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1.4. O estudo da criatividade

1.4.1. Abordagens teóricas à criatividade

A criatividade terá sido um objeto de estudo científico desde o princípio do séc.XX, mas até 1950 a investigação nesta área não foi significativa (Guilford, 1950), quer em quan- tidade, quer em qualidade (Runco & Albert, 2010). Hoje em dia, pelo contrário, esta é uma área de investigação muito ativa, com inúmeras teorias, objetos de estudo, metodo- logias e orientações de investigação. Kozbelt e colegas (2010) sugerem uma forma de classificar as linhas orientadoras da investigação em criatividade de acordo com as qua- tro seguintes vertentes:

1. Orientação epistemológica 2. Magnitude do fenómeno criativo 3. Dimensões da criatividade (os seis Ps) 4. Tipo de abordagem

Orientação epistemológica

No que diz respeito à orientação epistemológica, os referidos autores utilizam esta cate- gorização para estabelecer uma distinção entre teorias de orientação científica e teorias de orientação metafórica.11 Uma teoria de orientação científica será aquela que tem

como objetivo produzir uma compreensão da realidade empírica do fenómeno criativo que pretende estudar. Uma teoria de orientação metafórica terá como objetivo fornecer interpretações alternativas do fenómeno criativo, que possam permitir ampliar a com- preensão da criatividade como campo de estudo em todas as suas vertentes. Segue-se que uma teoria de orientação científica constitui uma hipótese (ainda que rudimentar) e aponta para um método científico de testar essa hipótese, enquanto que uma teoria de orientação metafórica se afigura como eminentemente exploratória.

Magnitude do fenómeno cria%vo

As teorias da criatividade também podem diferir quanto à magnitude do fenómeno cria- tivo estudado e até mesmo à forma como essa magnitude é classificada. Os estudos pio-

neiros nesta área começaram por estabelecer uma distinção entre dois tipos de criativi- dade:12 criatividade com "c" e criatividade com "C" — ou c-pequeno (little-c) e C-

grande (big-C). Estes dois tipos de criatividade referem-se, respetivamente, às ocorrên- cias de criatividade do dia-a-dia, e às ocorrências de casos notórios de criatividade por parte de personagens famosos tais como Picasso ou Einstein. Esta dicotomia entre c-pe- queno e C-grande foi mais tarde alargada (Kaufman & Beghetto, 2009) por forma a in- cluir dois níveis intermédios, formando o seguinte espectro:

– c-mini – c-pequeno – C-Pro – C-grande

Os dois níveis adicionais tipificam, respetivamente, as manifestações criativas por parte de crianças e alunos (c-mini) e as prestações criativas que ocorrem ao nível profissional (C-pro) mas que não gozam da notoriedade dos fenómenos criativos com C-grande (Kaufman & Beghetto, 2009). Kozbelt e colegas (Kozbelt et al., 2010) dão como exemplo a diferença entre a criatividade de um professor de pintura versus a cria- tividade de um pintor famoso.

Figura 2: Modelo dos "4-cês" da criatividade (adaptado de Kaufman e Beghetto, 2009).

Neste modelo, os dois níveis intermédios de magnitude da criatividade dizem respeito a duas outras dimensões importantes (Kaufman & Beghetto, 2009):

– Desenvolvimento / Aprendizagem – Notoriedade

Ou seja, o fator que leva à divisão entre c-mini e c-pequeno é o processo de aprendizagem do indivíduo (um fator interno), e o fator que leva à divisão entre C-gran- de e C-pro é o fator externo da notoriedade ou popularidade atingida pelo indivíduo (ou pelos produtos da sua criatividade). Na Figura 2 (pág. 33) podem ser vistas as relações entre as quatro magnitudes de criatividade e as transições possíveis entre diferentes magnitudes, e entre estas e estados finais. Este modelo poderá ser considerado de certa forma problemático, pois a distinção entre o protagonista e o produto da criatividade não é clara. De qualquer forma, esta interpretação da criatividade coloca claramente o indivíduo em relação com o contexto social, sendo que as transições potenciadas pela aprendizagem (e que podem levar de c-mini a C-Pro, ou de c-pequeno a C-Pro) dizem respeito ao processo que leva o indivíduo a assimilar informação proveniente do domí- nio13, enquanto que as transições potenciadas pela notoriedade (e que podem levar de C-

Pro a C-Grande) dizem respeito ao processo que leva o indivíduo a fornecer informação ao domínio.

