• Nenhum resultado encontrado

Estrutura da tese

1. ENQUADRAMENTO TEÓRICO

2.11 Pensar sem a câmera

Neste trabalho, a ação da câmera passou por fases diferentes, variando de acordo com o desenvolvimento da relação com objeto de estudo. Num primeiro momento, as imagens eram gerais, menos íntimas e não se relacionavam diretamente com os mo- radores dos locais trabalhados. Depois, sem a câmera, foi necessário estreitar relações com as pessoas envolvidas, explicar as intenções do trabalho, gerar confiança mútua e perceber a forma mais eficaz e confortável para se abordar cada situação. Interessa explicar, neste tópico, a importância da ausência da câmera na fase seguinte a esta, depois de já livremente ser aceita no trabalho de campo.

No capítulo I, o tópico falar sobre o encontro discorre, através do Invisible Theatre

of Ethnography de Castañeda, sobre a valorização do trabalho de campo per se, ou

seja, no momento em que decorre. Nesta perspectiva o foco volta-se para a ação no terreno, libertando-se da preocupação constante com o relato posterior, neste caso, através da imagem e do som. Durante esta investigação, foi possível entender que, em algumas ocasiões, é mais importante apenas presenciar, interagir, analisar e repensar as estratégias a serem utilizadas conforme os cenários observados.

There is a value (ethical, moral, political, human, scientific) of eth- nography that is the “right here, right now” of fieldwork. Any tex- tual solution will only be the dissolution of that value. This is not an appeal to eliminate the project of representation, but to recognize two substantively different forms of value in these two distinct mo- des (...) the separation of these values might liberate ethnography from the burden of “moral science” in order to explore alternative and different agendas of representation, communication, and disse- mination of knowledge. (Castañeda, 2006, p. 87)

A aproximação aos moradores trazia a crescente responsabilidade de subentender quando não se deveria filmar ou fotografar. O percurso deste trabalho atravessou momentos que dariam força e impacto aos materiais produzidos, mas não se sentiu no direito de registrá-los. A confiança das pessoas era também alimentada neste sen- tido. Elas sabiam, através de um acordo mais sensitivo do que verbal, que poderiam desabafar, confessar o desânimo em momentos decisivos, tirar os sapatos em casa, ou discutir assuntos familiares que surgiam espontaneamente. Nada disso foi filmado e, em alguns casos, nem sequer será relatado neste documento.

É frequente lermos e assistirmos considerações sobre o que e como se deve filmar. Estar atento ao momento certo, na hora certa; não deixar escapar situações inusitadas e espontâneas; saber enquadrar o objeto filmado, ou fazer um recorte de luz favorá- vel; etc. O contrário, entretanto, já não é comum. Trata-se de uma questão, científica e artística, de tentar aprender o que se deve abandonar e aceitar que esta abdicação é tão importante quanto, ou mais, dominar o trabalho com a câmera, ou a escrita aca- dêmica. Constata-se que a aliada principal na resolução deste dilema (sempre variá- vel e sob risco de erro) é a própria experiência no trabalho de campo, junto do objeto de estudo. Tatear para, aos poucos, compreendê-lo.

No caso da Tapada, por exemplo, durante o longo compasso de espera sobre as de- cisões relativas à compra do bairro (entre 2017 e 2019), os moradores receberam a visita de novos supostos herdeiros dos proprietários, que vinham reclamar o seu direito sobre o local. Surpreendidos, viram-se ainda mais inseguros e receosos sobre a situação de risco em que se encontravam. Tinha-me preparado para documentar os relatos sobre essa visita, mas ao chegar ao bairro percebi que esta recolha não deveria acontecer como o planejado.

Notei que a moradora que havia me contado sobre o ocorrido por telefone, estava diferente do costume. Era uma das maiores forças ativas no bairro, sempre firme e esperançosa, com a missão de motivar e conscientizar os demais para a causa que afetava a todos. Nesse dia estava abatida, desanimada, o cansaço ameaçava a luta. Era o dia para falar, não para aparecer. A câmera nem sequer saiu da mochila. Limitei- me a sentar no seu sofá, ouvir e mostrar empatia. Mais tarde, na casa do presidente da Associação, depois de jantarmos e falarmos sobre outras questões, o momento já parecia oportuno para fazer o registro da nova situação, que seria capaz de dar outros contornos ao caso. Esta poderia ser uma peça importante na história que se desenro- lava sobre o bairro, mas isto não significa que deveria ser arrancada a qualquer custo, ou de qualquer forma.

Por razões diferentes, as refeições na casa dos moradores da Tapada, algumas pla- nejadas, outras espontâneas, nem sempre eram gravadas. Naturalmente, há imagens destes momentos, importantes para celebrar e valorizar o modo de vida destas pes- soas de forma íntima e despretensiosa. Entretanto, estar sempre com a câmera à fren- te dos olhos não me permitiria interagir, gesticular, comer ao mesmo tempo que os demais, ou estar disponível para ajudar no que fosse preciso. O impulso de gravar dava lugar, quando necessário, à importância de simplesmente se sentar a mesa en- quanto a comida ainda estava quente.

It is not always or usually not at all very clear what doing ethno- graphic fieldwork really is or when one is doing it, especially when the research is primarily based in participant observation, informal

interviewing, and other activities that are rarified and disciplinary versions of everyday practices hanging out, talking, listening, remem- bering, engaging with people, asking questions, sharing stories and information about oneself and others. In other words, the invisibility of fieldwork as ethnography has precisely to do with the relationship of research practices to everyday life. (Castañeda, 2006, p. 79)