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Uma abordagem multimetodológica

1. Entre mentiras, boatos e notícias: a teia complexa da esfera pública política

3.2. Uma abordagem multimetodológica

O desenho metodológico da pesquisa é baseado no uso de métodos mistos e de métodos digitais, o que inclui também análise de conteúdo. A combinação de métodos é cada dia mais comuns para se entender a complexidade dos objetos digitais na perspectiva das Ciências Sociais (BOUNEGRU et al., 2017), o que será explicado neste tópico. Primeiramente, os métodos mistos consistem na integração de abordagens quantitativas e qualitativas, com combinação de procedimentos, e trazem vantagens em termos de confirmação e de complementariedade283 (PARANHOS et al., 2016).

Os métodos digitais, por sua vez, que foram usados principalmente para coleta e análise de dados, tendo em vista que o objeto de estudo (fake news), são aqui considerados em sua dimensão eminentemente digital. Esse tipo de pesquisa é fundado em dados online (ROGERS, 2016) e investiga a dinâmica digital do objeto em questão em referência aos

283 Do ponto de vista confirmatório, argumenta-se que inferências advindas de uma pesquisa com

diferentes métodos (questionário, análise documental, entrevistas, por exemplo) possuem resultados mais consistentes. Do ponto de vista da complementariedade, parte-se do entendimento de que cada tipo de técnica oferece uma “parcela específica de conhecimento” em torno do objeto de estudo. “A vantagem fundamental da integração é maximizar a quantidade de informações incorporadas ao desenho de pesquisa, favorecendo o seu aprimoramento e elevando a qualidade das conclusões do trabalho” (PARANHOS et al., 2016, p. 390).

125 meios - nesse caso, as plataformas de mídias sociais - pelos quais eles percorrem (ROGERS, 2017b).

Em contraposição aos métodos virtuais284, o modelo inaugurado e defendido por Rogers busca “empregar os métodos do médium, de modo a refletir sobre as affordances de plataformas e motores de busca, e repropondo seus métodos e resultados para pesquisa social (e dos médiuns”)285 (ROGERS, 2017b, p. 90–91). Isso quer dizer que os estudos dos fenômenos sociais e dos meios pelos quais eles emergem não estão nunca apartados286.

Dois aspectos metodológicos da pesquisa, ainda no âmbito dos métodos digitais, são especialmente desafiadores. Primeiro, as diferentes plataformas; segundo, a multiplicidade de formatos (e versões), entre textos, vídeos, áudios, links, imagens, pela qual as fake news se apresentam. Em geral, sobre o primeiro caso, a ampla maioria dos objetos digitais ainda é pesquisada no âmbito de uma única plataforma. Mesmo em pesquisas estruturadas em torno de métodos digitais, os “(...) ‘estudos de plataforma única’ se tornaram a norma”287 (ROGERS, 2017a, p. 3).

Venturini e colegas (2018) chamam a atenção, no entanto, para o fato de que a maioria dos fenômenos coletivos não circula apenas em uma plataforma específica, tendo como exemplo principal o caso das fake news. “O perigo do sucesso das fake news vem menos da sua falsidade (que é, em muitos casos, fácil de detectar) do que da viralidade com as quais eles pulam de um meio para outros e assim constantemente ocupam a agenda pública288” (VENTURINI et al., 2018, p. 14).

Além desse aspecto, também é importante ressaltar que a maior parte dos estudos gira em torno do monitoramento de hashtags ou é construído a partir de uma ou algumas

284 Sobre isso, ver “O fim do virtual: os métodos digitais”, obra na qual Rogers defendeu que as pesquisas

de internet insistem em tratar os fenômenos online como algo típico “da internet”, como “uma realidade virtual à parte” (ROGERS, 2016).

285 “(...) to employ the methods of the medium, imagining the research affordances of engines and

platforms, and repurposing their methods and outputs for social (and medium) research (ROGERS, 2017b, p. 90–91).

286 Para ficar mais claro, algumas noções-chave são relevantes para os métodos digitais. Médium significa

“qualquer infraestrutura técnica que permite a organização e extensão de ações coletivas no espaço e tempo” ; rastros digitais correspondem a qualquer inscrição (como um post, por exemplo) “produzida por um meio digital em sua mediação de ações coletivas” ; e corpus corresponde ao “conjunto de inscrições ou traços que passaram pelo processo de seleção, limpeza e refinamento” (VENTURINI et al., 2018, p. 5– 6).

287 “(…) ‘single-platform studies’ have become the norm” (ROGERS, 2017b, p. 3).

288 “The danger of successful fake news stories comes less from their falseness (which is in most cases

easy to detect) than from the virality with which they bounce from a medium to the other and thereby steadily occupy the public agenda” (VENTURINI et al., 2018, p. 14).

126 contas (ROGERS, 2017a, p. 3–4), o que, como explicado acima, tende a restringir ainda mais os resultados a um universo específico.

Estudar múltiplos meios digitais significa também que as características estruturais das plataformas não são igualmente comparáveis, pois as funcionalidades possuem dinâmicas e geram ações diferentes. Por exemplo, há funções de reenvio conteúdo, que interessam especialmente a esta pesquisa, na maior parte dos meios digitais, representadas pelo botão “compartilhar” do Facebook, o “retuíte” do Twitter e o “reencaminhar” do WhatsApp, porém na interação usuário-plataforma cada uma delas possibilita diferentes ações e/ou funciona de modo particular, e essas especificidades do meio são levadas em consideração nos estudos baseados em métodos digitais.

