• Nenhum resultado encontrado

Estrutura da tese

1. ENQUADRAMENTO TEÓRICO

1.4 Crise representativa

Para se chegar ao posicionamento descrito no tópico anterior, sobre o envolvimento do assunto no material produzido, este trabalho atravessou um momento de crise e autocrítica sobre o seu direito de representá-lo e a forma como fazê-lo. Esta fase foi relatada e exposta no artigo Para cidadãos? O bloqueio exercido pelo “outro” num está-

gio de abordagem caótica em uma investigação (Roberti, 2016):

Durante o período exploratório desta investigação, entre as questões levantadas num período de considerações metodológicas, uma em específico despertou a atenção e o bloqueio do processo investiga- tivo: o consumo do outro. A partir de qual perspectiva este trabalho documental interessa? A procura da salvaguarda de uma herança

cultural é justa quando é feita a partir de quem e por quem? Qual é a dosagem coerente de participação e feedback na construção de um projeto como este? Qual é a medida para o trabalho de autor na reprodução de um repertório documental focado em comunidades enraizadas que estão a desaparecer? (Roberti, 2016, p. 237)

A solução para dar seguimento a esta investigação e responder a estas questões foi, precisamente, assumi-las e trabalhá-las, incorporando estes dilemas e reflexões como parte integrante do próprio trabalho. Para tal, foi necessário compreendê-lo como um processo dialético, que envolve a imersão e o afastamento do trabalho de campo, o exercício prático como uma forma de pensar com a câmera, e a análise de dados e bases teóricas que dão corpo ao tema escolhido. Este percurso será descrito e exem- plificado nos capítulos referentes às metodologias e aos trajetos.

O amadurecimento desta postura se deu a partir do entendimento de que este tipo de autorreflexão é, não apenas natural, mas benéfica em trabalhos deste gênero. “(…) ethnographic films encourage constant reassessments. Far from being a measure of their unreliability, this is, in my view, one of their particular merits” (Henley, 2000, p. 222). Para exemplificar esta ideia, este processo será comparado à um fenômeno maior, reconhecido por George Marcus e James Clifford como crise representativa (Ruby, 2008b, p. 52). Trata-se, aqui, do âmbito documental e antropológico no perío- do pós-moderno, analisado por Henley e Ruby6.

Questions of voice, authority, and authorship have become a serious concern among documentary filmmakers and anthropologists. Who can represent someone else, with what intention, in what “langua- ge,” and in what environment is a conundrum that characterizes the postmodern era. (Ruby, 2008b, p. 50)

No caso particular desta investigação, entretanto, este processo autorreflexivo tor- nou-se mais intenso na medida em que as experiências práticas começaram a ser desenvolvidas. A permeabilidade entre o que é considerado espaço público e privado nos locais escolhidos como objeto de estudo, provocavam este questionamento sobre o direito de estar ali, de olhar, filmar e considerá-lo como exótico. Além disso, o tema escolhido para esta investigação, parecia ser cada vez mais apetecível para as agen- das midiáticas. Estes locais e pessoas eram abordados, retratados e comentados por diferentes veículos de comunicação e redes sociais, de forma pública, ou particular.

6 Sobre o contexto pós-moderno, estas questões críticas foram impulsionadas pelo fim da era colo- nial, período em que a soberania do homem ocidental, de classe média e heterossexual, foi colocada em causa. E pelo desenvolvimento e a afirmação de novos gêneros entre o que era conhecido como ficção e a não ficção, até então (Ruby, 2008b, p. 53).

O receio de que este trabalho fosse absorvido por uma angulação oportunista, pater- nal ou condenatória, paralisou ocasionalmente esta investigação e a fez olhar para si própria, seus objetivos e metodologias de ação.

Nesta fase, em busca de orientação teórica e exemplos visuais, o filme Agarrando

Pueblo (Mayolo & Ospina, 1977) aparece numa discussão sobre o eu, por trás da

câmera, e o outro, filmado por ela, numa entrevista com Michael Renov (Renov, 2008, p. 172). A obra simula, de forma satírica, a produção de um documentário, supostamente para ser vendido a emissoras europeias, sobre a miséria, a insanidade e as más condições em que vivem as pessoas do “terceiro mundo”, nesse caso, na América Latina. Com a fachada de um filme político-social, que denunciaria a po- breza existente em países economicamente mais frágeis do que as grandes potências, os documentaristas escancaram o oportunismo na busca pelo retrato da miséria. Os personagens acreditam que, quanto mais pobre, frágil e insano, maior o apelo para se vender o filme.

Agarrando Pueblo é de 1977, mas permanece contemporâneo para o tema desta

investigação, ainda que acrescido e agravado por outros contextos. A linha que justifica o trabalho de retratar populações em situação de risco, pobreza, ou qual- quer outro tipo de fragilidade que afasta a sua relação com quem o faz, é tênue, ali- mentada perigosamente por boas intenções e um senso de justiça potencialmente confuso e pouco apurado.

