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Capítulo II – A Política Indigenista no Brasil

2.1 Período Colonial

O Brasil colônia era regido basicamente pelas mesmas leis existentes em Portugal, pois não existiu um direito colonial independente do direito da metrópole. Assim, o direito colonial brasileiro respaldava-se nas Ordenações Manuelinas, posteriormente nas Ordenações Filipinas e, para questões locais, acresciam-se legislações específicas.

Na colônia, o principal documento legal eram os Regimentos dos governadores gerais. O rei os assinava, assim como às Cartas Régias, Leis, Alvarás em forma de lei e Provisões Régias, auxiliado por corpos consultivos dedicados a questões coloniais. O primeiro desses conselhos foi a Mesa de Consciência e Ordens, criado em 1532. Seguiram-se o Conselho da Índia (1603) e seu sucessor, o Conselho Ultramarino (1643). Estes emitiam pareceres que podiam, e costumavam ser, sancionados pelo rei, passando a ter valor legal. (...) Para o exame de questões específicas que exigiam conhecimentos locais que a metrópole não dispunha, o rei ordenava a formação de juntas (compostas de autoridades coloniais e religiosas), entre as quais a mais importante era a Junta das Missões (PERRONE-MOISÉS, 1992, p.116-117).

No período colonial, o foco da política indigenista estava na questão da liberdade dos indígenas. Os posicionamentos em relação ao tema oscilavam entre a defesa da liberdade dos índios pelos missionários, sobretudo os jesuítas, e a reivindicação pelos colonizadores da escravização dos indígenas para garantir o

rendimento econômico da colônia. Nesse contexto, dividida e pressionada por ambos os lados, Portugal teria produzido uma legislação indigenista imersa em contradições.

Em alguns momentos, determinava-se a liberdade com restrições do cativeiro a alguns casos específicos, em outros, abolia-se totalmente tais casos legais de cativeiros, estabelecendo a liberdade absoluta, como nas leis de 1609, 1680 e 1755 (PERRONE- MOISÉS, 1992).

De modo geral, a política indigenista da época não tratava os indígenas de forma igualitária, o que produzia mais contradições legais. Dependendo da relação estabelecida entre os índios e os colonizadores, a legislação por vezes abrandava o contato e por outras enrijecia as regras para assegurar o domínio português. Para os índios denominados aldeados e aliados dos portugueses asseguravam-se a liberdade, ao passo que aos índios inimigos dos colonizadores e cativos dos índios, permitia-se a escravização.

2.1.1 – Índios Aldeados e Aliados

Os índios aldeados e aliados são considerados “índios de pazes” ou “índios amigos”, passíveis, portanto, de serem requisitados pelos moradores para trabalhar mediante o pagamento de salário. Para estes, dos quais os colonizadores dependiam para sustentar e defender a colônia, garantia-se a liberdade.

A principal defesa à suposta liberdade dos indígenas advinha dos missionários, que de forma contraditória recusavam a escravização física dos índios, mas estavam permanentemente escravizando seus costumes e tradições. O projeto cristão para os povos indígenas minava suas organizações sociais e seus sistemas cosmológicos.

Sobre as missões jesuíticas, Gambini (2000, p. 24) relata que os jusuítas foram mestres em destruir os sistemas de crenças indígenas. “Não era suficiente que os índios adotassem certos comportamentos ou repetissem certas palavras, era preciso levá-los a renegar sua identidade de origem”. Impondo seus valores religiosos, os indígenas chegaram a sentir vergonha por sua nudez e a não mais identificar suas divindades religiosas.

Na discussão teológica da época a posição que predominava era de que os índios não possuíam alma e que só chegariam a tê-la por meio do batismo. Assim, a conversão dos indígenas pelos jesuítas era considerada um grande benefício espiritual a esses povos, pois lhes proporcionariam evolução – sairiam da condição primitiva de semianimal rumo à condição civilizada de humanidade.

