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Direitos Reconhecidos pelo Estado

Capítulo III – Os Povos Indígenas do Brasil e seus Direitos Reconhecidos pelo Estado

3.2 Direitos Reconhecidos pelo Estado

Os direitos dos povos indígenas no Brasil podem ser vistos sob duas perspectivas: a primeira é a concepção do direito determinado pelo Estado aos povos indígenas, ou seja, o direito que nosso sistema jurídico outorgou aos índios, que está disposto na Constituição Federal, no Estatuto do Índio e em documentos internacionais próprios. E a segunda, objeto de estudo do presente trabalho, é o direito indígena propriamente dito, ou seja, o direito que determina os seus códigos internos e regras próprias, denominado pelo Estado Nacional de direito consuetudinário ou costumeiro dos povos indígenas.

44 Inclui-se aqui não apenas os denominados “brancos”, mas também outras sociedades diferenciadas,

Como visto, os direitos indígenas estabelecidos pelo ordenamento jurídico vigente existem desde o período colonial e, pode-se dizer, passou por um processo de avanço em relação à garantia da sobrevivência física e cultural desses povos. De uma visão antropológica que questionava a humanidade dos índios e, posteriormente, de uma postura assimiladora, a percepção instituída se modificou para reconhecer os direitos culturais dos povos indígenas e fazer que seus usos e costumes sejam respeitados. A garantia desse reconhecimento está determinada pela Constituição Federal de 1988, que, como Lei Maior, dá as diretrizes de todo o ordenamento abaixo dela instituído.

O Estatuto do Índio, criado pela Lei 6.001/73, regula infraconstitucionalmente os direitos indígenas instituídos pelo Estado Nacional. Embora sua elaboração tenha sido considerada para época um avanço em relação à defesa dos povos indígenas, atualmente, apresenta diversas proposições ultrapassadas.

Sua constituição estava ainda fortemente influenciada pela ideia de que os índios seriam gradualmente incorporados à comunhão nacional e, com isso, deixariam de existir (visão integracionista ou assimilacionista45). Tentando suprir algumas deficiências desse Estatuto e algumas lacunas da lei, está em tramitação no Congresso Nacional o projeto de criação de um novo Estatuto dos Povos Indígenas, PL 2.057/91.

Muito embora o Estatuto do Índio ainda esteja em vigor, essa ideia de integrar os índios à comunhão nacional, ao menos na teoria, não encontra mais respaldo legal. Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, instituiu-se um capítulo próprio para tratar dos direitos indígenas, o qual reconhece ao índio o direito de viver segundo seus usos, costumes e tradições, conforme preceitua os artigos 231 e 232, CF. Existem também outros mecanismos de proteção aos direitos indígenas dispostos em tratados e convenções internacionais ratificados pelo Brasil, como veremos mais adiante.

Anterior à Constituição, os povos indígenas possuíam na verdade direitos transitórios, já que estes eram garantidos até que os índios se transformassem em “civilizados”. Só então, a partir de 1988, é que lhes foram garantidos direitos

45Bôas Filho (2003) ressalta que os termos “integração” e “assimilação” possuem conceituações distintas.

O primeiro consiste na participação dos indígenas na sociedade envolvente, sem perda identitária, ao passo que o segundo, contrariamente, caracteriza-se pela total incorporação de um indivíduo ou grupo na sociedade nacional, provocando perdas étnicas e culturais.

permanentes, assegurando a estes povos, ao menos no plano formal, a manutenção de sua cultura e a legitimação de suas características próprias e diferenciadas.

Reconhecidos constitucionalmente aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições (artigo 231, caput, CF) e a todos o pleno exercício dos direitos culturais (artigo 215, caput, CF), o ordenamento jurídico brasileiro claramente opta pela manutenção do pluralismo cultural por meio da valorização e proteção da existência dos diversos grupos étnicos existentes, pois são eles que conferem a tão prezada diversidade cultural brasileira.