De acordo com este modelo, todos os indivíduos começam por gerar ocorrências de criatividade à escala c-mini. Alguns casos raros conseguem passar diretamente para o nível C-Pro, mas a maioria precisa de um passo intermédio para fazer essa transição (a aprendizagem). Alguns indivíduos encetam um percurso de aprendizagem formal que os leva à escala C-Pro. De acordo com diversos estudos empíricos sobre a especialização da praxis em domínios criativos e desportivos, a aprendizagem necessária para atingir um nível profissional de desempenho requer cerca de 10 anos (Ericsson, 1996). Hoje em dia, essa aprendizagem ocorre principalmente nas universidades. O percurso alternativo

13. Este processo de assimilação será um processo iterativo e cumulativo, em que o in- divíduo assimila informação do domínio, integrando-a com o seu conhecimento prévio, e reutilizando-a para produções futuras.

à aprendizagem formal envolve a experimentação autodidata reiterada, até atingir o ní- vel c-pequeno, que poderá servir para chegar ao nível C-Pro, após um período de apren- dizagem informal. Os resultados do estudo empírico desenvolvido no âmbito do presente trabalho confirmam que o percurso dos profissionais do design passa, na maio- ria dos casos, pela universidade (cf. Gráfico 11, pág. 134).

No que diz respeito à prática do design, as gradações da criatividade classifica- das como c-pequeno e C-Pro encontram um paralelo no que Ezio Manzini define, respe- tivamente, como "design difuso", produzido por cidadãos comuns para resolver problemas do seu dia-a-dia, e "design especialista", produzido por designers profissio- nais (Manzini, 2015).

As questões colocadas por Manzini estão relacionadas com o conceito de co-de- sign14e também com a teoria da cognição distribuída (Hutchins, 1995) e com o conceito

de prática situada (Wenger, 1998). Estas teorias salientam o caráter comunitário que fenómenos como a criatividade (e a própria cognição) evidenciam. Quando aplicadas à prática do design, estas teorias permitem ver o designer individual como um dos partici- pantes na criação dos artefactos e não como o seu único criador. A teoria da cognição distribuída de Hutchins surge como uma mudança de paradigma encetada por uma in- tuição semelhante à de Csikszentmihalyi, que chegou ao seu modelo sistémico da criati- vidade depois de parar de perguntar "o que é a criatividade?" para perguntar "onde está a criatividade?".15

Assim, tal como Csikszentmihalyi apresenta a criatividade como um fenómeno sistémico, Hutchins apresenta a cognição como sendo algo mais do que um fenómeno localizado na mente de um indivíduo. Para Hutchins, a cognição é um sistema que com- preende diferentes componentes que se encontram distribuídos pelas pessoas e pelos ar-

14. Não sendo o co-design objeto de estudo do presente trabalho, não se poderá deixar de referir que esta modalidade parte do paradigma "Nós, os criativos" (cf. secção 1.3.3, pág.27-30).

tefactos ao seu redor (Hutchins, 1995). Todas estas teorias partilham os mesmos princípios da teoria da cognição situada (Brown et al., 1989), que por sua vez será um elemento aglutinador de toda a argumentação que aqui se apresenta.

Tipo de abordagem

Sendo o estudo da criatividade eminentemente pluridisciplinar, diferentes teorias da criatividade surgem no seio de diferentes domínios da ciência e/ou são produzidas por investigadores que provêm de diferentes domínios e especialidades. O tipo de aborda- gem aqui referido diz respeito à tradição científica em que uma teoria específica se de- senvolve, e determina em grande medida a metodologia utilizada. Kozbelt e colegas (2010) identificam dez tipos de abordagens teóricas diferentes:

1. Desenvolvimentista 2. Psicométrica 3. Económica 4. Componencial 5. Cognitiva 6. Resolução de problemas 7. Definição de problemas 8. Evolucionista 9. Tipológica 10. Sistémica Abordagem desenvolvimen%sta

Esta abordagem procura enquadrar a criatividade no desenvolvimento do indivíduo e por isso foca o seu estudo no primeiro "P" das dimensões da criatividade, a Pessoa. Esta abordagem toca necessariamente todas as magnitudes do fenómeno criativo, e pode es- tar relacionada com abordagens evolucionistas, tal como um qualquer aspeto ontogénico pode estar relacionado com um aspeto filogenético.

