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1. Entre mentiras, boatos e notícias: a teia complexa da esfera pública política

3.3. Os procedimentos para coleta de dados

3.3.1. Composição do corpus

A coleta de dados em torno das fake news foi realizada nos meses de agosto a outubro de 2018291, período de campanha eleitoral, primeiro e segundo turno das eleições majoritárias do Brasil. Inicialmente, foi preciso montar o corpus geral da pesquisa, que foi composto por todas as histórias cujas falsidades e falsificações foram comprovadas por cinco dos principais projetos de verificação de fatos nacionais, nomeadamente, Aos Fatos, Lupa, Fato ou Fake, Comprova e Boatos.org.

Os projetos de verificação de fatos foram usados, portanto, como filtros que identificaram técnica e profissionalmente informações falsas repassadas como fatos e/ou notícias no ambiente digital. Esse parâmetro, uma escolha metodológica, tem sido praticado em diversas investigações sobre a circulação de fake news nas plataformas de mídias sociais (ALLCOTT; GENTZKOW, 2017; SHAO et al., 2017; VOSOUGHI; ROY; ARAL, 2018).

É importante ressaltar que, dentre os cinco projetos de verificação de fatos, não há nenhum partidário. Aos Fatos e Lupa eram as únicas iniciativas de checagem brasileira com certificado do International Fact-Checking Network (IFCN), do Poynter Institute, rede mundial de verificadores independentes que realiza auditorias anuais com base em cinco critérios editoriais, dentre eles o compromisso com o não partidarismo, com a justiça, com a transparência de fontes, de financiamento e da própria organização, como com o aprimoramento de metodologias e que estejam predispostas a fazerem correções honestas em caso de cometimento de erros292.

A auditoria do IFCN foi usada como critério para o Facebook estabelecer parcerias com o Aos Fatos e com a Lupa durante as eleições brasileiras de 2018293. Além disso, todas as iniciativas que produziram os materiais usados na pesquisa participaram da

291 No caso de outubro, o levantamento foi realizado até o dia 28, quando ocorreram as eleições. 292 Disponível em https://ifcncodeofprinciples.poynter.org/

293 Disponível em https://portal.comunique-se.com.br/facebook-pega-a-lupa-para-chegar-aos-fatos-e- expor-a-industria-de-fake-news/ ou em https://www.facebook.com/help/1952307158131536.

130 “maratona” de checagens no fim de semana que correspondeu ao segundo turno das eleições, intitulada #CheckBR294. Abaixo, a descrição de cada um dos projetos e a quantidade de fatos verificados e informados por cada uma dessas iniciativas sobre a disputa eleitoral de 2018 no Brasil295.

Quadro 1 - Descrição dos projetos de verificação de fatos PROJETO DE

VERIFICAÇÃO

FORÇA-TAREFA NAS ELEIÇÕES DE 2018

TOTAL DE CHECAGENS

Aos Fatos A organização surgiu em 2015 com o objetivo de verificar dados e informações que apreciam em discursos políticos. Autenticada pelo IFCN, o projeto estabeleceu parceria com o Facebook e, junto com a empresa de tecnologia, desenvolveu o robô Fátima296, que orienta eleitores e espalha verificações em meios digitais.

113 desmentidos297

Boatos.org O site funciona desde 2013 e publica desmentidos sobre todos os temas, inclusive política. Nas eleições, a iniciativa firmou parceria com a agência Lupa para verificar conteúdos que circularam via WhatsApp298.

211 desmentidos299

Comprova O projeto reuniu 24300 veículos de

comunicação e informa que todos os textos publicados foram verificados por pelo menos três deles. A iniciativa foi organizada pelo First Draft, do Centro Shorenstein para Mídia, Política e Políticas Públicas, da Escola de Governo John F. Kennedy, na Universidade Harvard, com coordenação no Brasil da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji)301.

