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Crise epistêmica e tensões democráticas

1. Entre mentiras, boatos e notícias: a teia complexa da esfera pública política

2.2. Fake news como disputa política de tendência antidemocrática

2.2.1. Crise epistêmica e tensões democráticas

A polarização política, quando pessoas aderem a posições contrapostas e distantes uma das outras, está espelhada na forma como narrativas fraudulentas exploram divergências políticas em torno de temas, personagens e linguagens, enviesando fatos e realidades de contextos regionais, nacionais e globais. A polarização política tem ajudado a criar um clima favorável para a propagação e validação de informações falsas, reflexo da presença de “sentimentos cada vez mais negativos que cada lado do espectro político mantém em relação ao outro”188 (ALLCOTT; GENTZKOW, 2017, p. 228–229). A polarização política acentuada também tem estimulado o clima de desconfiança de parte da sociedade em relação às instituições democráticas, entre elas, imprensa, partidos políticos, governos, Justiça e ciência.

Essa crise epistêmica que ganhou corpo no mundo contemporâneo, capaz de negar fatos e conhecimento acumulado em diversos setores, tem impactado também os hábitos informativos e aberto espaço para consumo de informações absurdas, como no caso das

fake news. Uma pesquisa recente demonstrou que o desempenho das fake news difere na

medida em que a população confia mais ou menos nas instituições políticas nacionais

188 “(...) the increasingly negative feelings each side of the political spectrum holds toward the other”

96 (HUMPRECHT, 2018). O estudo realizou análise comparativa em quatro democracias – Estados Unidos, Reino Unido, Alemanha e Áustria – e concluiu que, nos países de língua inglesa, fake news apresentavam viés partidário e atacavam a elite política ou grupos políticos específicos, enquanto nos países de língua germânica o maior alvo são os imigrantes, relacionando-os, por exemplo, a atividades criminosas, com abordagens mais sensacionalistas. Em ambos os casos, no entanto, verificou-se que as narrativas fraudulentas estavam vinculadas às agendas dos meios de comunicação tradicionais (HUMPRECHT, 2018, p. 8).

Um outro estudo que buscou entender a relação entre polarização política e consumo de informação falsa nos Estados Unidos concluiu que os grupos que estiveram nos polos se informavam a partir de fontes distintas, que a maior parte das informações indesejadas foi consumida por apoiadores de Donald Trump e que os democratas estiveram entre aqueles com maior adesão às notícias de veículos tradicionais, enquanto que os republicanos restringiram-se mais a fontes reconhecidamente conservadoras (NARAYANAN et al., 2018).

Os professores Joshua A. Tucker (New York University), Pablo Barbera (London School), Cristian Vaccari (Univ. di Bologna) e colegas compreendem que o uso de mídias sociais, a polarização política e a proeminência de informações falsas em circulação formam a tríade de atitudes políticas que podem pôr em xeque a qualidade da democracia (TUCKER et al., 2018). Esses três fatores, junto com engajamento político, meios de comunicação tradicionais e comportamento político, são interligados e ajudam a conformar um processo contínuo de equívocos ou confusões generalizados sobre os acontecimentos públicos e sobre o funcionamento democrático (Fig. 6).

Fonte: (TUCKER et al, 2018)

97 O relatório chega a algumas conclusões sobre a relação entre mídias sociais, polarização política e informações falsas/não verificadas, que podem ser resumidas e sistematizadas nos seguintes termos:

a) O comportamento das elites, nas quais se incluem os políticos, desencadeia a polarização política mais do que a comunicação;

b) Mensagens que exploram estereótipos e distorções sobre determinados grupos são mais facilmente aceitas mesmo contendo informações imprecisas;

c) A emoção, principalmente raiva e a ansiedade, importa;

d) A atualidade da falsa informação em relação ao fato político também é importante – ou seja, quanto mais recente, maior a aceitação;

e) Difusão viral dessas mensagens também influi na validação social; e, por fim,

f) Mensagens audiovisuais tendem a ser mais persuasivas e, consequentemente, mais compartilhadas nas plataformas de mídias sociais (TUCKER et al., 2018, p. 40).

Como uma força-motriz, a intensa presença de fake news reforça a polarização política e a deterioração da discussão pública baseada em valores democráticos, já que exploram urgências na forma da distorção política e por meio do uso de expressões radicais. A polarização política, assim, pode se transformar em processo contínuo e crescente (LEWANDOWSKY; ECKER; COOK, 2017; LEVITSKY, ZIBLATT, 2018) que fortalece a disputa, a divisão, o conflito, a incivilidade e a intolerância social. A situação se agrava quando personalidades de perfis autoritário e antidemocrático conseguem extrapolar a esfera restrita do grupo político e conquistar a simpatia do eleitorado polarizado, visto que a comunicação direta é uma realidade da era digital.

