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Capítulo V – A Sociedade Kamaiurá

5.5 Cosmologia

Como ensina Junqueira (2002), por meio dos relatos Kamaiurá é possível distinguir três marcos de sua história: o tempo mítico, ocasião em que se deu a criação do homem; o tempo dos avós, em que o índio ainda não tinha estabelecido contato com o não índio, e o tempo presente, que compreende os primeiros encontros com o não índio até a época atual. Apesar das diferenciações de fases, constata-se que não há uma separação linear entre os marcos dessa história, pois estas se entrelaçam continuamente, fazendo que o tempo presente traga em si a essência da visão de mundo tal como concebida no tempo mítico.

Para os Kamaiurá, o herói cultural, criador da humanidade, é Mavutsinin. Em diversos mitos há referência ao seu poder originário e à forma orientadora como conduz os acontecimentos. Mesmo quando os personagens principais do mito não se concentram na figura de Mavutsinin, ele aparece como um bom conselheiro, que sabiamente orienta seus “netos”.

No começo dos tempos, na região chamada hoje de Morená89, Mavutsinin, certo dia, viu uma concha na beira da água e com ela se casou. Da união nasceu uma criança, que pelo fato de ser homem foi retirada do convívio da concha e levada para longe por Mavutsinin. A concha, entristecida, fechou-se e voltou para as águas. O novo ser gerado pelas duas divindades recebeu o mesmo nome do pai. No entanto, como na tradição Kamaiurá é o nome do avô que deve ser passado ao neto, os narradores advertem: “Ele era filho de Mavutsinin, mas nós dizemos que era neto” (JUNQUEIRA e PAGLIARO, 2009).

Mavutsinin neto retirou troncos de árvore, enfeitou-os e, com a ajuda de duas cutias que cantavam e tocavam maracás, rezou e transformou os troncos em gente. Daí em diante, os diversos povos do Alto Xingu criaram suas aldeias nas cercanias do Morená (JUNQUEIRA e PAGLIARO, 2009).

89O Morená é considerado a morada dos seres primordiais, como Mavutsinin. Fica na confluência dos rios

A palavra mito, do grego “mythos”, significa narração. Nesse sentido, Malinowski o define como um relato dos acontecimentos ocorrido em tempos passados que, desde então, afeta o destino do mundo e das pessoas (MALINOWSKI, 1954 apud JUNQUEIRA, 1998).

Para Villas Bôas (2000, p.39), o mito pode ser definido “como a síntese de um enredo fantástico que responde às indagações das origens dos seres reais e, sobretudo, dos valores, regras e conhecimentos elementares da criatura”.

A partir de uma perspectiva psicológica, Campbell (1992, p. 41) afirma que os mitos são pistas que nos ajudam a procurar nossas próprias experiências de vida. Segundo o autor, considerando que tudo está dentro de nós – “todos os deuses, todos os céus, todos os mundos”, no mito de todos os povos as imagens são as mesmas e falam dos mesmos problemas. Nessa direção, a mitologia estaria relacionada com a sabedoria da vida, integrando o indivíduo na sociedade, a sociedade na natureza e servindo, de certa forma, como bússola ao nosso consciente.

Os mitos não ocupam uma posição meramente simbólica na estrutura do povo Kamaiurá, como já foi mencionado, pois, transcendendo o visível, esse universo se apresenta como uma fonte definidora de muitas regras e traços culturais. A interface entre o universo mitológico e o real demonstra o aspecto transcendente que permeia a realidade vivida na aldeia. Os mama´e, por exemplo, relatados em muitos mitos, não estão apenas no mundo invisível e simbólico, mas atuam no mundo visível, provocam acontecimentos e coexistem com os indígenas no espaço da aldeia.

Para Junqueira e Pagliaro (2009), a noção de espírito para os Kamaiurá não é de fácil apreensão. Ela se aproxima da ideia de potência, que atua no âmbito do domínio, podendo ser uma espécie animal, vegetal ou objeto cerimonial. Como relatam as autoras, caso se peça ao Kamaiurá que faça uma representação gráfica do espírito, ela será conforme o aspecto físico do animal, do vegetal ou objeto a que esteja vinculado.

Na tentativa de elucidar a ideia de que o universo mitológico se comunica com a prática cotidiana Kamaiurá, e que o primeiro pode ser considerado como uma fonte orientadora de muitas regras e práticas vividas na aldeia, tomemos alguns exemplos.

O fato de o povo Kamaiurá ser considerado especialista na produção do arco preto, de possuir o hábito de tomar banho ao nascer do sol, de fazer dietas alimentares em períodos determinados, de praticar seus rituais e festas tradicionais, de reconhecer a figura do pajé e temer a figura do feiticeiro, dentre outros, advém de explicações mitológicas e do universo espiritual transcendente. Foi Mavutsinin quem dividiu os objetos (arco preto, panelas de cerâmicas, colares e cintos de caramujo) entre os povos do Alto Xingu; por um acontecimento explicado em uma das versões do mito fundante, o Kwaryp se tornou um ritual para homenagear os mortos e não para dar vida a esses mortos, como, inicialmente, pretendia Mavutsinin.

