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Estrutura da tese

1. ENQUADRAMENTO TEÓRICO

2.9 Retorno e Audiência

Fieldwork has meaning and value for those who have allowed it to happen in their midst. (Castañeda, 2006, p. 86)

Para cumprir os objetivos estabelecidos nesta investigação, é necessário garantir que aqueles que fizeram parte desta como objeto de estudo tenham acesso ao material produzido, neste caso, séries fotográficas, peças de áudio e filmes. Antes de se tornar público – em festivais de cinema, ou em exposições, por exemplo – este deverá passar pela apreciação dos seus protagonistas. Como será descrito no capítulo III, ao rela- tar a experiência do Citadocs na exibição dos documentários do workshop Rescuing

Oral Memory (2015) – na Sede do Sporting Clube de São Vítor, em fevereiro de 2016

– considera-se necessário devolver os resultados a quem os propicia. Trata-se, para além de cumprir parte do que acreditamos ser o compromisso ético com o persona- gem, de observar se o retrato realizado sobre os mesmos lhes parece satisfatório, ou se cria algum tipo de desconforto.

Este retorno deve ser programado e estudado, estando disposto a variar conforme o tema e o contexto envolvidos. Para este projeto, considera-se que, num cenário ideal, este seria um momento exclusivo e deveria acontecer num local próximo e social- mente confortável para os envolvidos. Entretanto, nem sempre foi, e será, possível, cumprir todos estes requisitos.

A primeira projeção do filme das escadarias, Caiu um Homem Ali no Quintal (A. C. Roberti, 2015), aconteceu em 2015 e conseguiu cumprir este cenário num evento em que a exibição para os moradores era o único objetivo. Foi realizado no próprio local, de forma independente, e composto apenas pelos moradores e seus convidados.

Entretanto, as exibições do Sobreiro (A. C. Roberti, 2018c), entre outubro e dezembro de 2018, por exemplo, ocorreram de forma diferente. A organização que produziu o projeto garantiu a liberdade de criação durante a realização do filme e empenhou- -se para estimular a participação da população envolvida nos processos. Porém, as questões relacionadas aos eventos de exibição precisaram ser submetidas a agendas políticas e sociais externas, relacionadas com o projeto e os seus financiadores, como forma de apresentar os resultados alcançados aos mesmos.

A sessão de estreia foi realizada num cinema de rua próximo ao bairro do Sobreiro e foi agendada de acordo com a disponibilidade dos políticos que estavam envolvidos no projeto, nomeadamente os que estavam ligados ao Ministério da Administração Interna e ao Pelouro da Habitação, Desenvolvimento Social e Bem-estar da Câmara Municipal da Maia. No evento também estavam os representantes da organização responsável pela iniciativa, seus parceiros e financiadores, e os moradores que par- ticiparam do filme direta, ou indiretamente. A presença das figuras políticas men- cionadas deu um caráter mais formal ao evento, ao mesmo tempo que valorizava o projeto e seus participantes, permitindo que estes falassem diretamente para as autoridades públicas, nem sempre uma missão fácil, segundo os relatos dos próprios. Esse encontro de audiências distintas num mesmo espaço durante a estreia causou, pessoalmente, mais apreensão. Sem permitir que os personagens do filme pudessem previamente se expressar sobre a obra, sentia a responsabilidade de poder compro- metê-los diante daquele público e perante o trabalho realizado. Felizmente, a expe- riência correu bem do ponto de vista dos moradores, que deram um feedback posi- tivo e emotivo.