Como ensina Perrone-Moisés (1992), a política aos indígenas aldeados e aliados deveria seguir o seguinte itinerário: eles seriam “descidos”, ou seja, trazidos de suas aldeias no interior para junto das povoações portuguesas; com o contato intenso, passariam a ser catequizados e civilizados, de modo a se tornarem “vassalos úteis”; passariam, então, a trabalhar nas plantações dos colonizadores, a servir como elemento fundamental para a formação de novos descimentos e a compor as tropas de guerra contra os inimigos indígenas e europeus.

Os descimentos, concebidos como o deslocamento de povos indígenas inteiros para aldeias criadas próximas às povoações coloniais, deveriam resultar do poder de convencimento da tropa designada para tal missão28. Sem o uso de violência, buscava- se persuadir os indígenas com a ideia de que a saída do isolamento seria necessária para garantir o seu próprio bem-estar e a sua proteção.

A localização dessas novas aldeias estava condicionada a critérios de conveniência. Algumas, para facilitar a civilização dos indígenas, bem como a utilização de sua mão de obra, eram formadas bem próximas aos estabelecimentos dos portugueses. Outras, com finalidade estratégica de defesa, eram localizadas distantes das povoações coloniais.

De qualquer forma, independente da localização, as terras das aldeias sempre foram garantidas aos indígenas. Esse reconhecimento aparece pela primeira vez no Alvará de 26/07/1596 e será retomado nas Leis de 1609 e 1611. Perrone-Moisés (1992) ressalta que várias Provisões tratam da demarcação e garantia de posse dos indígenas sobre essas terras.

28 Desde a Lei de 24/02/1587, é obrigatória a presença de missionários junto às tropas de descimento

A administração das aldeias caracterizava-se pela contradição e pela oscilação dos encarregados. Em alguns momentos, estava a cargo dos missionários, que, além de responsáveis pela catequização, deveriam organizar o trabalho na aldeia e repartir os trabalhadores indígenas entre os moradores e a Coroa. Em outros momentos, criou-se a figura do capitão da aldeia, posição ocupada por um morador para exercer junto com o governo espiritual dos jesuítas o governo temporal.

Vale ainda mencionar que em alguns locais, como no Maranhão, a administração das aldeias se dava pelos missionários e pelos chefes indígenas, proibindo-se, expressamente, o governo de capitães das aldeias.

De forma contrária, o Diretório de 1757 determinava que a administração da aldeia deveria ser feita pelos diretores das povoações de índios, pois os indígenas seriam incapazes de se autogovernarem. Ainda nesse contexto de oscilações, houve momentos em que a administração das aldeias estava a cargo somente dos moradores.

Embora considerados em liberdade, nos aldeamentos os indígenas eram mal pagos e explicitamente explorados em sua força de trabalho. As regras eram rígidas e a liberdade que possuíam era a de obedecer ao sistema imposto.

Ali, toda a vida indígena é regulada para grupos por sexo ou por idade, que tinham tarefas prescritas a cumprir, desde a madrugada até o anoitecer, em horários assinalados por sinos: hora de trabalhar na roça, na caça, na pesca, na fiação, na tecelagem etc. (RIBEIRO, 1995, p. 93).

Uma das principais funções dos índios aldeados era compor as tropas portuguesas para lutar nas guerras contra os índios inimigos e os estrangeiros. Além dos aldeados, em tempos de guerra, os indígenas aliados também eram chamados para lutar ao lado dos moradores. Buscava-se proteger as vilas e as plantações dos ataques dos índios hostis e as fronteiras dos ataques dos inimigos europeus.

Diante da dependência dos moradores em relação aos serviços prestados pelos índios aldeados e aliados, recomendava-se sempre que os indígenas fossem tratados de

forma pacífica. No entanto, invariavelmente, os colonos mal tratavam os indígenas e desrespeitavam as condições de utilização de sua mão de obra.

Os abusos levaram a Coroa a nomear um procurador para representar os indígenas na defesa dos seus direitos. Seria uma pessoa encarregada de requerer a justiça em nome dos indígenas, já que estes não eram considerados capazes de requerer por si só. Perrone-Moisés (1992) relata que o procurador dos índios é mencionado no Alvará de 26/07/1596, na Lei de 09/04/1655 e no Regimento das Missões de 1686.