O uso de mídias sociais, nesse sentido, horizontalizou não só a oferta e o consumo informativo, como também consolidou redes em torno de teorias conspiratórias e emancipou disparates e opiniões políticas extremistas e radicais no ambiente comunicativo. Ideias disseminadas por líderes políticos extremistas são reforçadas por fontes de informações de proselitismo ideológico, o que os torna cada vez mais independentes dos meios de comunicação profissionais. O líder político ou do grupo político que está na esfera de visibilidade pública exerce papel fundamental para

98 promover polarização política e abrir espaço para tendências antidemocráticas – ou autoritárias – em pleno século 21.

Como exemplo, o comportamento praticado por Donald Trump antes, durante e depois das eleições dos EUA arregimentou o aumento de tensões democráticas e a ascensão de populistas de direita no mundo ocidental. No Brasil, algumas das posturas autoritárias adotadas por Trump se mostram bastante semelhantes com aquelas encampadas para que um político de extrema-direita como Jair Bolsonaro (CHARLEAUX, 2018) chegasse à presidência 33 anos depois o fim da ditadura militar189. Entre essas condutas, estão, no sumário feito pelos autores do livro “Como as democracias morrem” (LEVITSKY; ZIBLATT, 2018, p. 66-70):

“Ausência de compromissos com as regras democráticas do jogo”, o que abrange discursos que põem em xeque a própria autenticidade e legitimidade do processo eleitoral, vide complôs sobre fraude nas urnas e golpes eleitorais;

A “negação da legitimidade dos adversários” – nas palavras dos autores: “(...) os políticos autoritários descrevem os rivais como criminosos, subversivos, não patrióticos, ou como ameaça à segurança nacional ou aos modos de vida existentes”;

“A tolerância/encorajamento da violência”, de onde emergem grupos sectários; e, por fim,

“A prontidão para limitar as liberdades cívicas de rivais e críticos” – sobre isso, observam: “Uma coisa que separa os autocratas contemporâneos dos líderes democráticos é a sua intolerância à crítica e a sua prontidão para usar o seu poder para castigar aqueles na oposição, nos media ou na sociedade civil”.

A adesão desse tipo de discurso por políticos populistas abriu o debate do que foi chamado de “pós-verdade”, considerada palavra do ano da língua inglesa pelo dicionário Oxford em 2016, e que repercutiu como tema de interesse na opinião pública e na comunidade científica. Na descrição do Oxford, pós-verdade “se relaciona ou denota

189 O fim da ditadura militar completou 33 anos em 2018, quando Jair Bolsonaro foi eleito presidente do

99 circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais” (OXFORD, 2016). “Isso inclui situações em que as inverdades fabricadas são mascaradas como verdade e situações em que alguns elementos da verdade são combinados com doses pesadas de exagero a fim de causar agitação”190 (SALGADO, 2018, p. 317–318).

O declínio do capital social, da confiança na ciência, a desigualdade crescente, a ascensão da polarização política e a evolução do ambiente mediático mediado por mídias sociais são, portanto, tendências que fortalecem um contexto marcado pela retórica da “pós-verdade”, mobilizada por movimentos políticos radicais e extremistas motivados mais por ideologias do que por evidências (LEWANDOWSKY; ECKER; COOK, 2017). Para Ball, a retórica da “pós-verdade” está diretamente associada à valorização de disparates (ou besteiras, na tradução de bullshit) propagados em discursos populistas e fortalecidos junto com as mídias sociais.

A abordagem pós-verdade é a abordagem do autocrata: por uma campanha de atrito, a confiança em instituições como o Estado, o judiciário e a mídia é enfraquecida, até que o discurso público seja simplesmente um conflito de narrativas concorrentes: uma disputa que pode ser vencida pelo lado disposto a fazer as jogadas mais ousadas em relação à emoção e ao apelo em massa - muitas vezes, a história nos ensinou, através da demonização de grupos minoritários191 (BALL, 2018, p. 278).