Abordagem psicométrica

de medir e avaliar a inteligência, conceito provavelmente tão problemático como o da criatividade. Esta abordagem está relacionada com a Pessoa e com o Potencial criativo, tocando também todas as magnitudes da criatividade.

Abordagem económica

Esta é, em certa medida, sistémica, pois aplica as teorias económicas ao estudo da criati- vidade, equacionando o fenómeno através de noções como oferta, procura, ativos e in- vestimento criativo (Rubenson & Runco, 1992). Considerando que esta abordagem esta- belece um quadro conceptual muito particular, verifica-se que não considera à partida as categorizações dos “Ps” da criatividade. Esta abordagem também não distingue catego- ricamente diferentes magnitudes do fenómeno criativo tal como são representadas por outras abordagens, mas pode equacionar um "capital criativo" passível de traduzir essa magnitude em termos quantitativos.

Abordagem componencial

A abordagem componencial é a que enforma aquelas teorias que tentam identificar os componentes necessários e suficientes para o fenómeno da criatividade. O contributo pioneiro neste tipo de abordagem provém de Amabile (1983), que inclui a motivação in- trínseca na sua lista de componentes essenciais da criatividade. Esta abordagem está li- gada aos "Ps" relacionados com o indivíduo e com a sociedade: a Pessoa, o Potencial e a Persuasão (ou Pressão). Este tipo de abordagem aplica-se a todas as magnitudes do fenómeno criativo.

Abordagem cogni%va

Este tipo de abordagem tem claramente pontos de contato com a abordagem psicométri- ca, encontrando-se a diferença fundamental no fato de que a abordagem cognitiva pro- cura identificar e caracterizar os processos cognitivos envolvidos no desenvolvimento de ideias criativas, logo diz respeito apenas aos processos individuais internos da Pes- soa. Esta abordagem toca as diferentes magnitudes da criatividade, no sentido em que a prática reiterada que leva a níveis elevados de desempenho está também ligada a pro- cessos neuropsicológicos e neurofisiológicos de aprendizagem percetual (cf. Goldstone

Abordagem das teorias de resolução de problemas

Estas teorias abordam a criatividade como um processo de resolução de problemas, es- tabelecendo uma ligação com as teorias computacionais do processamento de infor- mação e com a investigação operacional. Estas teorias abordam a criatividade como um problema de otimização, e tendem a considerar que os problemas são apresentados como problemas fechados, ou de outra forma propensos a serem solucionados através de estratégias fornecidas pela investigação operacional, como por exemplo, a pesquisa heurística. Este tipo de abordagem tem como único objeto de estudo o Processo criativo, enquanto processo de resolução de problemas, e não considera quaisquer variações no que diz respeito à magnitude do fenómeno criativo, sendo aplicável a todas as escalas.

Abordagem das teorias de definição de problemas

Estas teorias abordam a criatividade não como um processo de otimização (como na abordagem descrita no parágrafo anterior), mas como um processo que visa sobretudo clarificar um problema em aberto. Esta abordagem é centrada na descoberta dos proble- mas, em vez da descoberta de soluções.

Abordagem evolucionista

Esta classe de teorias compreende todas as que procuram as origens dos comportamen- tos criativos nos processos de adaptação característicos da evolução das espécies, abor- dando a criatividade enquanto vantagem evolutiva dos organismos. Trata-se assim de uma abordagem sistémica, no sentido em que é inevitavelmente ecológica, e como tal diz respeito a todas as dimensões da criatividade e à forma como interagem. Do ponto de vista evolucionista, a magnitude do fenómeno criativo é à partida irrelevante.

Abordagem %pológica

Abordagem que procura simplesmente coligir e caracterizar os diversos tipos de criati- vidade. Pode-se considerar que o estabelecer das categorias c-pequeno e C-Grande se trata de uma abordagem tipológica (ou terá começado como uma abordagem tipológica, considerando que os desenvolvimentos recentes apontam já para uma abordagem sistémica).

