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O Neoliberalismo e a Crise de Valores

Capítulo I – Os Direitos Indígenas e o Estado Nacional

1.3 O Neoliberalismo e a Crise de Valores

Como já mencionamos no tópico anterior, além da força e da justiça, temos como outro pilar do Estado-Nação, a economia. Nesse sentido, a relação do Estado com os povos indígenas se constrói também por esse prisma – o do modelo econômico dominante.

Buscando assegurar a livre iniciativa e o crescimento econômico e tecnológico como fenômenos universais, o neoliberalismo instituiu a denominação globalização, sob a qual figuram mitos e ocultações. Dentre as suas características, pode-se citar a padronização de valores, a aproximação da política interna dos Estados nacionais da política internacional, a especulação financeira, o ajuste econômico dos países de “Terceiro Mundo”, a concentração da renda e o acúmulo de bens.

Embora a maior parte das definições sobre globalização esteja centrada na economia, Santos (2010, p. 433) propõe uma conceituação mais sensível às dimensões sociais, políticas e culturais. Com essa perspectiva, analisa a globalização como um “processo pelo qual determinada condição ou entidade local estende a sua influência a todo o globo e, ao fazê-lo, desenvolve a capacidade de considerar local outra condição social ou entidade rival” (SANTOS, 2010, p. 433).

Referida definição, como explica o autor, tem como base a premissa de que a globalização é, na verdade, um conjunto de diferentes relações sociais, que dão origem a diversos fenômenos de globalização. Nesses termos, não haveria uma entidade única chamada globalização, mas existiriam globalizações, que seriam regidas por conflitos, nos quais atuam vencedores e vencidos.

Apesar das tensões provocadas, o fenômeno globalizante se mascara na ideologia de socialização de bens, informações e serviços, pois a história tem sido contada pelos próprios vencedores que, para garantir interesses próprios, tornam invisíveis os atores sociais vencidos nesse processo.

Assim, considerando que aquilo que chamamos de globalização é sempre a globalização bem-sucedida de determinado localismo, Santos (2010) ressalta que a globalização sempre pressupõe a localização. E, nesse sentido, identifica quatro modos de produção: 1) localismo globalizado; 2) globalismo localizado; 3) cosmopolitismo e 4) patrimônio comum da humanidade.

O localismo globalizado ocorre quando um determinado fenômeno local se torna com sucesso uma tendência global. Como exemplo, pode-se citar a transformação da língua inglesa em língua franca, a globalização do fast food americano, a adoção das leis de propriedade intelectual dos EUA etc.

O globalismo localizado consiste na reorganização forçada das estruturas locais que foram impactadas pelas práticas e imperativos transnacionais. Nesse modo de produção estão incluídos: as alterações legislativas e políticas promovidas pelos países periféricos para atender às exigências dos países centrais ou das agências multilaterais; o uso da mão de obra local pelas multinacionais sem respeito à legislação trabalhista

nacional; a exploração de sítios arqueológicos de comunidades indígenas tradicionais e das áreas de preservação ambiental pela indústria global do turismo; o desmatamento e a destruição dos recursos naturais para pagamento da dívida externa, dentre outros.

Em relação ao cosmopolitismo, Santos (2010, p. 436) o denomina como um “conjunto muito vasto e heterogêneo de iniciativas, movimentos e organizações que partilham a luta contra a exclusão e a discriminação sociais e a destruição ambiental produzidas pelos localismos globalizados e pelos globalismos localizados (...)”. Em outras palavras, é a solidariedade entre grupos explorados, excluídos ou oprimidos pela globalização hegemônica. Dentre as atividades cosmopolitas, vale citar: as redes internacionais que defendem a preservação ambiental, a equidade de gênero, os povos indígenas e os direitos humanos em geral; os diálogos e as articulações entre países periféricos e a solidariedade anticapitalista entre redes internacionais.

Como quarto modo de produção da globalização, Santos (2010) identifica o patrimônio comum da humanidade, que se constitui em temas de interesse global, pois, por sua natureza, só fazem sentido em relação ao globo em sua totalidade. São eles: a sustentabilidade da vida humana no planeta; a preservação da biodiversidade, a luta pela diminuição do efeito estufa, as descobertas espaciais etc.

