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Dos efeitos das escolhas pessoais e das câmaras de eco na esfera pública

1. Entre mentiras, boatos e notícias: a teia complexa da esfera pública política

2.1. Filtros pessoais, filtros algorítmicos e as fontes de informação política online

2.1.1. Impactos da comunicação interpessoal no fluxo informativo online

2.1.1.1. Dos efeitos das escolhas pessoais e das câmaras de eco na esfera pública

Muitas pesquisas têm tentado entender a propagação de fake news nas plataformas de mídias sociais, como causas e consequências dos algoritmos, filtros bolhas e câmaras de eco (DUBOIS; BLANK, 2018a; FLAXMAN; GOEL; RAO, 2016; MAHRT, 2015;

128 Disponível em https://link.estadao.com.br/noticias/cultura-digital,twitter-muda-algoritmo-para- deixar-rede-social-mais-saudavel-para-usuarios,70002309125.

67 MARKGRAF; SCHOCH, 2019; NIKOLOV et al., 2015; TÖRNBERG, 2018). Por detrás disso, como argumentado acima, está a tendência à personalização da vida, inclusive da dieta informativa, comunicacional e social. O termo câmaras de eco, então, passou a referenciar a formação de filtros bolhas, ou bolhas ideológicas, como reflexo da seleção automatizada de informações que o algoritmo compreende que o usuário gostaria de ver.

O próprio Facebook, em exames empíricos, encontrou evidências de que liberais e conservadores dos Estados Unidos costumam se conectar a pessoas que possuem “afiliações políticas semelhantes”. “A composição de nossas redes sociais é o fator mais importante que afeta o mix de conteúdo encontrado nas mídias sociais, com a escolha individual também desempenhando um papel importante” (BAKSHY; MESSING; ADAMIC, 2015, p. 8). Assim, uma das hipóteses constantemente testadas afirma que os efeitos de filtragem, como câmaras de eco, ocorrem porque o Facebook mostra ao usuário informações de indivíduos com quem interage de forma mais recorrente (LAZER et al., 2018, p. 1–2).

O termo filtro-bolha, no contexto online, voltou à tona com Eli Pariser (2011), e ilustra as ofertas de fontes de informação direcionadas a segmentos de públicos aglutinados por diferentes motivações (seja interesse por um time de futebol, cidade, partido ou bandeira política) - o que, quando se trata de temas/movimentos políticos, principalmente em períodos eleitorais, gera percepção maior de polarização política. Assim, nas câmaras de eco circulariam informações associadas às crenças pré-existentes de usuários que já integram filtros-bolha (BARBERÁ et al., 2015; FLAXMAN; GOEL; RAO, 2016; MARKGRAF, SCHOCH, 2019).

Em outras palavras, câmaras de eco seriam formadas basicamente pela: a) circulação de discursos limitados à determinada rede, como fronteiras sociais; b) exposição, interação e consumo de informações que ajudam a confirmar o conhecimento daqueles membros e c) fornecimento de informações por pessoas que pensam de forma semelhante (MARKGRAF; SCHOCH, 2019, p. 3)129. Esse ambiente de informação mais homogêneo, por onde pessoas compartilham das mesmas crenças, é frutífero para a circulação de informações enganosas como fake news. E isso pode estar associado, na

129 Para as autoras, as câmaras de eco podem ser identificadas por conjunto de dados e gráficos de redes,

que geralmente são desafios limitantes da pesquisa, porque apenas o Twitter tem API’s disponíveis para o público externo; detecção de comunidade (percebidos pela densidade entre nós e os laços para os nós de outros grupos); e, por fim, a ideologia do usuário (MARKGRAF; SCHOCH, 2019, p. 5–8).

68 perspectiva da comunicação interpessoal, a um maior sentimento de confiança que membros de uma mesma comunidade de interesses compartilham.

Mais uma vez, filtros bolhas e câmaras de eco, se e quando existem, são resultados da interação do usuário com os sistemas das plataformas de mídias sociais, o que quer dizer que o comportamento algorítmico se propõe a estar alinhado às escolhas dos indivíduos online. Nesse sentido, o viés cognitivo chamado de viés de confirmação é uma tendência que ajuda a explicar a opção do sujeito por formar redes e selecionar informações preferenciais para reforçar as próprias crenças pré-existentes (DEL VICARIO et al., 2017; NICKERSON, 1998; SIKDER et al., 2018). Quando comunidades de interesse se voltam a temas sensíveis e a emoções políticas radicais, as fontes de informação e os conteúdos informativos podem também refletir essa tendência. Ambientes do tipo são propensos a receber informações enviesadas e falsas.

“Se fake news circulam, sem serem corrigidas, em comunidades fechadas; se as pessoas são ensinadas a não acreditar em fatos verdadeiros ao se desabonar a reputação dos principais jornais; e se essas fake news são deliberadamente emocionais e inflamatórias, estamos cada vez mais longe do ideal arquetípico democrático de Habermas de uma esfera pública que em última análise busca consenso ao permitir que todos falem racionalmente, ouçam os pontos de vista de outros e concordem acerca do melhor caminho a seguir”130

(BAKIR; MCSTAY, 2018, p. 9).

Períodos eleitorais são naturalmente propícios ao acirramento de ânimos, porque candidatos e programas políticos espelham crenças compartilhadas, sejam elas da esfera moral-religiosa-individual-coletiva ou projetos de país e de bem comum. A ideia de exposição seletiva, que sugere uma preferência por mensagens e fontes alinhadas a padrões de pensamento e comportamento pré-existentes (KNOBLOCH-WESTERWICK et al, 2015), também retornou aos estudos que buscam explicar o viés de confirmação e a fragmentação ideológica online (NARAYANAN et al., 2018; NEWMAN et al 2019), que tende a ser mais provável em momentos de divisão política (MARKGRAF; SCHOCH, 2019, p. 3–4).