Abordagem sistémica

Esta abordagem toma a criatividade não como um fenómeno protagonizado por um in- divíduo desligado do meio que o rodeia, mas como um processo que se desenrola num sistema alargado, do qual faz parte o indivíduo mas também a sociedade como um todo, bem como certos grupos de indivíduos da sociedade. Tal como a abordagem evolucio- nista, a abordagem sistémica envolve todas as dimensões da criatividade, mas ao contrá- rio não se pode alhear da magnitude do fenómeno criativo.

1.4.2. Dimensões da criatividade

O fato de diferentes investigadores, no campo da investigação sobre criatividade, adota- rem diferentes objetos de estudo é um dos fatores que tem contribuído para a diversida- de de teorias e definições da criatividade. Uma forma de avaliar e classificar as teorias da criatividade será de acordo com as diferentes dimensões da criatividade que tomam como objeto de estudo.

A investigação em criatividade tem sido tradicionalmente dividida em quatro áreas principais (Rhodes, 1961), que recentemente foram expandidas para seis. Estas áreas ou objetos de estudo são habitualmente referidas na bibliografia da especialidade por "Ps" ("pês") da criatividade: 1. Pessoa (Person) 2. Local (Place) 3. Potencial (Potential) 4. Processo (Process) 5. Produto (Product)

6. Persuasão (Persuasion ou Press)

Pessoa

Esta dimensão contempla todos os fatores que dizem respeito diretamente ao indivíduo que protagoniza o fenómeno criativo, incluindo a sua genética e o seu desenvolvimento. As abordagens desenvolvimentistas ao estudo da criatividade focam-se neste item em particular. Todos os aspetos pessoais da criatividade que não digam respeito a fatores mentais (ligados ao terceiro item, o “Potencial”) se incluem neste ponto. No âmbito do presente estudo, esta dimensão diz respeito ao designer enquanto indivíduo. Logo, o es- tudo da criatividade em design deverá tomar em conta fatores como a edução do desig- ner, o seu contexto familiar, e a sua motivação. Este item cruza-se de certa forma com o terceiro item da lista acima (Potencial), principalmente no que diz respeito às compo- nentes genética e fisiológica.

Local

O local diz respeito ao contexto imediato em que se desenvolve a criatividade. No caso da criatividade no domínio profissional do design, o local diz respeito ao estúdio mas também a todos os locais em que o trabalho do designer se desenvolve. Isto pode incluir locais de implantação e de uso dos objectos de design.

Potencial

Este item, tal como o primeiro, diz respeito ao indivíduo. No entanto, centra-se nos fato- res intramentais (psicológicos, emocionais, e cognitivos) que possam potenciar compor- tamentos criativos. É neste item em particular que as abordagens psicométricas se cen- tram, tentando estabelecer relações de causalidade entre factores mentais e compor- tamentos criativos.

Processo

Esta dimensão diz respeito ao próprio processo criativo e à forma como é estruturado. No domínio do design, este será o próprio processo projetual na sua totalidade. Ou seja, no que diz respeito ao domínio do design em particular, este “P” da criatividade é vir- tualmente equivalente à metodologia projetual.16

Produto

O quinto item diz respeito ao resultado final, físico e visível do processo criativo (i.e., o produto da criatividade). No caso do design, este é habitualmente denominado “o objec- to de design”. Há a salientar aqui uma característica notoriamente particular do produto criativo do design: a sua reprodutibilidade. De facto, deve ser considerado que o proces- so criativo, no domínio do design, produz (na maior parte dos casos) não um produto fi- nal em si mesmo, mas um projeto que servirá para reproduzir (através de processos in- dustriais) o produto efectivamente final, que será utilizado pelo público.

16. Utiliza-se ao longo deste trabalho (salvo indicação em contrário) o termo “metodo- logia” como significando o estudo dos métodos, e não como a prática de um método em particular.

Persuasão ou Pressão

O sexto item diz respeito aos fatores sociais externos que tenham algum tipo de influên- cia no processo criativo. No domínio do design, estes factores incluem o próprio senti- mento de pertença a uma categoria profissional, bem como todas as pressões que o meio profissional possa exercer sobre o designer (desde pressões operadas por colegas e su- periores hierárquicos, a clientes e parceiros) e ainda as pressões que a sociedade em ge- ral possa exercer sobre o designer e sobre o processo.