146 desmentidos302

Fato ou Fake Substituto da página “É ou Não É”, o projeto

permanente do Grupo Globo passou a 200 desmentidos

305

294 Disponível em https://epoca.globo.com/cristina-tardaguila/coalizao-inedita-de-checadores-flagra-50- noticias-falsas-em-48-horas-de-trabalho-23195792

295 Os números mencionados representam as verificações de histórias sobre as eleições e isso não significa

que elas foram realizadas no mesmo período de tempo – ou seja, uma iniciativa pode ter começado o processo de checagem mais cedo do que outra.

296 Disponível em https://aosfatos.org/noticias/conheca-robo-checadora-do-aos-fatos-no-facebook/ 297 Disponível em https://aosfatos.org/noticias/noticias-falsas-foram-compartilhadas-ao-menos-384- milhoes-vezes-durante-eleicoes/

298 Disponível em https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2018/10/07/parceria-lupa-boatos-noticias-falsas/ 299 O balanço do site não foi localizado e o levantamento foi feito manualmente.

300 A coalizão foi composta pelas seguintes empresas de jornalismo: AFP, Band, Rádio Bandeirantes, Band

News, Correio do Povo, Exame, Folha, Futura, GaúchaZH, Gazeta do Povo, Gazeta Online, Metro, Nexo, Nova Escola, NSC Comunicação, Estadão, O Povo, Piauí, Poder 360, Rádio Band News FM, SBT, Jornal do Comércio, UOL e Veja.

301 Disponível em https://noticias.uol.com.br/politica/eleicoes/2018/noticias/2018/10/30/projeto- comprova-desmentiu-135-boatos-vinculados-a-eleicao-presidencial.htm.

302 Ver em http://projetocomprova.com.br/post/re_2B5W8XZ5jMvb

305 Disponível em https://g1.globo.com/fato-ou-fake/noticia/2018/10/29/fato-ou-fake-quase-mil- checagens-na-eleicao.ghtml

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funcionar em 2018 e reúne oito veículos de comunicação303 para monitoramento diário de mensagens suspeitas. O projeto possui um robô no Facebook e Twitter que diz ao usuário se o conteúdo é falso ou verdadeiro, em caso de tiver sido confirmado pela equipe. Usuários cadastrados no WhatsApp do Fato ou Fake também receberam os links das verificações304.

Lupa A agência funciona desde 2015 e se apresenta como “a primeira agência de notícias especializada na técnica de fact-checking no Brasil”. A agência Lupa é autenticada pelo IFCN e firmou parceria com o Facebook durante as eleições. A agência lançou ainda o Projeto Lupe!, um robô-de-verificação que ajuda os eleitores a inspecionar informações no banco de dados da Lupa306.

76 desmentidos307

Fonte: Autoria da tese

No processo de levantamento das histórias consideradas fake news pelas iniciativas supracitadas, os dados foram cruzados e organizados de modo a obter a quantidade total de verificações de uma narrativa determinada. Por exemplo, uma história pode ter sido confirmada apenas por uma iniciativa, enquanto outras por duas, três, quatro ou todas as cinco.

A quantidade de conferências de determinada história foi considerada indicativo de a) relevância da história na agenda pública em virtude da disseminação pelas mídias sociais, e de b) confirmação de que a falsidade constatada e atribuída ao fato pela agência é incontroversa. Casos controversos, se houvesse, não seriam integrados como parte do

corpus, vez que alguns fatos sociais não são tão precisos a ponto de poder serem

verificados e dado que a existência de controvérsia razoável e argumentada põe em dúvida o nível de confiança necessário para garantir a exatidão da conferência.

Assim, o levantamento dos dados nos sites dos cinco projetos mencionados apontou a existência de 346 diferentes histórias consideradas fake news nos três últimos meses eleitorais: 56 em agosto, 100 em setembro e 190 em outubro (DOURADO et al, 2020)308 (Fig. 8).