Outra análise relevante sobre a globalização é aquela proposta por Fiori (1999), que identifica três grandes mitos que a sustenta: 1) a ideia de que é um fenômeno moderno e atual; 2) de que resulta de um processo natural, que ocorre espontaneamente a partir das forças do mercado, e 3) que o seu caráter é universalizante e homogêneo.

Quanto ao primeiro mito, pode-se dizer que a globalização não é um fenômeno atual, mas que faz parte do longo ciclo de transformações da era moderna. Nesse sentido, o primeiro processo de globalização aconteceu no século XV, período de transformações renascentistas, de formação dos Estados Nacionais, invenção da imprensa e da descoberta do caminho marítimo para as Índias. As novas rotas comerciais possibilitaram a expansão do comércio e a quebra do monopólio comercial dos árabes e judeus. Além disso, as colônias foram importantes pontos de troca e fontes de riqueza e acumulação mercantil de capital.

O segundo grande movimento de globalização foi a Revolução Industrial, no século XVIII. Ela inaugurou a produção fabril e introduziu inovações tecnológicas com a criação da máquina a vapor. A concentração do capital eliminou os espaços dos pequenos produtores artesanais e das corporações de ofício e se tornou impossível competir com a produção em massa. Um processo que se iniciou na Inglaterra, mas que se expandiu para outros países, numa escala continental e global.

A Revolução Industrial promoveu a constituição plena do capitalismo, que se apoiou na transformação da terra, do trabalho e do dinheiro em mercadorias22. Um processo de grande transformação, cujo veículo fundamental de difusão foi um sistema de troca mercantil internacional, baseado no padrão-ouro, que tinha como centro hegemônico imperial de poder a Inglaterra, atrelada à libra esterlina.

Outro momento globalizante ocorreu no final do século XIX, com a chamada Segunda Revolução Industrial ou Era do Imperialismo. Como principais movimentos desse período, podemos citar as diversas inovações tecnológicas que revolucionaram as comunicações, tais como: o surgimento do telégrafo, do telefone, do avião, do automóvel e da televisão. Ocorreram, também, os vultosos investimentos externos, sobretudo na área de infraestrutura de serviços públicos. Ao mesmo tempo, países como os Estados Unidos, a Alemanha e o Japão se industrializaram, ganhando competitividade industrial.

O segundo mito da globalização – que ela ocorre espontaneamente a partir das forças de mercado – é extremamente frágil e inverossímil. A globalização, na verdade, nasce em virtude de ações e decisões de natureza política, estando fortemente associada às relações de dominação e de hegemonia de nações ou blocos de nações. Organismos financeiros internacionais pressionam os países a realizarem as privatizações de empresas estatais, a promoverem a abertura comercial e a desregulamentação dos mercados financeiros e dos serviços locais.

22Hoje, estamos habituados a ver esses três elementos como mercadorias, mas que, por milênios, antes da

Revolução Industrial, as mais diversas sociedades humanas organizavam suas atividades econômicas sem esse fundamento. Considerar a terra, o trabalho e o dinheiro como mercadorias significou uma verdadeira mudança de paradigma.

Quanto ao terceiro mito, resta dizer que a globalização não é um fenômeno universal, inclusivo e homogeneizador, pois o que se constata é que o comércio internacional é centralizador e concentrador da renda e da troca de tecnologia entre os países desenvolvidos.

O longo processo de globalização promoveu o enfraquecimento dos Estados, ordenando as economias nacionais por meio de parâmetros mundiais. Assim, os que não se enquadram nas regras desse jogo são marginalizados dos investimentos e financiamentos internacionais.

Ao mesmo tempo em que propôs o fim do Estado de bem-estar social nos países de “Primeiro Mundo”, adotou políticas de ajuste econômico nos países de “Terceiro Mundo”, que levou à redução de políticas sociais e de seguridade, promovendo a intensificação do racismo, da xenofobia, da discriminação de gênero e dos problemas ambientais (HUAYANA, 2008).

A globalização, colocada como um processo inevitável, busca a massificação das sociedades para alimentar o mercado capitalista. Introduzindo socialmente novas necessidades de consumo, determina que o bem-estar está diretamente relacionado com o potencial de consumo individual. Não importa os padrões culturais, todos precisam entrar na lógica capitalista para alcançar a suposta qualidade de vida23.