O entendimento sobre o truque verbal da “pós-verdade” também envolveria uma crise de representatividade e a ascensão de líderes populistas outsiders, portanto. “Pós- verdade”, assim como “fatos alternativos”, expressão usada pela assessora presidencial de Donald Trump, Kellyanne Conway, ao ser questionada sobre o número de pessoas que estava na cerimônia de posse do republicano em janeiro de 2017 (MARS, 2017), eclodiram como novas explicações para explicar o uso de mentiras e fraudes informativas na política contemporânea. Farkas e Schou (2018) chamam esse contexto de “era da hiperfactualidade”, mas consideram a ideia de verdade algo “flutuante”, como resultado

190 “It includes situations in which fabricated untruths are masqueraded as truth and situations in which

some elements of truth are combined with hefty doses of exaggeration in order to cause stir” (SALGADO, 2018, p. 317–318).

191 “The post-truth approach is the approach of autocrat: by a campaign of attrition, trust in institutions

such as the state, the judiciary and the media are undermined, until public discourse is simply a clash of competing narratives: a contest which can then be won by the side willing to make the boldest plays towards emotion and mass-appeal – often, history has taught us, through the demonisation of minority groups” (BALL, 2018, p. 278).

100 de “lutas discursivas”. “(...) aplicamos a perspectiva que mostra como as negociações sobre o que pode ser considerado verdadeiro são, por si mesmas, parte de uma luta política para hegemonizar o social”192 (FARKAS; SCHOU, 2018, p. 309).

Todos esses entendimentos, no entanto, parecem conferir às instâncias sociais o poder de determinar o que é verdadeiro ou falso, como se escolher e defender a versão que mais convém ao indivíduo fosse opção legítima em sociedades democráticas. Acatar a ideia de “pós-verdade” e derivações como “fatos alternativos” ou “hiperfactualidade”, cujo perigo maior consiste em transformar em característica de época o que é apenas uma excrescência praticada pela extrema-direita, é relativizar valores como verdade e mentira. O que existe, portanto, é a produção mal-intencionada de uma justificativa verbal para “as nossas mentiras”. Por isso, mais do que acreditar que exista algo após a verdade, que fatos podem ser alternativos ou que múltiplas versões têm peso equânime, mesmo sendo elas mentirosas ou propositalmente enviesadas, mais simples seria entender que, em meio à falta de confiança generalizada, existe também uma desconfiança nos meios de produção do conhecimento – ou anti-intelectualismo - que é oferecido historicamente pela ciência, meios de comunicação profissionais e instituições públicas.

O problema não está, como dito, na ideia de verdade, mas nos meios para a determinação do que é verdadeiro. Mesmo que fake news sejam parte de disputas por hegemonias políticas entre grupos opostos, portanto sejam peças estruturadas com base em repertórios de conflito (MENDONÇA; FREITAS, 2018), isso não deve anular as noções por detrás de valores como verdade e mentira, ou deve servir para naturalizar o uso de mentiras como práxis política e/ou de ação coletiva. A descrença nos fatos narrados por fontes primárias, desde governos à imprensa, e a construção de versões deturpadas de acontecimentos públicos, baseadas em teorias da conspiração ou na esquizofrenia populista, podem ser mais bem compreendidas à luz da ideia de crise epistêmica (GOMES, 2019). Crise epistêmica, aqui, busca explicar o comportamento de indivíduos e do coletivo social que abdica e nega o conhecimento construído acerca de um fato, de modo a apresentá-lo e justificá-lo na justa medida das crenças subjetivas compartilhadas por si ou por seu grupo social, mesmo sendo ele falso.

Como consequência, indivíduos têm tomado as rédeas sobre como e o que querem obter para formar e compartilhar conhecimento sobre o mundo, a ponto de precisarem

192 “Rather than arguing that truth no longer matters within politics, we have applied a perspective that

showcases how negotiations about what may be counted as truthful are in and of themselves part of a political struggle to hegemonize the social” (FARKAS; SCHOU, 2018, p. 309).

101 cada vez menos de mediadores ou de especialistas, a não ser que pertençam à tribo que eles participam e confiam. A epistemologia tribal tem sido mobilizada principalmente pela onda do conservadorismo de direita e é regida segundo princípios que dizem que “o que é bom para o nosso lado é verdadeiro, e o que determina o que é verdadeiro/bom- para-nós é a conformidade do conhecimento aos objetivos da tribo e a garantia dada pelos chefes tribais” (GOMES, 2019). Instâncias como ciência, escola, intelectuais, jornalismo, a Justiça e até a arte, que autenticam conhecimentos em cada campo específico, são negados e afrontados quando colidem com as premissas do conservadorismo sobre costumes, comportamentos, direitos e fatos em geral.