Como ensina Valle (2002), o direito à diversidade cultural equivale ao direito à autonomia desses grupos étnicos, ou seja, ao direito que essas populações têm de se autoafirmarem como grupos culturais e socialmente diferenciados, que se relacionam com a sociedade nacional sem perder sua identidade.

Por isso, a Constituição conjugou a concepção de uma sociedade pluralista com a de uma sociedade livre, justa, fraterna e solidária (SILVA, 1992), uma vez que é impossível alcançar a justiça social sem reconhecer e proteger as diferenças sociais existentes em uma sociedade diversificada por natureza como a nossa.

Embora ainda hoje no país não exista um reconhecimento literal por parte do Estado dos direitos internos das diversas etnias indígenas que vivem no território nacional, a Constituição Federal dá as diretrizes para que a legislação alcance esse entendimento. Diante da afirmação da pluralidade étnica, a Constituição, de forma implícita, está legitimando os direitos internos dos povos indígenas, que se expressam por meio de seus usos e costumes.

Os instrumentos jurídicos internacionais mais atualizados sobre os direitos indígenas preceituam sobre a legitimidade dos direitos consuetudinários dos povos indígenas. O artigo 8°, da Convenção 169 da OIT, por exemplo, dispõe: “ao aplicar a legislação nacional aos povos interessados deverão ser levados na devida consideração seus costumes ou seu direito consuetudinário”.

No mesmo diapasão, a Organização das Nações Unidas (ONU), em um dos seus informes sobre violação dos direitos dos índios em diversos países, declara ser necessário o respeito aos sistemas legais indígenas e a admissão, por parte do Estado, da “existência de um pluralismo jurídico sem preeminências injustificadas da parte do sistema jurídico nacional” (COBO, 1987).

Apesar desses indicativos legais, na prática, o que se constata é uma incomunicabilidade entre esses dois universos. De modo geral, a sociedade dominante não reconhece a existência do pluralismo jurídico. No máximo, levanta a possibilidade de existir um direito primitivo e inferior ao direito positivo dominante dentro das sociedades indígenas.

3.2.1 – O Público e o Privado

Com objetivo de criar mecanismos legais para atender as mais variadas situações, o Estado organizou sua legislação em um sistema unitário, universal e abstrato. Assim, para o direito positivo a publicação da lei se dá no contexto de uma realidade social homogênea, sem profundas diferenças ou conflitos de interesses que não possam ser sanados.

Invariavelmente, o sistema jurídico transforma o problema social em questões pessoais, fragmentando e descontextualizado o conflito para garantir o direito individual de cada cidadão. Souza Filho (1998) exemplifica o fato com o tratamento dado pelo Estado aos conflitos de terra. Desconsiderando os direitos de classe, os segmentos sociais ou os setores da sociedade, o Estado reduz a questão a uma desavença entre o direito de propriedade do fazendeiro contra o direito subjetivo possessório de cada ocupante. “Tudo fica reduzido a desafetos pessoais e a Lei, geral e universal em princípio, se concretiza apenas nos conflitos individuais, podendo ser injusta na aplicação, mas mantendo sua aura de justiça na generalidade” (SOUZA FILHO, 1988, p. 69).

Os direitos individuais são tratados pelo ordenamento jurídico nacional como Direito Privado, que se caracteriza pela hegemonia da propriedade. Já os direitos

considerados de todos, ou seja, que não são individuais, estão inseridos na esfera do direito estatal, denominado de Direito Público.

Nesta dicotomia entre o público e o privado, os direitos territoriais dos povos indígenas se encontram no meio do caminho, pois as terras indígenas não podem ser consideradas públicas, pois não estão destinadas a um fim estatal ou ao uso público geral, e nem privadas, já que não recaem sobre elas titulares definidos de direito e nem institutos clássicos da propriedade privada, como a alienação, a sucessão hereditária e a prescrição.

