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As características definidoras do objeto fake news

1. Entre mentiras, boatos e notícias: a teia complexa da esfera pública política

1.2. Fake news como tipo de informação: as diretrizes conceituais

1.2.3. As características definidoras do objeto fake news

O que se convencionou fake news são um tipo de informação inverídica ou distorcida que simula uma notícia – ou novidade – para narrar fatos políticos e assim conquistar maior visibilidade no trânsito entre plataformas de mídias sociais. Isso quer dizer que fake news podem ser entendidas como uma espécie dentre a ampla gama de conteúdos capazes de gerar distorções e enganos no entendimento da realidade, ou seja, que potencialmente promovem desinformação generalizada. A condição de “notícias”, assim, torna-se um dos elementos centrais para distinguir fake news dentre outras informações potencialmente nocivas em circulação online. Por isso, assinalou-se até aqui “um tipo” ou “uma espécie” de conteúdo usado para fins de desinformação.

A noção de notícia – ou novidade (‘news’) – advém de duas raízes: da invenção ou distorção dos fatos e da camuflagem da linguagem jornalística. Salienta-se, com isso, que o simulacro noticioso não resulta apenas da roupagem de artigo ou reportagem jornalística, mas também da reivindicação dos fatos aos quais abordam. Tais relatos, portanto, são pretensamente factuais, e não fantasiosos ou intencionalmente ficcionais (GOMES; DOURADO, 2019). Em outras palavras, mesmo em casos de completa mentira, fake news são construídas e distribuídas para se passar por fatos credíveis, e, adicionalmente, são compartilhadas entre perfis e páginas que creem ou querem levar a crer que o caso ali narrado é legítimo.

Pesquisa anterior que discutiu a natureza do objeto ao estudar o caso das fake news sobre a temática “fraude nas urnas” nas eleições brasileiras de 2018 já tinha demonstrado que, a despeito dessa dupla contrafação, a reivindicação da ideia de fato é intrínseca às histórias falseadas, enquanto a camuflagem do formato jornalística é ocasional. “Isso não muda o fato, contudo, de que praticamente todas as histórias falsas em circulação pretendam-se, explícita ou implicitamente, relatos factuais autênticos sobre fatos correntes no mundo” (GOMES; DOURADO, 2019, p. 36). No cerne da noção de notícias, portanto, está a base factual.

Assim, mais do que simular notícias jornalísticas em forma, como defendido na recente literatura que estuda esse fenômeno no contexto digital (GELFERT, 2018; LAZER et al., 2018), à luz principalmente dos sites caça-cliques, fake news imitam a ideia de novidade, de fato que precisa ser comunicado, porque é de alegado interesse público. A forma, ou formato, o que inclui o uso de fontes, distribuição via sites, inserção de manchetes, linguagem direta, entre outros elementos, são artifícios explorados por essas

55 narrativas para oferecer ao leitor (e eleitor) mais segurança sobre a própria legitimidade. Esses elementos, vale ressaltar, não são apresentados conjuntamente, mas aparecem em graduação bastante variada nas fake news.

A intenção, nesse sentido, pode ser reconhecida pela forma como a informação é apresentada, seja por meio visual, auditivo ou audiovisual, já que o relato pretensamente factual é organizado como se fosse uma notícia por alguém antes de ser distribuída online. Mesmo em fake news em formato de áudio, por exemplo, é possível encontrar elementos textuais, como o uso do termo “urgente”, “exclusivo” ou o próprio pedido “compartilhe em seus grupos de WhatsApp”, o que se assemelha às notícias de última hora, mesmo o presumido fato sendo narrado por suposta testemunha ocular.

Apresentar um fato falso como se fosse história verossímil, portanto, requer mão- de-obra humana, independentemente de se isso é feito de forma espontânea ou orquestrada em grupos sociais ou políticos - essa origem, aliás, costuma ser desconhecida, até porque essas histórias não têm assinaturas verdadeiras ou não levam assinatura alguma. De todo modo, notícias fabricadas são montadas estrategicamente, ou premeditadamente, para dar a impressão de que possuem verossimilhança. Em geral, presume-se que o leitor não tem conhecimento prévio de que aquela história é falsa.

Como no caso da paródia, um bem-sucedido artigo fabricado (...) é um artigo que se baseia em memes ou parcialidades pré-existentes. Ele os funde em uma narrativa, muitas vezes com um partidarismo político, que o leitor aceita como legítima. O leitor enfrenta mais dificuldade na verificação uma vez que a notícia fabricada é também publicada por organizações não noticiosas ou por indivíduos sob um verniz de autenticidade, ao seguir os estilos e formas de apresentação jornalísticos. Os artigos também podem ser compartilhados em mídias sociais e, assim, ganhar ainda mais legitimidade, uma vez que o indivíduo os recebe de pessoas em quem confia113 (TANDOC JR, LIM e LING, 2017, pg. 7).