Desconfiar das más intenções dos professores, da má consciência dos cientistas, das más inclinações dos intelectuais, da tendenciosidade dos jornalistas, dos propósitos manipuladores dos artistas e, ultimamente, até da perfídia e impostura dos juízes do STF é apenas, portanto, a parte inicial de um processo que só se completa com a crença indiscutível no que diz a nossa mídia, o nosso grupo do WhatsApp, o nosso presidente, os nossos gurus intelectuais. A chamada crise epistêmica, portanto, que ensina a desconfiar do noticiário (fake news), da educação (doutrinação ideológica) e da ciência, é apenas a pars destruens, a demolição e desobstrução necessárias, a que se segue a pars construens, a construção de um novo edifício do conhecimento baseado em notícias produzidas e distribuída pela nossa ecologia midiática conservadora, em informações da atualidade feitas pelos nossos comentaristas políticos de direita e em ciência e filosofia com o selo de garantia de Olavo de Carvalho (GOMES, 2019).

Em alguma medida, as plataformas de mídias sociais têm facilitado a inserção dos usuários em comunidades de interesses afins e ressignificado a tribalização de grupos e das relações sociais, moldando “redes de guerra de informações” (BOYD, 2019). A fragmentação tecnológica, política e epistemológica, nesse sentido, é radar importante para ajudar a entender que a aceitação de fake news, mesmo sabendo que se tratam de fatos comprovadamente falsos, é também valorização de opiniões políticas individuais, muitas delas baseadas em falsas simetrias e falta de compromisso com o conhecimento socialmente validado, que ressoam em nichos de coletividade. A defesa da própria opinião – “é apenas a minha opinião! ” - é a forma justificada socialmente de se sobrepor aos fatos (DENTITH, M, R, 2017, p. 77). A mesma lógica pode ser transposta para o uso reverso do termo fake news – na forma de “isso é fake news”.

O aproveitamento da expressão no discurso político ou na disputa de opinião funciona como gatilho para que políticos se esquivem do escrutínio público, para que notícias veiculadas pela imprensa profissional seja desprezada e para que discussões políticas sejam encerradas (RIBEIRO et al., 2017). Alegar que “isso é fake news”,

102 portanto, significa falta de abertura para o contraditório, para a deliberação pública e para a pluralidade democrática. Para Dentith, nesses casos, a artimanha de tachar o que vem do outro como fake news não se assemelha à manifestação de opinião, mas de uma mentira, geralmente contra o líder político que contradisse aquele fato nos mesmos termos (DENTITH, M, R, 2017, p. 77). Segundo o autor, pensar em epistemologia pública é pensar sob a ótica da ética.

O padrão de debate que encontramos, que permitiu que as alegações de fake news floresçam, eu diria, saiu da exigência de sermos desapaixonados e educados em nossas discussões. Isso permite proliferar acusações como "Isso são apenas fake news!". Essa situação deveria nos dar motivos para fazer uma pausa para pensar. Dependendo do que você acha que é a relação entre epistemologia e ética, a ideia de que o debate racional deve ser conduzido ou baseado fora das normas éticas (sejam elas quais forem) é surpreendente. Afinal, se você pensa que epistemologia é o estudo do que devemos acreditar, é curioso que ela deva ser considerada divorciada da ética, que considera como devemos nos comportar193 (DENTITH, M, R, 2017, p. 77).

Notoriamente, crises epistêmicas, guerras informativas online e fragmentação ideológica se intensificam durante crises sociais, econômicas e políticas e reverberam mais fortemente com ansiedades e frustrações que cercam os períodos eleitorais. Entre os lados vitoriosos e derrotados, há todo um jogo de defesa e ataque que inflamam tendências autoritárias e geram tensões democráticas. Um ambiente digital que facilite a conexão entre essas tribos, com formação de comunidades tendencialmente homogêneas, que condicionam o que deve ser lido como norma, valores e verdades, pavimenta o caminho para a radicalização da opinião política e para a instabilidade da esfera pública. Como visto, a crise epistêmica da política contemporânea tem acompanhado a nova onda de extrema-direita, que retomou sua voz e conquista cada vez mais espaço, com canais e influenciadores, nas plataformas digitais.

193 “The standard of debate we find which has allowed allegations of fake news to flourish, I would argue,

has come out of requirement that we be dispassionate and polite in our discussions. This allows for accusations of “That’s just fake news!” – to proliferate. This situation should give us reason to pause for thought. Depending on what you think the relationship between epistemology and ethics is, the idea that rational debate should be conducted, or based outside of ethical norms (whatever they might be), is startling. After all, if you think epistemology is the study of what we ought to believe, then it is curious that it should be considered divorced from ethics, which considers how we ought to behave” (DENTITH, M, R, 2017, p. 77).

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