Outra figura, que também deveria atuar em defesa dos direitos e interesses indígenas, era o Ouvidor Geral, o qual era chamado para verificar se todas as ordens estabelecidas relacionadas aos índios estavam sendo respeitadas.

2.1.2 – Índios Inimigos e os Cativos dos Índios

Aos índios inimigos dos colonizadores não haveria outro destino senão o de serem escravizados. A legalidade de tal ato se fundamentava em documentos da época que permitiam a escravização dos indígenas em duas circunstâncias – em caso de guerra justa e por motivo de resgate.

Conforme análises doutrinárias da época suscitavam dúvidas sobre quais motivos seriam de fato legítimos para justificar a guerra justa. De modo geral, esta se fundamentava na recusa dos indígenas à conversão, quando se tornavam obstáculos à propagação da fé, nos casos em que hostilizavam colonos, atacando suas propriedades e seus povoados erguidos em terras indígenas ou quando ocorria a quebra de pactos celebrados.

A simples recusa à aceitação da fé parece que não seria motivo suficiente para promoção de uma guerra justa. Já o impedimento à pregação era tido como causa justificável para que a guerra acontecesse, pois ninguém poderia atrapalhar o projeto civilizatório que se buscava concretizar na colônia recém ocupada.

Perrone-Moisés (1992) relata que a principal justificativa da guerra era a preexistência de hostilidade por parte do inimigo. No entanto, para evitar os abusos cometidos pelos colonizadores, a Coroa exigia que se provasse a hostilidade e a inimizade dos povos com os quais se pretendia guerrear. Assim, as descrições sobre a “fereza”, a “crueldade” e a “barbaridade” dos supostos inimigos, que ninguém poderia trazer à civilização, eram feitas com riqueza de detalhes.

Considerando que muitos desses inimigos foram construídos pelos colonizadores, que cobiçavam a mão de obra indígena para suas lavouras e indústrias, a Coroa portuguesa, buscando coibir os abusos, chegou, por vezes, a proibir totalmente as guerras e a escravização de indígenas, como determinava a Lei de 14/04/1680.

Diante de uma política indigenista contraditória, constata-se que os instrumentos legais que ora concediam o direito de escravizar os indígenas e ora condenavam as ações escravistas eram definidos pelas pressões sofridas pela Coroa e por seus interesses econômicos. Ferro (2005) relata que quando pressionada pelos jesuítas, a metrópole condenava as ações escravistas, quando cobrada pelos colonos e acossada com a dívida externa que nunca liquidava, concedia o direito de escravizar.

Outros dois motivos que se levantavam como justificativas para a guerra eram a antropofagia e a salvação das almas. No entanto, Perrone-Moisés (1992) relata que não havia consenso sobre a utilização isolada desses motivos para que a guerra de fato se justificasse.

Quando os índios bárbaros não eram mortos nas guerras promovidas pelos colonizadores, eram escravizados e tratados como prisioneiros de guerra. Podiam ficar nas mãos dos vencedores ou serem vendidos, sendo que o valor recebido pela venda deveria pagar a despesa feita na guerra, os impostos relacionados à Coroa e, havendo sobra, uma parte deveria ser dada ao governador e outra repartida entre os combatentes.

A escravidão também era considerada lícita em caso de resgate, ou seja, quando os colonizadores compravam ou resgatavam pessoas que estavam em cativeiros dos indígenas. Apesar dos “resgatados” ficarem a mercê daqueles que os resgatavam, que

deveriam promover a civilização dos cativos, havia a previsão de um prazo para o cativeiro decorrente de resgate.

Uma vez pago em trabalho o preço do resgate, o cativo será livre, a não ser em alguns momentos em que se considera que tendo sido pago um preço acima do estipulado, o comprador possa valer-se dos serviços do resgatado pelo resto de sua vida. Na Lei de 10/09/1611, o tempo definido é de dez anos para que os “resgatados” fiquem livres, a não ser que o preço pago por ele seja superior ao declarado pelo “governador e os adjuntos” (PERRONE-MOISÉS, 1992, p. 128).