A percepção de que fake news simulam notícias, no contexto contemporâneo, começou a ser formulada pelos autores que se debruçaram sobre o caso das eleições dos Estados Unidos de 2016. Ainda hoje, mas especialmente naquele momento, as pesquisas teóricas e empíricas sobre notícias falseadas se concentraram sobretudo nos sites caça-

113 “As with the case of parody, a successful fabricated news item (…) is an item that draws on pre-existing

memes or partialities. It weaves these into a narrative, often with a political bias, that the reader accepts as legitimate. The reader faces further difficulty in verification since fabricated news is also published by non-news organizations or individuals under a veneer of authenticity by adhering to news styles and presentations. The items can also be shared on social media and thus further gain legitimacy since the individual is receiving them from people they trust” (TANDOC JR, LIM e LING, 2017, pg. 7).

56 cliques que criavam manchetes sensacionalistas e enviesadas acerca da disputa presidencial, fórmula que resulta em retornos financeiros para quem gerencia essa fábrica de sites fantasmas. Entendeu-se que essas falsas narrativas, naquele momento, ganhavam a roupagem de “artigos jornalísticos”.

Numa expressão contundente, autores deste ambiente declaram: “Definimos fake

news como sendo artigos jornalísticos intencional e comprovadamente falsos e que

podem induzir em erro os leitores”114 (ALLCOTT; GENTZKOW, 2017, p. 213–214). Apesar dessa prática se repetir no Brasil e em outros países, a camuflagem das fake news como artigos de jornais não representa o único formato de distribuição deste tipo de material, que costumeiramente também aparecem em forma de vídeos, de fotografias, de correntes de textos e etc.

A estrutura central, defende-se, é a pretensão factual da narrativa distribuída, isto é, a presunção de que é uma narrativa verdadeira sobre um fato real. Característica, aliás, de qualquer mentira é a pretensão que comporta de que diz a verdade sobre algo que efetivamente se deu. Suplementarmente, no caso em tela, dá-se o mimetismo, a imitação, o disfarce, a camuflagem como uma notícia típica da imprensa profissional. Mas não necessariamente isso ocorre, podendo acontecer hoje em dia fake news com qualquer tipo de material (fotos, vídeos, cards, textos, áudios) e em qualquer gênero de discurso (testemunho, narração em terceira pessoa, opinião, descrição), apesar de que, de fato, a simulação como matérias de jornais lhes confere muito maior autoridade e veracidade junto ao público.

Nesse sentido, o adjetivo fake (falso, fraudulento, fabricado) e o substantivo news (notícia, matéria jornalística) formam a expressão lá pelo longínquo ano de 2016 porque o mimetismo da mentira como matéria de jornal ou site de notícia constituía – e ainda constitui – o padrão-outro de credibilidade junto ao público que uma fake news pode tentar obter. Hoje, contudo, o adjetivo se tornou mais importante que o substantivo e o fato de ser mentira, fraude, adulteração, falsificação, contrafação, enfim, é que o caracteriza uma informação, não importa o seu formato nem o gênero de discurso adotados, como fake news.

Por outro lado, se fake news faz parte do gênero das informações falsas, nem todas falsas informações são fake news. Allcott e Gentzkow, particularmente, destacam que não

114 “We define “fake news” to be news articles that are intentionally and verifiably false, and could mislead

57 consideram fake news, por exemplo, reportagens ou relatos com erros não intencionais, teorias da conspiração, sátiras que claramente não são factuais, afirmações falsas de políticos e reportagens ou relatos tendenciosos ou enganosos, que não são completamente falsos (ALLCOTT; GENTZKOW, 2017, p. 4).

Isso significa que fake news não devem ser confundidas com comentários, opiniões, obras claramente de ficção, memes e sátiras políticas baseadas em mentiras, intolerância, sectarismo e teorias da conspiração, por exemplo. No cerne dessas peças, evidencia-se a base factual e o aspecto noticioso. Assim, configura-se que o componente ‘falsidade’ presente nas fake news pode ser objetivamente comprovado por meio de rotinas de verificação de fatos realizadas seja por jornalistas seja por indivíduos.

Antes de consolidar o entendimento sobre o tema, outro elemento-chave precisa ser explorados de forma mais estrita: a ideia de viralidade, ou o efeito viral. A noção de “disseminação viral”, especificamente, vai ser desenvolvida no capítulo a seguir, quando a fundamentação conceitual se voltará aos meios e modos de propagação, mas será brevemente apresentada porque também é componente importante da dinâmica contemporânea das fake news.

Disseminação viral, aqui, é considerada parte do conceito de fake news (BOUNEGRU et al., 2017, p. 60). Isto porque a legitimidade que essas narrativas falsas conquistam também resulta do volume alto de compartilhamentos em plataformas de mídias sociais, em um processo de contágio entre usuários e redes online. Ou seja, fake

news amplamente compartilhadas e, por isso, populares, podem aparentar, aos olhos de

quem as recebe, maior sentido de verossimilhança.