Essa situação demonstra claramente que o sistema jurídico vigente, apesar de tentar se apresentar uno e universal, muitas vezes não consegue atender às especificidades características de uma sociedade plural. A inadequação dos povos indígenas frente ao direito positivo se dá porque sua organização social, cosmovisão e normas próprias operam em uma lógica diferente daquela imposta pelo Estado capitalista promotor de direitos individuais.

Vale ainda ressaltar as desigualdades fáticas e a inoperância da justiça que caracterizam o sistema positivo vigente. No caso do direito privado, tomando como paradigma os conflitos de propriedade, a desigualdade entre as classes sociais se torna evidente e o Estado é chamado para decidir quem é, sob o prisma do direito individual, o detentor de direitos. Diante do objeto da ação, como ensina Souza Filho (1998), pode- se dizer que o direito privado é voltado para as relações jurídicas da minoria da população, que tem o poder aquisitivo para contratar, discutir o patrimônio, disputar herança e pleitear indenizações.

No âmbito do direito público, o direito penal também deixa evidente o caráter classista do Direito. No entanto, ao contrário do direito privado, sua aplicação está voltada à maioria. Com objetivo de defender bens jurídicos considerados fundamentais: o patrimônio, a vida humana e a liberdade individual, o Estado, detentor da justiça, coíbe a violação desses direitos e aplica sanções penais para recuperar o indivíduo delinquente.

A aplicação da pena se fundamenta na manutenção da ordem social. No entanto, diante do sistema econômico vigente, promotor de profundas desigualdades sociais, a ordem assume a lógica do capital, reprimindo a violência que, na maior parte das vezes, foi gerada pelo próprio sistema excludente.

Não se busca compreender o todo para se reprimir o ato e quantificar a pena. Em relação aos povos indígenas, por exemplo, não se considera o histórico de violência promovido pelo próprio Estado a essas comunidades. A catequização, a dizimação, o esbulho das terras indígenas, o contato forçado etc. foram responsável pela desagregação social de muitas dessas comunidades e por sua consequente marginalização. Ademais, diante do direito unitário, o direito penal não tem respeitado de fato as particularidades culturais dos povos indígenas e seus direitos próprios.

Na perspectiva dos povos indígenas essa separação entre público e privado, que divide as normas em civis e penais, não encontra ressonância interna, pois a lógica indígena se fundamenta na coletividade e não na premissa individualista do sistema ocidental vigente. A mensuração de infração e as formas de resolver conflitos são orientadas pelo bem-estar da comunidade e envolvem a organização social, as crenças, os usos e os costumes do povo indígena em questão.

3.2.2 – Direitos Coletivos dos Povos Indígenas

Os direitos difusos e coletivos foram introduzidos no ordenamento jurídico brasileiro com o advento da Constituição Federal de 1988. Reconhecendo o direito de todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e de controle da administração pública, os direitos culturais, os direitos do consumidor, dentre outros, a Constituição vai além da cultura individualista para reconhecer a existência de direitos em que todos são sujeitos.

Tanto os direitos difusos como os direitos coletivos são indivisíveis e indisponíveis. E, apesar dos sujeitos desses direitos serem indeterminados, os sujeitos dos direitos coletivos podem ser determináveis por grupos. Assim, os direitos difusos são mais amplos, pois abrangem todos e quaisquer grupos.

Considerando que os direitos constitucionais e infraconstitucionais dos povos indígenas estão garantidos aos grupos identificados como indígenas, esses direitos são considerados coletivos. Dentre as categorias que os definem, podem ser citados os direitos territoriais e culturais dos povos indígenas.

Além do direito indivisível e indisponível de posse dos indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupam, bem como o de usufruto exclusivo dos recursos naturais, vale ainda considerar o direito coletivo de cada um dos grupos indígenas existentes no país de conceituar e definir os limites geográficos de seus territórios, conforme seus usos, costumes e tradições.

Quanto aos seus direitos culturais, estes se caracterizam por serem a própria essência do povo indígena. Identificados pela língua, pelo sistema mitológico, pela arte, pelos conhecimentos tradicionais etc., os direitos culturais garantem a identidade do grupo e definem o modo de sua auto-organização.