As dietas alimentares são impostas pelos mama´e e suas transgressões podem provocar doenças e até levar à morte. Como ensinam Junqueira e Pagliaro (2009), para os Kamaiurá os males que afetam a saúde são sempre ocasionados por fatores externos ao corpo e, na maior parte dos casos, provocados pelos espíritos.

Quando a morte não ocorre em idades avançadas, ou seja, pelo processo natural, as explicações geralmente vêm de transgressões impostas pelos mama´e e de ações de feiticeiros. Na primeira infância, por exemplo, a criança pode vir a morrer caso os pais transgridam alguma regra imposta pelos espíritos, tais como restrições alimentares, resguardo etc. Nos demais períodos da vida, a morte pode ocorrer pela ação intencional dos espíritos ou pelo feitiço (moã), que é usado para eliminar um adversário.

Os mitos, para Junqueira (2004), carregam pelo menos duas preocupações constantes: uma diz respeito à descrição de um comportamento considerado modelo para uma vida social tranquila; e a outra está relacionada com a inquietação dos Kamaiurá em tentar explicar o fenômeno da vida, sua origem e essência.

Como forma de exemplo a uma regra de conduta a ser seguida, o mito geralmente narra algo que é considerado errado ou condenável para os Kamaiurá. Mediante uma sucessão de eventos, a narrativa explicita que, dependendo do caminho escolhido, haverá uma recompensa ou punição. Dentre os temas mais recorrentes, tem- se o ciúme exagerado, a avareza, o incesto, a premeditação maldosa e a falta de lealdade.

Como exemplo, pode-se citar a história dos dois irmãos Kanaraty e Kanarawary. Com uma narração extensa, explicitada em Junqueira (2007), o mito envolve diversos elementos e personagens que se envolvem em uma trama de acontecimentos que narram, dentre outras, condutas de ciúmes exagerado, de premeditação maldosa e de vingança.

Em linhas gerais, Kanarawary, ao ouvir a conversa insinuante do irmão com um amigo sobre a sua esposa, fica acometido de muito ciúme e decide vingar-se do irmão. Para tanto, prepara diversas armadilhas para matar Kanaraty, mas todas sem sucesso. Kanaraty, aconselhado pelo avô Mavutsinin, tem em cada situação armada pelo irmão a ajuda dos avós animais, como o gambá, a aranha, o morcego, o cupim, o beija-flor, a cigarra e os passarinhos. Ao final, Kanarawary, além de não conseguir vingar-se do irmão, é pego por sua própria armadilha. É morto pela chifrada no peito de um bicho grande que ele próprio havia designado para matar o irmão Kanaraty. Com a morte de Kanarawary, Kanaraty se casa com as duas viúvas do irmão.

Em relação aos mitos que têm como função trazer uma justificativa de origem da humanidade, buscando uma explicação para as indagações sobre o universo desconhecido da criação, podemos identificar também algumas referências que caracterizam o cotidiano Kamaiurá.

No universo originário, como relatam alguns mitos, entre os animais e os índios há uma semelhança niveladora. Apesar da aparência diversa, todos fazem parte do mesmo fenômeno da vida, ou seja, ambos são mortais e possuem uma alma (JUNQUEIRA, 2004). Nesse contexto, animais e humanos se comunicam na mesma língua e convivem normalmente como iguais. É por isso que de forma natural esses mitos relatam o casamento entre homens e mulheres com os animais.

Na vida cotidiana, a partir dessa parceria estabelecida nos mitos, os espíritos dos animais para os Kamaiurá possuem temperamento e personalidade variáveis. Alguns deles, dotados de conhecimentos superiores, é que ensinam o poder de cura aos pajés da aldeia. Sem essa orientação, não seria possível ao pajé curar uma doença, auxiliar nos partos difíceis, localizar pessoas perdidas na mata etc. Em contrapartida, os espíritos

desses animais exigem regras de conduta dos iniciados para a realização da pajelança, como algumas restrições alimentares e a abstinência sexual90.

Essa origem mitológica comum dos Kamaiurá e dos animais é definidora de um forte laço entre o ser humano e a natureza. Os indígenas, considerando os animais como iguais, não se sentem separados do meio ambiente natural, mas colocam-se como partes de um mesmo todo91.

Vale ainda ressaltar que o mito pode cumprir o papel de perpetuar modelos de comportamento úteis ao grupo de maior poder, no caso dos Kamaiurá o grupo masculino. Por meio de vários relatos, os homens conseguem impor sua supremacia, limitando a mulher a uma participação secundária na esfera cultural e excluindo-a do campo espiritual (JUNQUEIRA, 1998).

Dando continuidade a essa análise sobre a interface entre o real e o simbólico no cotidiano Kamaiurá, veremos a seguir como o ritual do Kuaryp, considerado uma festa símbolo do Alto Xingu, expressa o mito por meio do rito.