O que se constata, portanto, é que o processo de desenvolvimento econômico da civilização ocidental está diretamente relacionado com a formação dos valores sociais predominantes. Confundindo crescimento econômico com desenvolvimento, as sociedades ocidentais priorizaram o ter ao invés do ser, estabeleceram padrões de consumo insustentáveis para o planeta e menosprezaram outras formas de culturas, economia e relacionamentos.

Aliado ao acúmulo de bens e riquezas está o desenvolvimento técnico-científico. Desde o século XVI, com o pensamento reducionista de René Descartes, a proposta

23 No contexto capitalista a qualidade de vida está diretamente relacionada com o acúmulo de bens que

um indivíduo pode alcançar. O sistema vigente se fundamenta em bases quantitativas, ou seja, no potencial econômico individual de consumo.

racionalista vem sendo usada como fonte da verdade universal24. Apesar do princípio da incerteza, estabelecido pela mecânica quântica25 e da nova proposta de visão sistêmica da realidade26, os valores sociais ainda se baseiam em uma perspectiva fragmentada e por um modelo patriarcal27 de desenvolvimento.

Nesse contexto, os povos indígenas aparecem como sociedades à margem do “desenvolvimento”, pois, além de sociedades que não mantém a lógica econômica do sistema, não comungam dos mesmos valores sociais. O consumo, a tecnologia, o acúmulo de bens, a utilização dos recursos naturais em benefício do crescimento econômico etc. são fundamentos do modelo neoliberal, que deve ser sustentado em nome do “progresso”.

Os povos indígenas, alheios à lógica neoliberal, baseiam suas economias em um modelo de subsistência. Não há a proposta de acúmulo de bens, mas, como ensina Clastres (1988), uma relação de domínio do meio natural adaptado e relativo às suas necessidades. O planejado excesso de alimentos (mandioca, milho, fumo etc.) é feito por motivos de festas, convites, presentes, trocas etc.

Ainda na contramão do sistema ocidental, está a ausência de força de trabalho excessiva para a manutenção da sociedade. O modelo estabelecido pelos indígenas proporciona a distribuição do tempo entre plantar, colher, caçar, festejar e conviver com a família e a comunidade. Uma noção de tempo distorcida para o “civilizado”, que estabeleceu padrões de obtenção de riqueza que requer a maior parte de sua dedicação para manter a máquina neoliberal funcionando.

24 Segundo Capra (1982), uma das frases desse pensador que se tornou famosa – “Penso, logo existo” –

reflete bem sua proposta e concepção de mundo. Para Descartes, o universo era visto como uma máquina, constituído de objetos separados (teoria mecanicista). Suas análises, portanto, culminaram em uma fragmentação das coisas existentes, desde uma separação entre razão e emoção, assim como entre ciência e espiritualidade, até as fragmentações de todos os níveis dos saberes.

25O princípio da incerteza afirmou que a matéria seria algo totalmente alheio a nossa percepção de sentido

comum do mundo. Nesse sentido, colocou em questão a visão reducionista da lógica racional e a ideia de separação entre o observador e o objeto observado.

26A visão sistêmica propõe a reintegração entre todas as coisas que foram fragmentadas pelo pensamento

mecanicista.

27O patriarcalismo se fundamenta na priorização de valores racionais, competitivos, agressivos e

hierárquicos em detrimento de valores intuitivos, cooperativos, amorosos etc. Utilizando fundamentos da filosofia chinesa, seria a priorização do yang (energia masculina) em detrimento do yin (energia feminina), que promove um desequilíbrio do universo.

Pode-se dizer que os povos indígenas estão inseridos na face oculta do sistema neoliberal, ou seja, fora do cenário econômico e tecnológico globalizante, mas dentro de um contexto social contemporâneo maior. Contrapondo à globalização, os povos indígenas figuram na localização. Na lógica capitalista, de um lado estão os ricos globalizados e, do outro, os pobres localizados.

Apesar de a localização ser sustentada pelo processo excludente da globalização, sua força propulsora está fundamentada na resistência étnica das minorias, que mantiveram suas identidades culturais mesmo diante das imposições do sistema vigente. A localização tem fortalecido a afirmação de culturas diferenciadas e impulsionado a reivindicação dos povos indígenas em relação aos seus direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, ao respeito às suas práticas culturais e à preservação dos recursos naturais dispostos em suas terras.