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Estrutura da tese

1. ENQUADRAMENTO TEÓRICO

1.3 Autoria, responsabilidade e participação

A questão sobre a participação ativa do assunto na construção do filme etnográfi- co, e no documentário em geral, não pode seguir um conjunto de ações generaliza- do, ou pouco maleável, mas sim disposto a adequar-se às necessidades de cada caso

retratado. Como já discutido neste capítulo, sabemos que se trata de um campo com características e limites porosos, que oscilam e se adaptam conforme o contexto, as intenções do realizador e a sua relação com o tema abordado.

Cada documentário tem sua voz distinta. Como toda voz que fala, a voz fílmica tem um estilo ou uma “natureza” própria, que funciona como uma assinatura ou impressão digital. Ela atesta a individuali- dade do cineasta ou diretor, ou, às vezes, o poder de decisão de um patrocinador ou organização diretora. (Nichols, 2010, p. 135) Nesta investigação, como investigadora e realizadora, assumo a voz fílmica das peças produzidas e dos relatos contidos neste documento. Ou seja, tanto as decisões mais teóricas, sobre a escolha do tema e as metodologias de ação, quanto as mais técnicas, relativas aos equipamentos utilizados, o foco e o enquadramento das cenas, assim como o processo de edição, são tomadas, predominantemente, pela etnógrafa. Entretanto, apesar de assumir o estilo e a autoria final dos materiais produzidos, não significa que o assunto não tenha uma participação ativa, em diferentes graus, na construção dos objetos. Pelo contrário. Considera-se, neste trabalho, que o envolvi- mento dos personagens é imprescindível para tornar ético o encontro entre o eu e o

outro, e deve ser demonstrado nos resultados finais.

This process, as Rouch eloquently argues, not only produces a very particular, unique, kind of knowledge and insight into the reality ex- plored and its layers of complexity, but it is also – at least for filmma- kers working within a certain tradition – a fundamental condition of the ‘ethical encounter’ (...) (Colusso, 2017, p. 151)

Jean Rouch valorizava este caráter participativo como uma forma de empoderamento do assunto. A crescente portabilidade dos dispositivos de captação de som e imagem, principalmente depois do aparecimento das câmeras de 16mm, impulsionaram e fa- cilitaram este processo (Rouch & Feld, 2003, p. 15). A liberdade de andar com uma câmera mais leve, e ser capaz de gravar, ao mesmo tempo, som e imagem, possibilitou que o cineasta se aproximasse e se envolvesse com o tema retratado durante o próprio o momento das filmagens, permitindo a experiência do cine-transe, ou transe-lúcido, discutido no início deste capítulo. Para Nichols, este ponto de viragem na história do documentário possibilitou o surgimento de novos subgêneros, que poderiam se afastar de estilos mais clássicos, caracterizados pela neutralidade, a indiferença e a distância com relação ao assunto. (Nichols, 2010, p. 144).

Uma das intenções deste trabalho é evitar o tratamento paternalista e a visão passiva so- bre os indivíduos e populações que se encontram em situações socioeconomicamente

desfavoráveis. Sendo assim, este tipo de envolvimento do personagem, e, de certa forma, o seu empoderamento, tem especial interesse na presente investigação. Esta participação é variante, sendo adaptada conforme as pessoas e o tema envolvidos. No capítulo III e IV, serão apresentadas situações em que os atores foram convocados em momentos e circunstâncias diferentes, como por exemplo, através do próprio contro- le da câmera, ou da projeção do material bruto filmado antes da fase de edição.

Digital video has clearly made the long tradition of showing the ru- shes to your characters – as a way of sharing the experience and pro- cess of filmmaking with them – a far easier task then when Flaherty had to build his developing lab at Hudson Bay to project his images for Nanook, or when Rouch showed his material on a small movies- cope viewer. (Colusso, 2017, p. 151)

Pretendemos, portanto, entender as dinâmicas, motivos e interesses envolvidos nos casos trabalhados, compreendendo que a maioria destes não parte da investigadora e nem pode ser orientada por ela. De forma a agir em equilíbrio com esta pluralidade, foram adotadas medidas que estimulavam a participação do objeto de acordo com os limites propostos pelo mesmo.

No caso do bairro Rainha Dona Leonor, por exemplo, o papel de produção – e o elo de ligação com os habitantes do bairro – foi desempenhado pela cuidadora de ido- sos do centro social local e por uma das moradoras. Foram elas as responsáveis por agendar entrevistas e destacar os eventos de interesse para o projeto (a demolição dos blocos, a mudança para a casa nova, etc.). Para além disso, todas as imagens feitas sobre as personagens foram impressas e presencialmente entregues a elas antes de serem divulgadas em qualquer outro meio.

