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A Vida Comunitária e o Moitará

Capítulo V – A Sociedade Kamaiurá

5.3 A Vida Comunitária e o Moitará

A organização espacial da aldeia Kamaiurá, como já mencionamos, dá-se por meio da distribuição de casas ao redor de um amplo pátio circular. Em cada casa vivem pessoas unidas por laços de parentesco, formando uma unidade de produção econômica que tem como figura central o chefe da casa, ou seja, o homem que teve a iniciativa de construí-la.

As alianças na aldeia se estabelecem sobretudo por meio do casamento, o que leva a criação de um novo conjunto de parentes por afinidades, e que pode, inclusive, em alguns casos, sobrepor-se aos laços consanguíneos.

Como ensinam Junqueira e Vitti (2009), o casamento preferencial é entre primos cruzados (atywahap), ou seja, com o filho ou filha do irmão da mãe ou filho ou filha da irmã do pai. Apesar da preferência, nada impede que outras combinações se realizem, notadamente quando a aliança tem um caráter estratégico para as relações na aldeia. Os vínculos familiares podem também ir além das fronteiras da comunidade, pois não é incomum o casamento entre pessoas de aldeias diferentes, o que também promove uma relação de afinidade e de alianças.

Uma característica observada nas alianças estabelecidas é que, apesar de gerar laços de afinidade, as relações podem manter padrões de suspeitas e desconfianças. Busca-se o cumprimento dos deveres e direitos acordados, mas não de forma incomum percebe-se a intolerância velada que existe entre os parentes afins. Essas características aparecem de forma sutil, pois a etiqueta tradicional Kamaiurá bloqueia a explicitação pública desses sentimentos, ficando resguardados aos núcleos mais íntimos de consanguinidade.

Constata-se que há no grupo um desempenho diplomático ditado sobretudo por interesses políticos. Muitos acontecimentos não se tornam públicos para que as alianças não sejam desfeitas e os interesses políticos sejam preservados. Como ressaltam Junqueira e Vitti (2009), a relativa serenidade da vida comunitária, fruto da contenção de sentimentos potencialmente antissociais, ocorre para que interesses de maior grandeza sejam garantidos.

Embora algumas pessoas se destaquem pela capacidade de exercer algum tipo de controle e liderança dentro da comunidade, tais como os chefes de domicílios, os grandes pajés, os conhecedores da tradição, os especialistas no manuseio de ervas medicinais, pode-se dizer que não há na esfera política uma concentração de poder. Alguns atores sociais possuem maior visibilidade na vida comunitária e, dentro dos limites específicos dos seus campos de atuação, exercem uma autoridade legítima.

Os homens com essa visibilidade participam também de um conselho mais amplo, tradicionalmente denominado “roda dos fumantes”, que se reúne para debater questões que afetam o conjunto da vida social e cujas decisões são tomadas por consenso. Nesse sentido, pode-se dizer que, por meio dos “representantes”, cada morador da aldeia tem em mãos uma pequena parcela de poder. As opiniões das mulheres, por exemplo, chegam à “roda dos fumantes” pela voz do pai, do marido, do irmão ou do filho.

Na comunidade é possível distinguir diversos níveis sociais, sendo que a classificação mais nítida se dá entre os descendentes de famílias de chefes, homens e mulheres que ostentam status hereditário. Os homens nessa condição são denominados

morerekwat, enquanto as mulheres são as nuitu. Há ainda uma denominação específica para as pessoas consideradas comuns, que são os kamara.

A classificação social hierárquica tem maior significado na esfera cerimonial, pois na vida cotidiana essas denominações provocam poucas diferenças entre eles. Os morerekwat e as nuitu não possuem privilégios materiais significativos por sua condição social, pois os eventuais desníveis tendem a ser minorados com a distribuição de bens, pela prática da generosidade.

Por outro lado, na esfera cerimonial essa diferença se torna bastante visível como, por exemplo, no Kwaryp, no qual apenas os morerekwat e as nuitu possuem o direito de serem homenageados após a morte. Os kamara, pessoas comuns, podem aproveitar a festa em homenagem aos mortos ilustres para homenagear seus parentes.

O morerekwat se destaca também durante as discussões sobre as questões comunitárias que ocorrem na “roda dos fumantes”, pois a ele está confiada a execução de gerir a vida política da aldeia e de representar a comunidade diante dos outros povos.

Como forma de identificação e confirmação do status de morerekwat e nuitu, os Kamaiurá que se encontram nesse nível social recebem tatuagens (três ou quatro linhas paralelas) nas coxas, no caso dos homens e nos braços, no caso das mulheres. Segundo Clastres (1988), essas marcas impressas no corpo são formas de garantir a memória das leis comunitárias. Uma espécie de mecanismo de união social, que imprime ao corpo o registro identitário e a confirmação do poder.