Fonte: (ROGERS, 2017)

A análise entre plataformas costuma estar orientada, em geral, por conteúdos associados (“Co-linked content”), que correspondem às URL’s que ligam dois ou mais usuários; por conteúdos entre usuários (“Inter-linked content”), aqueles curtidos por usuários e páginas entre plataformas; e conteúdo multiplataforma referido por hashtags (“Cross-hashtagged content”) (ROGERS, 2017a, p. 11) (Fig.7). Nota-se que, nesse caso, há sempre um elo para relacionar objetos semelhantes entre si em comparações entre

127 plataformas. Curiosamente, por exemplo, as hashtags podem ser meios de análises comparativas entre Twitter e Instagram, mesmo que sejam programadas de formas distintas, mas não necessariamente são eficazes no Facebook.

Na pesquisa aqui proposta, o elemento tido como elo é o próprio conteúdo, que pode estar em diferentes formatos, como textos, vídeos, áudio, URL, entre outros. Sobre isso, advém o segundo desafio metodológico da pesquisa, justamente analisar conteúdos em diferentes formatos, o que também é apontado como lacuna dos estudos baseados em métodos digitais. Pearce e colegas (2018) enfatizam que as pesquisas em mídias sociais têm privilegiado abordagens unimodais, majoritariamente textos, em detrimento de narrativas visuais como imagens.

Dados visuais fornecem um ponto de partida essencial na fenomenologia das plataformas vernaculares que capturam sua capacidade de contar histórias, ritmos afetivos, públicos, além das métricas de engajamento ou conteúdo puramente textual que são mais fáceis de analisar em escala289 (PEARCE et al., 2018b, p. 5).

Assim, defendem que pesquisas no âmbito dos métodos digitais se proponham a uma abordagem multimodal, isto é, que levem em consideração a diversidade de fontes existentes, entre elas textuais, auditivas, linguísticas, espaciais e visuais (PEARCE et al., 2018b, p. 6). A disseminação em diferentes plataformas e a consideração de conteúdos multimodais são características fundamentais das fake news e por isso precisaram ser encaradas como desafios metodológicos da pesquisa.

Neste estudo, como a proposta foi a de investigar as histórias falsas mais populares, independentemente do tema, não houve condições de definir previamente um recorte para direcionar a coleta de dados. Ou seja, a busca por fake news não esteve orientada por um tema, um formato, um candidato presidencial, uma página no Facebook, uma hashtag no Twitter ou um conjunto de grupos públicos no WhatsApp. Foi preciso, assim, esperar o curso da campanha eleitoral para conhecer quais seriam as informações falsas mais relevantes da corrida presidencial de 2018.

Essa ressalva se torna necessária para explicar, primeiramente, que o corpus da pesquisa se conformou na medida em que sucederam os episódios e as narrativas eleitorais e, segundamente, que a coleta de dados se concentrou no conteúdo da fake news

289 “Visual data provide an essential entry point into the phenomenology of platform vernaculars that

captures their storytelling capacities, affective rhythms, and publics, beyond engagement metrics or purely textual content which are easier to analyze at scale” (PEARCE et al., 2018, p. 5).

128 propriamente dita, não importa se a sua disseminação tenha partido do Facebook, do Twitter, do WhatsApp, ou se foi transmitida como texto, vídeo, imagem, meme, etc. Assim, pesquisar fake news se tornou um processo aberto, descentralizado e baseado em seguir os rastros digitais de cada uma das histórias.

Enquanto os métodos digitais foram aplicados para a coleta de dados e para estudar a propagação viral das fake news (as ferramentas digitais usadas serão detalhadas mais à frente, quando as categorias de análise forem apresentadas), a análise de conteúdo esteve voltada ao exame sistemático das mensagens (ou comunicações), com vistas a estudar processos de coocorrência entre palavras, entre atores políticos e/ou instituições públicas e entre temáticas.

Essencialmente, a análise de conteúdo possui função heurística (descobertas por vias exploratórias) e de administração de provas (averiguação de hipóteses) (BARDIN, 1977, p. 30). Ao resumir o que entende como sendo o objetivo da análise de conteúdo, Bardin escreve que esse conjunto de técnicas busca “(...) obter, por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição dos conteúdos das mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) dessas mensagens” (BARDIN, 1977, p. 41).

No âmbito da análise de conteúdo, alguns procedimentos foram feitos de modo manual (como a identificação de temáticas e de atores ou instituições). Já a análise textual (como do corpus e da coocorrência entre palavras) foi realizada de modo automatizado, por meio do software Iramuteq290. Para a análise textual, considerou-se como texto tanto mensagens escritas quanto aquelas apresentadas como áudio ou vídeo, cujos discursos foram transcritos.

Em ambos os casos, houve abordagens quantitativas e qualitativas. Sobre elas, ao tempo em que a pesquisa quantitativa almeja generalização, de modo a alcançar a reprodutibilidade (KRIPPENDORFF, 2004), a qualitativa tem por mote a transferibilidade, a fim de entender se os padrões se repetem em diferentes contextos, ajudando a caracterizar o fenômeno (WHITE; MARSH, 2006, p. 31). Feitas as considerações, que levam em conta os desafios e as escolhas metodológicas da pesquisa, passa-se para a apresentação da metodologia propriamente dita.

290 Iramuteq é um software gratuito de análise textual que é ligado ao pacote estatístico do R. Para saber

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