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O Jawari e o Ritual Feminino Yamurikumã

Capítulo V – A Sociedade Kamaiurá

5.2 O Jawari e o Ritual Feminino Yamurikumã

Diante dos poucos relatos bibliográficos específicos sobre o ritual do Jawari e do Yamurikumã, bem como da impossibilidade da autora em acompanhar in loco as referidas festas, serão relatados, de maneira breve, os dois rituais que, juntamente com o Kwaryp e o Moitará, compõem aspectos similares da cultura alto-xinguana.

O Jawari pode ser considerado uma manifestação de hostilidade intergrupal existente entre os povos do Alto Xingu. Embora revestido de caráter festivo, demonstra, mesmo que de forma velada, as rivalidades que caracterizam a convivência entre essas sociedades.

Enfatizando a oposição e a distinção entre os grupos participantes da festa, no Jawari, dois adversários de etnias diferentes se enfrentam atirando dardos para atingir o rival da cintura para baixo. Os competidores são colocados a aproximadamente seis metros de distância um do outro e, com seus dardos em mãos, iniciam os ataques ao adversário, um de cada vez. O jogador alvo do ataque tenta se esquivar, tendo como proteção um feixe de varas, que não pode mover do chão.

Como ensina Galvão (1979), os dardos têm suas pontas embotadas com bolas de cera e suas hastes são enfiadas num coco de tucum com furos. Eles são lançados com ajuda de um propulsor ou palheta, instrumento amplamente difundido na América do

Sul86. O coco de tucum, chamado de iawari ou jawari, é quem dá nome ao dardo e ao jogo.

Quando Eduardo Galvão fez suas pesquisas na região do Alto Xingu, na década de 1970, suas análises indicaram que no Brasil o uso do propulsor foi registrado entre os indígenas do Alto Amazonas, Alto Xingu e rio Araguaia. Atualmente, conforme informações do ISA (2009), o uso desse instrumento está restrito à região do Alto Xingu e, segundo Galvão (1979), exclusivamente de forma cerimonial-desportiva pelas tribos Kamaiurá, Waurá, Aweti e Trumai.

Nos dias que antecedem o jogo, os participantes treinam em suas aldeias usando um boneco feito de folhagem amarrada com embira. Nesses dias precedentes, conforme a tradição, eles devem evitar manter relações sexuais e consumir peixe.

Para simbolizar o fim da competição, após a disputa, alguns dardos e propulsores dos grupos adversários são quebrados junto a uma panela de cerâmica e em seguida queimados. Alimentos são servidos e, posteriormente, os convidados partem de volta para sua aldeia (ISA, 2009).

Quanto ao Yamurikumã, esse ritual feminino simboliza uma espécie de revanche ao poder masculino na aldeia. Diante das restrições impostas às mulheres, como a proibição de ver a flauta Jakuí, na festa elas invertem os papéis e atuam de forma tipicamente masculina: enfeitam-se como os homens, usam armas masculinas e enfrentam as mulheres das aldeias convidadas na luta huka-huka. As convidadas ficam acampadas nos arredores da aldeia e durante o ritual entoam canções que se referem à sexualidade masculina.

86O propulsor é uma arma de ampla distribuição na América do Sul, tendo sido seu uso registrado entre

grupos indígenas, históricos ou modernos, da Colômbia, Venezuela, Equador, Peru, Chile, Argentina e Brasil (GALVÃO, 1979).

Yamurikumã. Foto: Mário Vilela/Funai.

Conforme os relatos de Samain (1980), as flautas Jakuí, proibidas de serem vistas por qualquer pessoa do sexo feminino, pertenciam antigamente às mulheres, que as tocavam, dançando no centro da aldeia. Os homens, com ciúmes, criaram situações para se apoderar das flautas. Primeiro tentaram sem sucesso apavorar as mulheres por meio de gritos. Depois decidiram simular a aparição do espírito do mato, Uriuri, que provoca agitações e temores. Cortaram pedaços de madeira em forma de peixinho preto, fizeram Uriuri e criaram uma espécie de zunidor. Dirigiram-se ao centro da aldeia onde as mulheres estavam e começaram a fazer o barulho do Uriuri. Com medo, as mulheres deixaram as três flautas no pátio e fugiram para suas casas. Nesse momento, os homens pegaram as flautas e inverteram o poderio sobre elas87.

O mesmo autor relata o ritual do Yamurikumã (Amurikumã, como denomina em sua obra), que teve a oportunidade de presenciar em agosto de 1977.

Esse ritual, que se realiza a cada 3/5 anos, reunia em agosto de 1977 mulheres e homens de três aldeias (Yawalapiti, Kamaiurá e Waurá, estes últimos convidadores). Começou ao pôr-do-sol, quando foi distribuída pelo chefe Waurá uma quantidade enorme de mingau e de peixes às representantes femininas das diversas tribos, e acabou às 10h do dia seguinte, quando, solenemente, foram entregues uluris novos a moças Waurá, reclusas ou entrando em reclusão. Nesse intervalo, em frente à casa dos homens e à do capitão, as mulheres dançavam e cantavam, pintadas e enfeitadas, indo e vindo, conduzidas por quatro dignitárias jovens, ostentando cocares de chefes e martelando a areia com um passo de cavalaria em plena marcha. Por volta das 8h da manhã, sob os olhares admiradores e gozadores dos homens, as mulheres lutaram (o huká-huká, normalmente reservado aos homens), individual e coletivamente, vestidas não com o uluri, mas com cuecas que tinham – não sem razão – emprestado para a ocasião (SAMAIN, 1980, p. 50).

Diante do ritual Yamurikumã, percebe-se claramente que na sociedade alto- xinguana as decisões e os poderes estão concentrados nas mãos dos homens, sem, no entanto, anular a presença feminina. Seja na divisão social do trabalho, nas proibições,

87 Junqueira (1998) relata esse mito de forma muito similar. A única diferença reside na forma com que os

homens produziram o zunido que amedrontou as mulheres. Na versão da autora, os homens foram ajudados pelos heróis civilizadores Kwat e Yaì (sol e lua).

na repartição dos espaços físicos ou na diferenciação das normas de comportamento, as comunidades do Alto Xingu são comedidas pelas forças latentes e sempre presentes de um antagonismo sexual, verificado nos mais diversos níveis da vida social.

O mesmo poder feminino relatado no ritual Yamurikumã é perceptível dentro das atividades cotidianas da comunidade. Embora as decisões sejam tomadas pelos homens em reuniões reservadas a eles no pátio da aldeia, as mulheres, nos espaços privados de suas casas, orientam os homens para posterior tomada oficial dessas decisões. Embora suas vozes fiquem nos bastidores, parece implícito na relação comunitária que o poder masculino não se sustenta sem o reconhecimento tácito das mulheres.