Outra perspectiva usada para compreender a comunicação e sociabilidade é a teoria da dissonância cognitiva, desenvolvida pelo psicólogo Leon Festinger e

130 “If fake news circulates, uncorrected, in closed communities; if people are indoctrinated to disbelieve

truthful facts by damaging the reputation of mainstream news; and if that fake news is deliberately affective and inflammatory, we are moved ever further from Habermas’ archetypal democratic ideal of a public sphere that ultimately seeks consensus through enabling all to speak rationally, through listening to others’ viewpoints and agreeing the best way forward” (BAKIR; MCSTAY, 2018, p. 9)

69 apresentada em 1957 no livro “Theory of Cognitive Dissonance”. A teoria serve de complemento a preceitos como viés de confirmação e exposição seletiva porque fala sobre a adaptação das preferências dos sujeitos. Assim, indivíduos se sentem desconfortáveis quando seu conjunto cognitivo, que inclui conhecimento, opiniões e crenças, não se adequa a um determinado contexto, que pode ser um ambiente ou grupo específico, e com isso busca adaptar a lacuna dissonante.

Em casos em que há mais enraizamento de crenças, o que significa circunstâncias mais ao extremo, a tendência é que esses indivíduos busquem ambientes por onde circulem valores semelhantes aos deles (MARKGRAF; SCHOCH, 2019, p. 3–4). A probabilidade de indivíduos compartilharem informações de fontes ideologicamente similares e de estarem expostas a conteúdos que reforçam suas visões de mundo, inclusive dogmas, preconceitos e preferências políticas, conduziria a extremismos sociais e políticos, deslocando processos deliberativos do debate moderado para os opostos, como está ilustrado na Fig. 4.

Figura 4 - Modelo de deliberação política com e sem polarização

Fonte: (MARKGRAF; SCHOCH, 2019)

A despeito da falta de transparência, no fundo, os algoritmos de relevância só favoreceriam certa “preguiça cognitiva do ser humano” que costuma se conectar com pessoas e conteúdos com os quais já compartilha valores prévios (WARDLE; DERAKHSHAN, 2017). Isso porque, como partícipes da vida social, haveria tendência de as pessoas buscarem por valores mais consistentes com as suas atitudes diante do mundo. “O desafio mais significativo para qualquer teoria de uma esfera pública compartilhada é que os humanos, quando temos escolha sobre com quem nos conectar ou não, tendemos a estabelecer e continuar relacionamentos com pessoas que têm opiniões

70 semelhantes às nossas”131 (WARDLE; DERAKHSHAN, 2017, p. 49). Mesmo que plataformas como o Facebook tentem, em alguma medida, mostrar conteúdos dissonantes aos seus utilizadores, tendências de câmaras de eco e de exposição seletiva, que se apresentavam antes das mídias sociais, ficam mais acomodadas nessas plataformas.

Há outras pesquisas que apontam que os efeitos das câmeras de eco e da exposição seletiva são sutis ou limitados. Embora focado na análise da discordância nos comentários de publicações do Facebook e não na difusão informativa, Carreiro (2017) sustenta que, de uma forma ou de outra, os indivíduos conectados são expostos a informações dissonantes. “Ao curtir uma página, por mais partidária que ela seja e congruente com sua própria visão política, nada garante que o usuário não será exposto ao desacordo, pois as redes no Facebook são facilmente atravessadas por usuários com posicionamentos políticos diversos” (CARREIRO, 2017, p. 202).

Outra pesquisa enfatiza que usuários, em geral, têm dieta informativa mais diversa e equilibrada do que homogênea e polarizada; encontram informações com as quais discordam; ou têm chances de formar rede de contato até mais ampla do que normalmente ocorre off-line (DUBOIS; BLANK, 2018; GUESS et al., 2018). Para além das câmaras de eco, a animosidade social e polarização online podem ser fomentadas pela emergência de canais de mídia partidária (partisan media, que pode ser entendida, em português, como veículos que fazem proselitismo ideológico, independentemente de vínculos a partidos políticos). “(...) o perigo não é que todos nós vivamos em câmaras de eco, mas que um subconjunto dos mais politicamente engajados e vocais entre nós esteja” (GUESS et al., 2018, p. 16).

Como pode ser visto, controvérsias circundam teses como câmaras de eco, bolhas ideológicas e exposição seletiva porque há enormes dificuldades técnicas para analisar a experiência do usuário das plataformas de mídias sociais, que diferem uma das outras em termos de algoritmos e de disponibilidade de dados, no que diz respeito ao consumo informativo e ao recebimento de fake news. Até aqui, argumentou-se que essas plataformas, desde sua origem, privilegiam a comunicação interpessoal e dão autonomia para indivíduos personalizarem sua dieta informativa.

A partir de agora, o trabalho se propõe a entender mais detalhadamente a constituição do ambiente informativo das plataformas de mídias sociais dando atenção à

131 “The most significant challenge to any theory of a shared public sphere is that humans, when we have

a choice about who to connect with or not, tend to establish and continue relationships with people who have views similar to our own” (WARDLE; DERAKHSHAN, 2017, p. 49).

71 emergência de canais altamente ideológicos de extrema-direita que fomentam processos de disputas por versões sobre acontecimentos públicos. Diante disso, busca-se entender se, aliado à comunicação interpessoal, a multiplicidade de mediadores informativos, da imprensa aos cidadãos, tem contribuído para evidenciar batalhas de narrativas, polarizações políticas e radicalizações nos ambientes digitais, o que abre espaço para maior adesão a peças informativas baseadas em fake news.