Fake news não são apenas "fake news". Eles são atraentes não tanto porque seu conteúdo ou forma são diferentes dos das “notícias autênticas”, mas porque viajam tanto quanto (e às vezes mais do que) notícias mainstream. Se um blog afirma que o Papa Francisco apoia Donald Trump, isso é apenas uma mentira. Se a história é escolhida por dezenas de outros blogs, retransmitida por centenas de sites, postada em milhares de contas de mídia social e lida por centenas de milhares, torna-se uma fake news115

(BOUNEGRU et al., 2017, p. 60).

115 “Fake news are not just “false news”. They are interesting not so much because their content or form

are different from that of “authentic news”, but because they travel as much as (and sometimes more than) mainstream news. If a blog claims that Pope Francis endorses Donald Trump, it's just a lie. If the story is picked up by dozens of other blogs, retransmitted by hundreds of websites, cross-posted over thousands of social media accounts and read by hundreds of thousands, then it becomes fake news” (BOUNEGRU et al., 2017, p. 60).

58 A partir disso, é preciso frisar que quantidade infindável de informação falsa, inclusive fake news, pode circular socialmente nos ambientes digitais sem ser desmentida por projetos de verificação de fatos simplesmente porque não conquistaram visibilidade pública e centralidade no debate político-eleitoral online. As histórias que costumam ser desmentidas geralmente circularam mais amplamente nos ambientes digitais.

Até o momento, a atenção está voltada ao objeto em si, nu e cru, e não aos motivos que levam à sua propagação. Defende-se que as características discutidas podem ser definidas como padrões, portanto generalizáveis, dos artigos de fake news. Com base nesta concepção, parte-se do entendimento de que fake news são um tipo específico de

informação inverídica apresentado como histórias presumidamente factuais, porém comprovadamente falsas, produzidas com a intenção de serem distribuídas como notícias de última hora nos ambientes digitais.

Deste modo, fake news, como contrafação de relatos de bases factuais, se passam por notícias não necessariamente pela mimetização do formato jornalístico, mas porque são comunicações que simulam fatos e acontecimentos urgentes, escandalosos e graves, que precisam ser conhecidos, portanto compartilhados, para o maior número de pessoas possível. Peças de fake news costumam reproduzir, muitas vezes, ideias e valores já compartilhados em nichos específicos, entre afinidades ideológicas, crenças sectárias e teorias da conspiração. Atualmente, não se pode negar ainda que artigos de fake news são criados para circular digitalmente e supondo o modo como as pessoas se comportam

online.

Outros três componentes são aqui considerados determinantes para entender a propagação que esse tipo de informação inverídica alcança nas mídias sociais. O primeiro componente se refere ao contexto político, no qual a presença de polarização política

online (TUCKER et al., 2018) intensifica ações políticas baseadas em repertórios de

conflitos (MENDONÇA; FREITAS, 2018) e gera engajamento político de acordo com os preceitos de epistemologias tribais (GOMES, DOURADO, 2019; GOMES, 2019).

O segundo componente a se levar em conta é o ambiente comunicacional, visto que a centralidade das mídias sociais tem aberto espaço para ascensão de novos canais informativos, alterado os modos de consumo noticioso, fortalecido a comunicação interpessoal e encorajado a formação de redes desintermediadas, fragmentadas e autônomas (CHADWICK, 2013; PATTERSON, 2010; SALGADO, 2018; VAN AELST et al., 2017).

59 Por fim, o terceiro aspecto se relaciona às condições sociotécnicas, o que abrange personalização de conteúdo, mediação algorítmica e automatização da difusão de mensagens, que ensejam novas práticas interativas entre diferentes atores e batalhas de narrativas nas arenas digitais (BILLIET et al., 2018; KEATON, 2019; KHALDAROVA; PANTTI, 2016; MARWICK, 2018; MARWICK; LEWIS, 2017; SHAO et al., 2017).

Com mais clareza acerca do objeto de estudo, portanto, a pesquisa se debruça sobre essas três dimensões, nomeadamente contexto político, ambiente comunicacional e condições sociotécnicas com foco nas mídias sociais.

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2º CAPÍTULO: MÍDIAS SOCIAIS, POLARIZAÇÃO POLÍTICA E FAKE

NEWS

O segundo capítulo da tese, e último teórico, examina o objeto fake news à luz de uma comunicação digital baseada no uso de mídias sociais e de um ambiente comunicacional online que se retroalimenta da polarização política. O capítulo foi estruturado em duas etapas. A primeira discute a interação entre os filtros pessoais, representados pelas escolhas dos indivíduos, e os filtros algorítmicos, ou sistemas pré- programados e reprogramados pelas plataformas, e sua implicação nos hábitos comunicativos e no fluxo de informação política online. Discute-se, nessa linha, o impacto da ascensão de um ecossistema de canais de direita, dos novos líderes de opinião, da participação de contas falsas e da função de compartilhar conteúdo político para a esfera pública contemporânea. A segunda etapa insere fake news como objeto de disputa política que mobiliza conflitos, antagonismos e incivilidade nesses ambientes digitais, um processo marcado por crises epistêmicas e que gera tensões democráticas. Para isso, foi preciso mergulhar mais especificamente sobre o sentimento político antipetismo, que foi central nas eleições de 2018, e debater o problema fake news como desafio transnacional.