participantes, a conhecer melhor o universo sobre o qual queríamos trabalhar, e a tentar sair da Rua com uma espécie de consentimento por parte dos moradores.

Esta preparação para a atividade pareceu pacífica e deixou-nos confortáveis para prosseguirmos com a ideia. A maioria dos participantes não conhecia as Ilhas de São Vítor, e alguns desconheciam por completo o conceito de ilha como habitação. Depois de uma contextualização histórica no próprio local, os participantes deveriam descobrir livremente onde iriam buscar as memórias orais para retratar. Estiveram dois dias a fazer esta recolha e a editar o material sob a supervisão dos coordenado- res. Como resultado, foram realizadas oito peças: sete vídeos e um áudio.

Paralelamente, a investigação Cidade Ilha continuava a busca por delimitar o seu ob- jeto de estudo, ainda insegura sobre o que e como deveria ser retratado, mas manten- do a intenção de trabalhar o universo das Ilhas do Porto. A realização do workshop se esquadrava como trabalho de campo: entrar em ilhas diferentes, conversar com os moradores, realizar um output prático sobre a experiência, e observar a reação e o interesse dos participantes do medialab sobre a temática. Este último ponto era capaz de revelar como pessoas com backgrounds, repertórios e idades diferentes respon- diam às informações e ao encontro com estes espaços. Uma espécie de termômetro sobre o impacto que as ilhas tinham num grupo heterogêneo que habitava a cidade que as abrigava, mas nunca nenhuma delas, especificamente. Observar os discursos e assuntos que partiam deste contato e a forma como os participantes lidavam com a documentação sobre este outro, contribuiu para o melhor entendimento do tema e para a elaboração das futuras estratégias a serem empregadas no trabalho de campo. Entretanto, após o workshop, uma crise reflexiva e autocrítica começou a inte- grar a investigação. Que tipo de trabalho estaria eu a fazer? Se iria trabalhar com

o documentário assumidamente autoral, que tipo de retrato faria sobre estes luga- res? Não poderia, a própria investigação, cair na armadilha de exotizar estes locais e pessoas? Haveria a pretensão de explicar ao mundo intelectualizado e culto o que e quem são? Entrar, sem que me fosse pedido, nesses locais que são, na realidade, privados, não seria também invadir? Nesta fase, foi necessário considerar e assumir estes questionamentos e, posteriormente trabalhá-los com as devidas bases teóricas e empíricas, como foi apresentado no capítulo referente ao enquadramento teórico. O slogan criado para o Citadocs era, já nesta altura: documentários sobre, para e por

cidadãos. Até então, parecia que estávamos a abranger apenas o “sobre”, que é, natu-

ralmente, uma parte essencial do propósito, mas não a sua totalidade. Reparávamos na tendência em trabalhar com este um terço. O “para” e o “por” não tinham lugar nas iniciativas do coletivo. E teriam na investigação?

Torna-se importante esclarecer, neste âmbito, o uso do termo cidadãos. Nunca deixa- mos de nos referir aos participantes dos medialabs como tal. Entretanto, compreen- demos que o grupo de cidadãos trabalhado era restrito a uma parcela específica com- preendida por aqueles que tinham acesso semelhante a educação, a habitação e ao trabalho, e condições financeiras aproximadas. Trabalhávamos a temática das ilhas, mas nunca com os moradores de uma delas a produzir conteúdo. Estes eram sempre retratados, mas nunca viam os resultados produzidos. Resultados estes, partilhados entre os próprios participantes do workshop, conferências e seminários sobre docu- mentário e novas mídias de captação de áudio e vídeo, entre outros temas da área. Sem uma ordem necessariamente clara sobre provocador e provocado, esta rede de questões e críticas permeavam o ambiente do coletivo e, cada vez de forma mais intensa, a minha própria investigação. O trabalho de campo não poderia avançar enquanto estas dúvidas se mantivessem suspensas. Era preciso repensar, expor e dia- logar. Remete-se, mais uma vez, para a crise representativa abordada no capítulo I, sobre o enquadramento teórico, em que a procura por bases sólidas de discussões teóricas e práticas sobre este contexto foi fundamental no processo de interiorização destes questionamentos.

Neste momento, é produzido o artigo, já referenciado, Para cidadãos? (A. C. N. Roberti, 2016), como forma de pontuar, tentar esclarecer e tornar pública – através da apresentação e da publicação do mesmo por meio de conferências – esta fase de bloqueio do estudo. A ideia de ilha como conceito, e não apenas como uma desig- nação para o fenômeno das Ilhas do Porto, e o papel da investigação com relação a estes espaços, ainda estavam a ser construídos, lapidados. Era necessário compreen- der melhor a complexidade do objeto de estudo, experienciá-lo e, então, classificá-lo.