Já a segunda exibição do filme, em dezembro de 2018, correu de forma consideravel- mente diferente. Menor, e realizada dentro do próprio centro social do Bairro, susci- tou outro tipo de reações. A maioria dos personagens não pôde comparecer à sessão, sendo assim, a maior parte do público era composto por moradores do bairro que não participaram do documentário e que não haviam comparecido à sessão de es- treia no cinema. O discurso que fiz antes de apresentar o filme revelou-se pouco ade- quado ao contexto, não foi capaz de alinhar devidamente às expectativas da audiên- cia, que era parte integrante da realidade retratada, mas não falava diretamente sobre ela e nem sequer sabiam quem eu era. As reações variavam: algumas pessoas estavam emocionalmente comovidas e vieram agradecer, outras reclamavam sua presença no filme, afirmando que tinham coisas a dizer e que não foram ditas. Houve ainda quem questionasse a seleção dos personagens, criticando a escolha de jovens assinalados pelas autoridades por “maus comportamentos”, ou risco de criminalidade.

A ideia de que é preciso <aprender a ver> nunca passa pela cabeça de ninguém. No entanto, uma vez reconhecida, tal ideia revela-se

muito mais esclarecedora do que a antiga hipótese, muito difundi- da, segundo a qual uma <realidade> estável e uniforme é registada por um sistema receptor passivo, de modo que aquilo que é visto é idêntico para todos os homens e fornece uma referência universal. (Hall, 1986, p. 83)

Em todos os casos, estes primeiros contatos do filme com os seus personagens e o seu local de origem, são fontes valiosas de informação e possibilitam trabalhar a relação de confiança com as pessoas envolvidas. A aprovação, ou a falta dela, as reações e as emoções provocadas pela obra – realizada a partir da interpretação subjetiva do

encontro – é o momento de prova e validação do trabalho. Esta é uma maneira de

compreender melhor a visão de quem esteve diante da câmera. Temos largas discus- sões sobre as estratégias e os dilemas presentes no trabalho de campo. Entretanto, considera-se aqui que é necessário discorrer, também, sobre o retorno e o significado deste processo para os seus protagonistas, já que são eles os responsáveis diretos pela existência deste material e deste conhecimento subsequente.

Feito este contato entre a obra e os seus participantes, firma-se o compromisso esta- belecido entre o eu e o outro. Esta interpretação, ou este retrato, passa a ter, a partida, o aval e o conhecimento dos envolvidos.

O que sou é extremamente agradecido pelo fato dessas pessoas terem conversado comigo. E eu espero que eles, quando encontrem alguém da comunidade que os viu, os tenha em boa conta. É o que espero. (Coutinho, 2009, p. 134)

Entretanto, é necessário ter em atenção que, a aprovação do personagem não isenta o realizador das possíveis consequências do seu retrato quando este for partilhado, ou apresentado, em outros contextos. Estas pessoas podem não ter o mesmo tipo de olhar, ou conhecimento, e mesmo a malícia, que as pessoas do meio científico e artístico estão habituadas a ter. Por isso, a apreciação, ou a concordância destas não pode ser utilizada como justificativa, ou absolvição para a possível repercussão de uma obra. Esta questão tem relação direta com o que é discutido no capítulo I sobre a autoria e a responsabilidade do realizador/investigador.

Often people are flattered when they see themselves and later be- come disillusioned when the critics make negative comments about the life they see portrayed on the screen. At events like the annual Flaherty Film Seminar, documentarians attempt to justify their films by saying the subjects saw the film and loved it. (…) Documentary filmmakers seldom know the potential problems people in their fil- ms may face. (…) I am arguing that most people are not informed

enough to exonerate the producer. Advice, consent and cooperation are necessary but not sufficient when dealing with the potential for exploitation. (Ruby, 2008, p. 55)

Nenhuma destas preocupações invalida, entretanto, a importância da participação, do encontro ético na devolução dos resultados e na demonstração do trabalho rea- lizado para os personagens envolvidos. A apreciação e o conforto destes com o ma- terial resultante é um passo inicial e indispensável para a trajetória da obra – reme- temos para a tríade fundamental de Michael Renov, do capítulo I, que relaciona o sujeito da câmera (documentarista), o assunto filmado, e a audiência com base numa ética subjetiva.

2.10 Pensar com a câmera: “Uma ideia na