Já no bairro da Tapada esta participação ganhou outros contornos. Pode-se dizer que fui incorporada à estratégia de luta dos moradores, que tinha como propósito a permanência dos mesmos no local. Neste caso, o trabalho se adequou, de forma mais evidente, às necessidades dos personagens, e não o contrário. A comissão de morado- res aceitou a minha participação e confiou a mim o controle da parte documental de todo o processo que atravessavam. Da minha parte, me comprometi a retratar a luta a partir do lado, ou ponto de vista, dos habitantes da Tapada.

Todos estes exemplos serão melhor compreendidos e explicados ao longo deste do- cumento, especialmente nos capítulos III, referente aos relatos de campo, e IV, sobre as abordagens imagéticas exploradas.

Cooperatively produced and subject-generated films are signi- ficant because they represent an approach to documentary and

ethnographic films dissimilar to the dominant practice. They offer the possibility of perceiving the world from the viewpoint of the people who lead lives that are different from those traditionally in control of the means for imagining the world. (Ruby, 2008b, p. 50) Entretanto, optar por uma produção, até certo ponto, cooperativa, que incorpore em diferentes níveis a participação dos personagens, não significa torná-los alvo dos efei- tos dos seus resultados. Assumir a voz fílmica quer dizer, também, ser o responsável final pela obra e as eventuais reações e consequências provocadas pela mesma. O documentário é aqui encarado como uma representação subjetiva de um recorte de uma determinada realidade, uma forma de olhar (Colusso, 2017, p. 141), e não uma janela transparente para o real.

A abertura para a participação ativa do assunto no desenvolvimento e nos resultados desta investigação mantem-se durante todo o processo da sua construção, incluindo ações que têm resultados mais explícitos nas peças produzidas, como as imagens reali- zadas pelos próprios personagens. Entretanto, quem delimita o tema e articula as técni- cas das áreas envolvidas neste trabalho é a investigadora, que deve ser, portanto, a res- ponsável final por esta forma de olhar. O comportamento das pessoas retratadas, suas ações e modo de vida não devem ser julgados per se, é importante, e necessário, lembrar que as imagens presentes nas peças foram escolhidas e editadas pela sua autora final.

I am suggesting that even with cooperatively produced films, the moral burden of authorship still resides with the filmmaker. While a multivocal approach to the documentary does empower subjects, it will not absolve the filmmaker from the ethical and intellectual responsibility for the film. (Ruby, 2008b, p. 55)

Para que esta autoria resulte de forma moral e ética, é necessário que o ponto de vista adotado e as intenções do trabalho sejam esclarecidos e expostos. Neste caso, a intenção é tentar transmitir estas ideias através das decisões referentes ao estilo e a linguagem das próprias peças produzidas e deste documento escrito. Sobre este últi- mo, as discussões destinadas ao enquadramento teórico e às metodologias aplicadas e desenvolvidas, agem de forma mais direta nesse sentido. Os relatos de campo e as descrições sobre os objetos produzidos, revelam os trajetos que resultaram nestas opções e no recorte interpretativo realizado:

As the acknowledged author of a film, the documentarian assumes responsibility for whatever meaning exists in the image, and there- fore is obligated to discover ways to make people aware of point of view, ideology, author biography, and anything else deemed relevant

to an understanding of the film, that is, to become reflexive. (Ruby, 2008b, p. 53)

Para finalizar a discussão sobre as questões ligadas à participação do assunto, será apresentada, de forma pontual, a relação feita por Ruby e Rouch sobre dois realizado- res clássicos da história do documentário: Dziga Vertov e Robert Flaherty. Segundo os autores, para Vertov, na sua lógica do cine-olho, como já referenciado neste capí- tulo, a câmera atuava como os olhos do cineasta, e o filme como um veículo de ex- pressão para a sua sensibilidade. Para o segundo, o filme era um meio para se tentar replicar a visão do outro sobre o seu próprio mundo, o assunto deveria, portanto, opinar e interferir diretamente durante a produção da obra (Ruby, 2008b, p. 51). Neste sentido, é possível dizer que, beneficiando-se do avanço e do barateamento das tecnologias de captação de som e imagem, esta investigação se situa entre ambas as ideias. Por um lado, ao assumir o caráter autoral e sensível do documentarista nas suas obras, e por outro, incluindo a participação ativa do assunto na construção do retrato feito sobre si. Rouch ajuda a ilustrar esta posição ao descrever como seria, na sua visão do futuro do documentário, a relação das ideias de Vertov e Flaherty com estes novos dispositivos:

And tomorrow? . . . Tomorrow will be the time of completely porta- ble color video, video editing, and instant replay (“instant feedback”). Which is to say, the time of the joint dream of Vertov and Flaherty, of a mechanical ciné-eye-ear and of a camera that can so totally participate that it will automatically pass into the hands of those who, until now, have always been in front of the lens. (Rouch & Feld, 2003, p. 46)