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Gerações Kamaiurá: Takumã-Kotok-Katão Fotos: Taciana Vitti. / Composição: Gabriel P. Nogueira.

CAPÍTULO VI

NORMAS KAMAIURÁ

O Essencial é saber ver. Mas isso exige um estudo profundo, uma aprendizagem de desaprender. Alberto Caeiro

Cedinho, antes do sol nascer, as conversas na oca já se iniciam. A mãe zelosa acalma o seu filho que tem meses de vida, as fogueiras ainda estão acesas e os Kamaiurá iniciam os preparativos para tomar banho na lagoa de Ipavu.

Quando fecho os olhos ainda me lembro desse momento dos dias em que estive na aldeia. Entre o sonho e a realidade, deitada em minha rede, ouvia os cochichos na língua Kamaiurá e pensava no privilégio de poder presenciar a riqueza daquele momento. Dessa hora do dia, escrevi no meu diário de viagem: “a minha sensação é de estar dentro de um útero materno. Ainda não tinha presenciado com consciência tamanho conforto (...). A oca enorme abrigando as três mulheres do Kotok e seus tantos filhos parece a barriga da mãe terra que alimenta amorosamente a todos”110.

Em poucos dias de pesquisa de campo foi possível perceber uma característica importante da estrutura social Kamaiurá, relatada, inclusive, em muitos trabalhos já publicados. É o fato de que nessa sociedade, embora exista uma estrutura de papéis sociais definidos e códigos próprios, não há uma imposição de regras. Parece que a comunidade busca manter o seu equilíbrio interno e externo por meio da cordialidade, na qual o associativismo necessário ordena naturalmente os afazeres, sem normas coercitivas e cumprimento das atividades por medo de repressão.

O fato de ninguém mandar em ninguém e mesmo assim o sistema funcionar abre espaço para novas formas de enxergar a realidade. Nas minhas análises, quando falamos

110A primeira viagem que fiz aos Kamaiurá foi em julho de 2007. Fui acompanhada da minha orientadora

Carmen Junqueira e da Taciana Vitti, também pesquisadora do povo indígena Kamaiurá. Na época, Kaiti, a terceira esposa do Kotok, líder da aldeia, tinha ganhado nenê há poucos meses. A rede de Kaiti ficava bem próxima da minha e, portanto, pude acompanhar esse início de vida Kamaiurá. Em julho de 2009, grávida de seis meses, retornei à aldeia para concluir minhas pesquisas.

que os povos indígenas estão em equilíbrio com o meio ambiente a sua volta, incluo também essa perspectiva. As ações internas Kamaiurá preservam os recursos naturais e mantém uma organização social fluida porque a estrutura Kamaiurá está afinada com a ordem da natureza, com a cosmologia de seu povo, que envolve seres míticos, mama´e, animais, seres humanos, recursos naturais e festas tradicionais no mesmo ato de criação e ação cotidiana. Agindo em favor da ordem universal, a vida se torna mansa, essencialmente cordial.

Para falar das regras culturais Kamaiurá, serão utilizados, como referência, os trabalhos etnográficos já publicados, as pesquisas de campo da autora e algumas orientações do direito positivo vigente. Optou-se em não adotar a lógica do direito codificado que descreve as normas por meio de setores compartimentalizados, identificados pelos ramos do direito: direito civil, direito penal, direito comercial etc. No entanto, em algum nível, haverá fragmentações, como a divisão da sociedade Kamaiurá entre os seus elementos políticos, relações de troca, organização social e assim por diante. Ocorre que, embora se reconheça que o sistema é um todo indissociável, a escrita ocidental, fundada em uma lógica linear, ainda precisa de recursos fragmentados para lidar com o complexo.

6.1 – CONTROLE SOCIAL

A vida cotidiana na aldeia, de modo geral, transcorre de forma tranquila, no entanto, a sociedade Kamaiurá, assim como qualquer outra sociedade, não está a salvo de enfrentar relações conflituosas, disputas de poder, condutas antissociais, em diferentes graus de gravidade e reprovação.

A definição de regras, que como pressuposto maior busca o reequilíbrio social, faz parte da alçada do grupo, o qual reage contrário ao desconforto para privilegiar o bem estar coletivo e não apenas o individual.

Entre os Kamaiurá, pode-se dizer que o respeito às leis está associado ao desejo de aprovação pública, ao medo das sanções sobrenaturais e das represálias. Diferente do temor provocado pelo processo punitivo de uma sociedade estatal, o medo que leva à

obediência entre os Kamaiurá ganha contornos diferenciados, visto que as regras foram criadas e adaptadas com a participação do suposto transgressor, pois está relacionado ao seu sistema de crenças e costumes tradicionais.

Em linhas gerais, o controle social se dá de duas maneiras: por meio de medidas inibidoras e de medidas punitivas. As segundas, utilizadas em ocasiões específicas, apresentam-se como recurso secundário, ou seja, quando as primeiras não foram suficientes para reordenar as relações.

Ramos (1982, p. 56) relata que as medidas inibidoras são procedimentos informais que tomam as cores do ridículo, do mexerico ou das acusações de feitiçaria. Entre os Kamaiurá, o termo mais familiar seria a vergonha, que além de estar associada ao ridículo, relaciona-se também com a contenção de humores nas relações sociais. Desse modo, a vergonha de uma exposição ridícula faz com que os excessos sejam contidos, evitando uma quebra da etiqueta e da regra imposta.

Uma ação antissocial como um acesso de raiva incontrolada, por exemplo, é recebida com piadas, risadas e chacotas, expondo a pessoa a uma situação coletiva desconfortável. Na maior parte dos casos, a possibilidade de passar vergonha tem desencorajado comportamentos desaprovados coletivamente.

O mexerico ou a fofoca é também um artifício eficaz de controle social. Nas devidas proporções, pode operar como uma espécie de intimidação antecipada à consumação da infração. Evidentemente, em conflitos mais graves, o leva e traz de informações não atua como instrumento suficiente para evitar um confronto direto entre opositores. Para os casos mais cotidianos, como, por exemplo, a fofoca de que uma mulher está mantendo relações extraconjugais, pode servir como uma espécie de aviso à protagonista, que ganhará tempo para pôr fim ao relacionamento e evitar maiores constrangimentos pessoais.

As acusações de feitiçaria, embora possam atuar como medidas inibidoras, não estão no mesmo nível de gravidade dos outros recursos descritos acima. Seu teor é muito mais sério e se caracteriza como último recurso antes da aplicação da pena prevista. A fofoca da existência de um feiticeiro na aldeia pode levar o suspeito a se