Para Samain (1980), a organização sociopolítica dos Kamaiurá pode ser definida como uma confederação de pequenas associações residenciais, internamente organizadas em torno de um chefe de casa, e externamente regulada pelo “prestígio”, provado e aprovado pelos demais, de um ou de vários desses chefes. Segundo o autor, a sociedade Kamaiurá é bastante igualitária, sendo que a base de hierarquização existente se caracteriza em termos de representatividade e não de estratificação social.

A dinâmica de bens e serviços na comunidade se estabelece, rotineiramente, mediante trocas denominadas Moitará. Circulam entre as aldeias, entre os moradores de

diferentes casas e mesmo entre as famílias objetos, alimentos, convites, prestações de trabalho etc.

O Moitará entre aldeias contribui para intensificar as relações intertribais existentes no Alto Xingu e para criar características semelhantes entre povos diferenciados. Esse processo pode ser explicado pela ocupação da região do rio Xingu por esses grupos que hoje formam a cultura alto-xinguana. Procedentes de tradições culturais diversas, passaram a compartilhar de um mesmo habitat onde as condições se mostraram aptas à sobrevivência (JUNQUEIRA, 1975).

A partir da adaptação de cada comunidade ao novo ambiente, estabeleceram-se vínculos entre os diversos grupos no intercâmbio de elementos materiais. A seleção e a limitação do aproveitamento dos recursos naturais da região foram determinadas pelas características culturais preexistentes desses grupos, o que forneceu elementos para que certos traços se firmassem como agentes adaptativos. Um desses agentes é a especialização artesanal que, estimulando a prática da troca, favoreceu a adaptação ao estabelecer entre eles a interdependência econômica (JUNQUEIRA, 1975).

Os Kamaiurá, por exemplo, são considerados os melhores artesãos do arco preto. Já os Waurá, os especialistas na produção de panelas de cerâmica, necessárias para a elaboração de alimentos básicos, como o beiju e o mohete88, e os Kuikuro e Kalapalo responsáveis pelos colares e cintos de conchas de caramujo, que constituem parte integrante da indumentária nativa.

Existem ainda outros bens artesanais produzidos por todos os grupos alto- xinguanos que na visão Kamaiurá possuem escalas diferenciadas de valores. Assim, os Waurá são considerados os melhores produtores de sal e pimenta; os Kalapalo, de cestos e esteiras; os Mehinako, de panela do mesmo tipo Waurá e os Kuikuro, de flecha para pescar de duas pontas (JUNQUEIRA, 1975).

Atualmente, a especialidade Kamaiurá na produção do arco preto não tem sido muito estimulada, pois com a introdução da arma de fogo, o arco se tornou um

instrumento pouco utilizado, transformou-se mais em um símbolo do grupo do que um objeto importante de troca.

Vale mencionar que os Kamaiurá não se consideram apenas bons artesãos de arcos, mas denominam-se também ótimos especialistas em cestas, em fazer canoas com casca de jatobá, em produzir redes de dormir e de pescar, em fabricar as flautas Jakuí e em serem bons arremessadores de flechas usadas no Jawari.

Outra característica do Moitará, como já foi ressaltado, é que além da circulação de bens, circulam também serviços, ou seja, participam não apenas grupos especialistas em algum tipo de artesanato, mas também aqueles que se dedicam ao serviço de distribuição desses produtos. Como outro traço, esses bens e serviços presentes no Moitará circulam independentemente das relações de amizade e hostilidade que possam existir, o que colocam as distâncias geográficas e sociais em posições secundárias nesse intercâmbio.

Muito embora o Moitará seja ainda uma instituição vigente entre os grupos alto- xinguanos, atualmente, diante do contato desses povos com a sociedade envolvente, encontramos algumas modificações. Os produtos trocados, por exemplo, não são apenas os artesanatos feitos pela especialidade de cada grupo, mas dentre os objetos já se encontram produtos industrializados, como panelas de alumínio, espingardas, bicicletas etc.

A hierarquia de níveis entre as mercadorias, de certa forma, permanece. Objetos como as grandes panelas de cerâmica Waurá, os colares de caramujo Kuikuro, o arco de madeira preta dos Kamaiurá etc., ocupam o primeiro nível, por serem os objetos mais “caros” ou nobres. Em ordem decrescente, estão as cestas, as panelas menores, cocares, braçadeiras e adornos simples. Dentre as regras do mercado entre aldeias, está a de que um objeto deve ser trocado por outro de um mesmo nível, muito embora a introdução de produtos industrializados tenha confundido um pouco a equivalência de valores.

O Moitará não ocorre apenas entre aldeias, mas também dentro da própria vida comunitária Kamaiurá. Como a sua análise está relacionada à circulação de bens dentro

da aldeia, ressaltaremos o assunto no próximo capítulo, momento em que os direitos Kamaiurá serão aprofundados.