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Os Kamaiurá e a Cultura Alto-Xinguana

Capítulo V – A Sociedade Kamaiurá

5.1 Os Kamaiurá e a Cultura Alto-Xinguana

A cultura Kamaiurá se mantém e se renova pela tradição oral, que se constitui em uma poderosa ferramenta promotora de troca de experiências, de sedimentação de valores, de aprimoramento de conhecimentos, de divulgação de informações importantes, de estímulos à criatividade e de possibilidade de manutenção da memória. Embora, nos dias atuais, vários jovens tenham algum domínio da escrita, a oralidade prevalece, apresentando-se como o principal veículo para a produção e reprodução da vida social na aldeia.

Segundo Franchetto (2001), a palavra Kamaiurá (kamã+yula), de possível origem Aruak, significa “mortos no jirau”. A referência, aplicada aos vários contingentes Tupi que migraram rumo à bacia dos formadores do rio Xingu, alude a um passado de práticas canibais.

Em tempos antigos, conforme relatos dos Kamaiurá coletados por Seki (2000), eles se autodenominavam de Jamyrá, época em que viviam com os Tapirapé. A partir da sua passagem pela região do Morená, os Kamaiurá passaram a se autodenominar de Apyap. Para Bastos (1981), a autodenominação dos Kamaiurá seria Apyap Anekopy, ou seja, “apyap verdadeiros”, estando a palavra apyap relacionada com o termo apyaba, que significa “homem”, “gentio” do tupi antigo.

Conforme os relatos históricos, os Kamaiurá vieram migrando da região norte para a região sul do Parque Indígena do Xingu, provavelmente por motivos de conflitos com outros grupos indígenas. Quando o etnólogo Karl Von den Steinen encontrou os

Kamaiurá, em 1887, eles se encontravam em uma fase final de migração e estavam reunidos às margens da Lagoa de Ipavu.

Com base nos estudos de Seki (2000), os Kamaiurá relatam que em tempos antigos viviam com os Tapirapé, mas que deles se separaram para fugir dos ataques de outros índios e dos “brancos”. Por meio do rio Auaiá Missu, chegaram no rio Xingu e foram subindo por etapas. Na passagem pelo território Suyá sofreram repetidos ataques desse povo e também dos Juruna. Depois de passar pelo Morená, chegaram ao Jacaré, no baixo Kuluene, onde encontraram o povo indígena Waurá, que os convidou a se juntar a ele. Prosseguiram, juntamente com os Waurá, até a margem esquerda da Lagoa de Ipavu, em um lugar chamado Jamutukuri. Algum tempo depois, os Waurá migraram para outra região, permanecendo nessa área apenas os Kamaiurá, onde viveram por um longo período. Do Jamutukuri, passaram para o outro lado da Lagoa de Ipavu, onde se distribuíram em quatro aldeias, que teriam sido encontradas por Steinen.

A aldeia Kamaiurá de Ipavu, objeto de estudo do presente trabalho, está localizada na região denominada de Alto Xingu, ao sul do Parque Indígena do Xingu, na confluência dos rios Kuluene e Kuliseu. Um dos principais referenciais de localização da aldeia Kamaiurá é a Lagoa de Ipavu, que está a aproximadamente 500 metros da aldeia e significa na língua Kamaiurá “água grande”. Como outros referenciais, pode-se citar o Posto Leonardo Villas Bôas, que está a uma distância aproximada de dez quilômetros da aldeia e o rio Kuluene, cerca de seis quilômetros da aldeia (JUNQUEIRA, 2003)84.

Além dos pontos de localização acima mencionados, faz-se necessário ressaltar a região considerada um dos principais referenciais para a identificação espacial e temporal do povo indígena Kamaiurá – a região denominada Wawitsa, de onde originaram os seus antepassados. Situa-se no extremo norte do Parque Indígena do Xingu, ao lado do Morená, palco central das ações míticas e “centro do mundo” para os Kamaiurá.

A aldeia Kamaiurá de Ipavu é formada por um conjunto de 20 casas situadas ao redor de um amplo pátio central circular. Cada casa é ocupada por um grupo doméstico composto por pessoas unidas por parentesco. O líder desse grupo doméstico é o “dono da casa”, que coordena as atividades produtivas e outras tarefas cotidianas.