No filme Linha Vermelha (Costa, 2011), José Filipe Costa faz uma reflexão sobre o impacto do papel do realizador e do documentário numa determinada realidade ao revisitar o trabalho de Thomas Harlan, em Torre Bela (Harlan, 1977). O filme de Harlan retrata um momento histórico no ato do seu desdobramento: a ocupação da Herdade da Torre Bela (Ribatejo, Portugal), na altura propriedade do Duque de Lafões, por antigos trabalhadores agrícolas e prisioneiros políticos no contexto revo- lucionário pós 25 de Abril. Para analisar este possível impacto, ouvimos gravações de momentos que não entraram no filme e percebemos que algumas das cenas mais dra- máticas e polêmicas, nomeadamente quando os protagonistas “invadem” a casa do Duque, foram encenadas e direcionadas pelo realizador. As entrevistas com outros membros da equipe esclarecem que parte destas pessoas, inclusive o ator principal, já haviam entrado na casa diversas vezes antes da cena, porém numa perspectiva de museu, de curiosidade, e não numa ocupação violenta e deslumbrada como a que vemos no filme.

Décadas depois, já na altura em que foi feito o Linha Vermelha, ainda ouvimos os próprios moradores da região a condenar àqueles que protagonizaram a sequência, dizendo que “deveriam ter vergonha” da forma como se portaram. Outros, apesar das imagens provarem o contrário, afirmam que não presenciaram o momento. A

questão aqui colocada é a seguinte: uma situação impulsionada pela ação do docu- mentário, provocou consequências comprometedoras para os personagens, dentro do seu próprio espaço, por gerações. As imagens da invasão se mantêm, mas são exi- bidas em conjunturas distintas, descontextualizadas, não ambientadas. Uma questão problemática já que, como dito por Costa, “a memória está sempre a mudar”.

Os relatos dos membros da equipe técnica e as reflexões de Harlan que assistimos em Linha Vermelha fazem deduzir um certo fascínio do realizador pelo momento revolucionário vivido na altura. Este entusiamo, e a vontade de produzir um filme independente que pudesse ser, ele próprio, “instrumento de luta”, parece ter impul- sionado a criação de cenários irreais e, de certa forma, comprometedores para os seus atores. Além disso, fez com que a revolução da Torre Bela fosse a mais conhecida do período em questão, apesar de ter havido muitas outras. “Será que se o teu filme não tivesse aquela sequência, a imagem da Torre Bela seria a mesma?” (José Filipe Costa, em Linha Vermelha).

Sem estabelecer qualquer tipo de comparação direta com o filme de Harlan, é possí- vel, e necessário, afirmar que, o trabalho de Cidade Ilha tem uma postura política de- clarada, porém, auto consciente dos seus limites. O que um investigador, ou cineasta, entende como sendo uma missão bem intencionada, não justifica qualquer tipo de postura com relação ao assunto que o coloque numa situação de superexposição, ou suscetível ao seu consumo e exotização em outros contextos, acadêmico, artístico, ou intelectual, por exemplo.

Until recently, most victims have passively allowed themselves to be transformed into aesthetic creations, news items, and objects of our pity and concern. Society condones this action because it is assumed that the act of filming will do some good-cause something to be done about the problems. (...) Socially concerned and politically commit- ted documentarians erroneously assume that a compelling docu- mentary automatically produces a desired political action. Perhaps it is time to realize that the image may be more impotent than power- ful when it comes to changing the world and therefore one needs a different justification for making films. (Ruby, 2008b, p. 52)

O lado político deste trabalho se revela na busca do encontro ético no trabalho de campo, da honestidade e do compromisso com o objeto de estudo, e do evitar uma abordagem paternal, comum quando estas populações são retratadas. Portanto, o primeiro foco é, como referido pelo realizador João Moreira Salles ao discorrer sobre as dificuldades do documentário, o assunto, ou o personagem, em si:

Essa crença – descabida – na força do documentário como instru- mento importante de transformação social explica boa parte dos problemas éticos nos quais incorremos (...) Documentário teria usos. Talvez, mas meu argumento é que não conseguimos definir o gênero pelos seus deveres para fora, mas por suas obrigações para dentro. (Salles, 2005, p. 71)

Assim, nesta investigação, o filme etnográfico é trabalhado não como um veículo para a construção de verdades absolutas, ou como instrumento de salvação para os temas retratados. Mas sim, e em acordo com as respostas do documentário indepen- dente à crise de representação pós-moderna, como uma forma de se falar com e sobre o outro, desafiando a noção de objetividade no gênero, e questionando a autoridade do realizador (Ruby, 2008b, p. 53). A intenção passa a ser, portanto, encontrar abor- dagens direcionadas para lidar com o assunto de forma particular, através de um processo dialético que se baseia em testes feitos dentro e fora do trabalho de campo (Henley, 2000, p. 222).

“In short, if ethnographic film is attacked, it is because it is in good health, and because, from now on, the camera has found its place among man.” (Rouch & Feld, 2003, p. 30)