2.1.3 – Os Indígenas e a Era Pombalina

Para contextualizar o momento histórico e compreender a ideologia dominante no Brasil colonial em relação aos povos indígenas, vale mencionar as influências recebidas pelas determinações científicas, presentes desde o Renascimento, que resultaram em uma nova concepção de mundo, baseada na supremacia da razão.

O cientificismo, que como veremos perpetuou no século subsequente e como já foi mencionado encontra respaldo ainda hoje na sociedade ocidental, transcendeu as teorias acadêmicas e passou a se tornar na Europa oitocentista instrumento de fortalecimento político e econômico da classe burguesa.

Em Portugal, esses ideais se manifestaram de forma mais evidente na administração do Marquês de Pombal, na primeira metade do século XVIII. Representante do despotismo esclarecido foi responsável por várias reformas administrativas, econômicas e sociais em Portugal. Tinha como objetivo racionalizar a administração sem enfraquecer o poder real.

O individualismo burguês característico da era pombalina repercute na vida social e econômica da Colônia. Como exemplo, vale citar a intervenção proposta nos aldeamentos por meio da planificação e do controle social. O Alvará de 7 de junho de 1757 cria o Diretório dos Índios, determinando que estes, enquanto não tivessem capacidade para se autogovernarem, seriam dirigidos por um Diretor, que deveria nomear o Governador e o Capitão Geral do Estado.

Os diretórios pombalinos dão origem à tutela indígena, instituto presente ainda hoje na legislação e na política indigenista. A suposta incapacidade indígena exigia a nomeação de alguém para representá-los, papel exercido na época pelos Diretores dos aldeamentos e, posteriormente, pelo órgão federal indigenista.

Outra medida adotada pelo Marquês de Pombal, com grande repercussão na organização social da Colônia, foi a expulsão dos jesuítas, em 1759. Diante do racionalismo vigente, o Estado burguês proposto por Pombal não poderia aceitar que uma ordem religiosa atuasse com tanta independência, influenciando, mesmo também, na gestão econômica da Colônia.

Era preciso erradicar a presença missionária para que os índios fossem apropriados como “objetos de governo”. O Zeitgeist na Europa apontava para posições iluministas e Pombal inalou profundamente aquele ar do tempo cujo sopro foi sentido pelos povos indígenas do outro lado do Atlântico. Os quarenta anos de vigência do Diretório foram uma sucessão de equívocos, sendo o mais desastroso para os índios o poder e os desmandos dos “diretores” de índios, os executores de uma política integracionista humanista em princípio, mas extremamente aberta a abusos (RAMOS, 1999, p. 7).

Considerando que as regras instituídas pelo Diretório não eram internamente respeitadas, houve um declínio da produção agrícola e a mão de obra indígena passou a ser explorada de forma desmedida. Outra grave consequência foi o agravamento da crise demográfica, que segundo Raminelli (1998) foi provocada pelas epidemias nos aldeamentos, pelo trabalho excessivo, pela fome, pelos suicídios, abortos e consumo de aguardente.

Diante das catástrofes provocadas pelo Diretório, os indígenas buscavam migrar para outras regiões, o que gerava conflitos e uma nova distribuição espacial dos povos indígenas em território colonial. Heckenberger (2001) relata que nesse período, entre 1750 e 1884, ocorre a chegada dos Trumai, dos Suyá e dos Bakairi no Alto Xingu. Em seguida, aparecem os grupos Karib Yarumá, Ikpeng, Tupi Manitsawá e Arawine29.

29 Não há uma comprovação formal de que essa movimentação dos indígenas para a região do Alto Xingu

Com o fim da era pombalina, o Diretório foi abolido pela Carta Régia de 12 de maio de 1798, libertando os indígenas do jugo dos diretores. Com isso, qualquer pessoa teria o direito de estabelecer contato com os índios para promover a sua educação e utilizá-los como força de trabalho. Assim, como ressalta Moreira Neto (1988), a tutela dos índios passou das mãos dos padres para a dos diretores e depois para qualquer um, o que configurou uma crise na definição da administração tutelar, que só deverá ganhar novos contornos com a promulgação do Decreto nº 426, de 24 de julho de 1845 (Regulamento acerca das Missões de Catequese e Civilização dos Índios).