303 G1, O Globo, Extra, Época, Valor, CBN, GloboNews e TV Globo.

304 Disponível em: https://g1.globo.com/fato-ou-fake/noticia/2018/07/30/g1-lanca-fato-ou-fake-novo- servico-de-checagem-de-conteudos-suspeitos.ghtml

306 Disponível em https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2018/08/15/lupe-chatbot-assistente-facebook/ 307 O balanço do site não foi localizado e o levantamento foi feito manualmente.

308 A lista das fake news e a íntegra dessas histórias estão sistematizadas em um banco de dados

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Fonte: Autoria da tese

A ordem crescente sinaliza que o número de fake news aumentava na medida em que se aproximava o dia das eleições. Como uma história pode ser conferida mais de uma vez, em função da atuação de diferentes iniciativas de verificação de fatos, a quantidade de averiguações variou em ritmo crescente: 94 em agosto, 154 em setembro e 367 em outubro, totalizando 615. Foram detectadas verificações de fatos em todos os dias dos meses setembro e outubro e na maior parte do mês de agosto referentes ao tema eleições 2018, embora não apenas nacionais (Fig. 9), dado que, em pequena escala, foram identificadas histórias relacionadas às eleições no âmbito dos governos estaduais ou do legislativo.

Fonte: Autoria da tese

B. Íntegra das fake news das eleições de 2018 no Brasil, Mendeley Data, 2020. DOI: v1http://dx.doi.org/10.17632/fr8wy3fpyz.1

Figura 8 - Relação entre verificações por iniciativa no período eleitoral

133 Quando separado por iniciativa, entre as 615 verificações, foram identificadas 209 publicadas por Boatos.org (44 em agosto, 68 em setembro e 97 em outubro), 137 por Fato ou Fake (12 em agosto, 15 em setembro e 110 em outubro), 99 por Aos Fatos (12 em agosto, 25 em setembro e 62 em outubro), 97 por Comprova (17 em agosto, 25 em setembro e 55 em outubro) e 73 pela Lupa (9 em agosto, 21 em setembro e 43 em outubro) (Fig. 10).

Figura 10 - Volume de verificações por iniciativa no período eleitoral

Fonte: Autoria da tese

Como dito, uma história pode ter sido verificada por uma, duas, três, quatro ou cinco iniciativas. Para o processo de delimitação da amostra, portanto, foi preciso fazer o levantamento da quantidade de inspeções por história. Considerou-se, como premissa, que quanto maior a quantidade de apurações a que certa história foi submetida maior confiabilidade no status de falsidade a ela atribuída e maior relevância ela obteve em termos de circulação online e interferência no debate político-eleitoral.

Em geral, a maior parte das histórias foi conferida por apenas uma iniciativa e esse número foi decrescente na medida em que o número de verificações de uma única história foi maior: nos extremos, 196 histórias tiveram apenas uma conferência (56,64%), 77 histórias duas (22,25%), 40 histórias três (11,56%), 22 histórias quatro (6,55%) e 11 histórias cinco (3,17%) (Fig. 11).

134 Figura 11 - Frequência de verificação de fatos por fake news

Fonte: Autoria da tese

O levantamento da frequência de verificação por história serviu de parâmetro para a posterior seleção da amostra, o que será tratado no próximo tópico. O processo de coleta de dados, portanto, identificou a existência de 346 histórias falsas sobre as eleições de 2018 que circularam entre agosto e outubro. Este universo se converteu em um corpus que será usado na primeira parte da análise empírica com fins exploratórios.

Ao mesmo tempo, essa coleta de dados possibilitou a elaboração de um panorama da atuação dos projetos de verificação de fatos na primeira experiência eleitoral brasileira em que fake news foram usadas significantemente para a disputa política. Os dados mostram que o número de desmentidos cresceu nos últimos meses e se intensificavam dias antes do primeiro e do segundo turno.

Para além disso, a maior parte das histórias ainda foi verificada por uma ou duas iniciativas, o que abre espaço para supor que a força de propagação seja bem maior do que a frequência (e o efeito) dos desmentidos, fato que, contudo, não é aqui objeto específico de análise.