Vista aérea da Aldeia Kamaiurá de Ipavu. Foto: Taciana Vitti.

Conforme os dados da Fundação Nacional de Saúde – FUNASA (2009), os Kamaiurá contam com uma população estimada em 523 indivíduos. Desse total, 266 vivem na aldeia de Ipavu, enquanto 105 habitam a aldeia do Morená e o restante, cerca de 150 indivíduos, vivem nas cidades circunvizinhas ao Parque Indígena do Xingu.

Os estudos demográficos já realizados demonstram que o povo Kamaiurá passou por períodos de decréscimo populacional seguidos por períodos de crescimento demográfico. Conforme Junqueira (2003), em 1887, época em que Karl Von den Steinen esteve em contato com esse povo, a população Kamaiurá era de aproximadamente 264 indivíduos. Em 1938, a população somava cerca de 240 pessoas e, em 1954, afetados por uma forte epidemia de sarampo, foram reduzidos a 94 indivíduos. Após esses decréscimos, a população Kamaiurá iniciou um processo de crescimento demográfico: aumentou para 131 indivíduos, na década de 1970 e, atualmente, ao número populacional acima mencionado.

Apesar das suas características particulares, os Kamaiurá possuem similaridades culturais em relação aos outros povos indígenas do Alto Xingu. Por meio de um modo de vida parecido, articulam-se numa rede de trocas especializadas, em casamentos interétnicos e rituais entre as aldeias.

A principal forma de relação intertribal entre os povos do Alto Xingu se estabelece por meio dos seus rituais, como nos encontros para a realização do Kwaryp (a festa dos mortos), o Jawari (a festa de celebração dos guerreiros) e o Moitará (encontros para trocas formalizadas). Além destes, podem ser citados diversos outros aspectos de similaridade, como, por exemplo, a predominância do uso de peixe sobre a carne de caça; o mesmo ideal de comportamento, que valoriza a generosidade (a dádiva) e a contenção de humores; alguns artigos que são produzidos em todas as aldeias85; o corte de cabelo curto e ovalado para os homens e longo com franjas para as mulheres; os mesmos adereços e pinturas corporais; a constituição de aldeias circulares, com grandes malocas ovais e casa das flautas sagradas no pátio central da aldeia (proibida às mulheres).

No que diz respeito às particularidades, pode-se citar as diferentes línguas, a produção de objetos característicos de cada povo, que os identificam e mantém as trocas especializadas e a identidade que é peculiar a cada grupo étnico, não permitindo que sua cultura característica seja diluída na sociedade alto-xinguana.

O que se constata em relação à língua no Alto Xingu é que, embora cada grupo tenha a sua, eles conseguem estabelecer uma fácil comunicação. É comum, mesmo que não se saiba falar, compreender a língua de seus vizinhos, permitindo que pessoas de diferentes etnias dialoguem cada qual na sua língua. Pode ocorrer também o casamento interétnico, o que leva as crianças a aprenderem as duas línguas, a materna e a paterna. O português é utilizado também como uma língua de contato entre esses povos, sendo falado mais fluentemente entre os homens jovens e adultos. Além de ser ensinado nas escolas indígenas dentro do Parque, o português é a língua ouvida na televisão, que existe em quase todas as aldeias do PIX, e a utilizada para estabelecer as relações com não índios dentro e fora das imediações do Parque.

O sistema multiétnico e multilinguístico alto-xinguano envolve nove etnias, afiliadas a três troncos linguísticos: (1) Karib: Kalapalo, Kuikuro e Nahukwá-matipu;

85Como o banco zoomórfico esculpido em uma só peça de madeira, o propulsor de dardos para uso no rito

do Jawari, o uso do uluri, peça feminina que é colocada sobre o púbis e amarrada na cintura com fio de buriti (ISA, 2007).

(2) Tupi: Aweti e Kamaiurá; (3) Aruak: Yawalapiti, Mehinako e Waurá. E há ainda os Trumai, grupo considerado linguisticamente isolado.

Como ensinam Santos e Coimbra Jr. (2001), a intensa interação entre esse conjunto de sociedades torna o sistema xinguano um dos mais elaborados complexos etnológicos da Amazônia, no qual se contrabalançam persistência de distinção étnica e ênfase em integração regional.