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1.6. Criatividade e cognição

1.6.1. Aspetos cognitivos da criatividade

No âmbito do presente trabalho interessa trazer para a discussão sobre a criatividade em design qualquer teoria que possa fornecer uma explicação satisfatoriamente fundamen- tada sobre a forma como interagem os processos mentais, cognitivos e perceto-motores, e que consequências estes processos podem ter para o fenómeno criativo. De acordo com a abordagem cognitiva à criatividade, argumentar-se-á aqui também que a criativi- dade não constitui uma característica excecional do indivíduo, mas é antes uma carac- terística elementar do normal funcionamento do sistema cognitivo humano, e em parti- cular dos processos de conceptualização e categorização. Estes processos, por sua vez, estão inextricavelmente ligados à perceção e à ação.

Vários estudos da criatividade recorrem às ciências cognitivas, partindo da pre- missa de que a criatividade deriva do normal funcionamento da mente humana. Os pio- neiros deste tipo de abordagem afirmam que a capacidade criativa é a norma e não a exceção, e que os produtos da criatividade (sejam excecionais ou comuns) resultam de processos cognitivos que, não só não são insondáveis, como são passíveis de obser- vação e estudo científico (Finke et al., 1992; Ward et al., 1999).

A abordagem cognitiva da criatividade tem dois objetivos principais. Por um lado, pretende avançar o conhecimento científico sobre a criatividade, recorrendo às fer- ramentas das ciências cognitivas. Por outro lado, pretende também desenvolver o co- nhecimento científico sobre os processos cognitivos em geral, recorrendo ao conhecimento gerado pela investigação em criatividade (Ward et al., 1999).

Um dos primeiros e mais citados modelos cognitivos da criatividade é o modelo "Geneplore" (Figura 3, pág. 53) desenvolvido por Finke e colegas (1992). Este modelo não se trata propriamente de uma teoria explanatória, mas consiste numa descrição genérica do hipotético funcionamento cognitivo da criatividade. O que o modelo Gene- plore propõe é que a atividade criativa pode ser vista como uma fase de geração de ideias seguida por uma fase de exploração dessas mesmas ideias. As ideias iniciais são descritas como "pré-inventivas" no sentido em que não constituem soluções completas, mas são de alguma forma promissoras, sendo originais e apropriadas aos objetivos.

O modelo propõe ainda que, na maioria dos casos, o indivíduo procede alternadamente aos processos generativos e exploratórios, de acordo com os seus objetivos e res- trições (Finke et al., 1992).

Figura 3: Estrutura do modelo Geneplore (adaptado de Finke et al., 1992).

Em geral, os estudos cognitivos que precederam a abordagem cognitiva da cria- tividade têm tradicionalmente sido focados naqueles aspetos da inteligência que estão diretamente ligados a modelos descritivos procedimentais19 tais como a matemática, as

19. Clancey (1997) refere-se a estes modelos simplesmente como “descritivos” (des-

criptive). Considerando que é claro no discurso de Clancey que o autor se refere a des-

crições procedimentais, e considerando que no presente trabalho a expressão “modelo descritivo” é utilizada com um significado muito específico, adopta-se ao longo deste

ciências exatas, a engenharia e a medicina (Clancey, 1997). A inteligência é geralmente identificada com a capacidade de inferência simbólica e o conhecimento é geralmente visto como a capacidade de armazenar estruturas simbólicas de acordo com um modelo assente num paradigma que se pode designar por descritivo, pois o conhecimento é vis- to como sendo uma descrição armazenada na memória. Os modelos da cognição assen- tes neste paradigma descritivo procedimental têm vindo a alimentar aquilo que Clancey e os proponentes das teorias da cognição situada consideram uma falsa dicotomia de ca- pacidades físicas versus capacidades mentais, enraizada por sua vez no dualismo carte- siano e no paradigma mecanicista da cognição que subsistiu em grande medida na psicologia cognitiva do século XX. Estes desenvolvimentos não foram certamente alheios aos avanços teóricos e tecnológicos que em meados do século XX deram origem ao campo das ciências da computação. Três desenvolvimentos teóricos assumiram um papel particularmente importante na adoção do paradigma mecanicista da cognição e vieram reforçar a confiança numa visão dualista:

1. A construção teórica que ficaria conhecida como "máquina de Turing" (Turing, 1936), e que viria a constituir um paradigma fundacional para as próprias ciências da computação;

2. A teoria matemática da informação (Shannon, 1948), cuja influência se es- tendeu às ciências cognitivas e às artes e humanidades, por via da semiótica e da então emergente disciplina dos estudos dos media;

3. A arquitetura (de computadores) de Von Neumann (Neumann, 1993), que avançou o conceito de "descrição procedimental armazenada" (stored

procedure);20

capítulo a designação “modelo descritivo procedimental” para referir os modelos descri- tivos a que Clancey se refere.

20. A citação fornecida corresponde a uma nova edição do relatório da responsabilidade de Von Neumann, editada nos anais da história da computação do IEEE. O relatório ori-

Estas teorias trouxeram para o centro das atenções dois conceitos que hoje em dia são incontornáveis para quase todas as ciências: informação e computação. Como consequência, no domínio das ciências cognitivas, o conhecimento passou a ser visto como "informação" e os processos cognitivos passaram a ser vistos como processos de "processamento de informação". O conhecimento passou a ser geralmente resumido a conhecimento explícito e descritivo. Clancey (1997) alerta para a necessidade de uma teoria informática da cognição que contemple não só os aspetos descritivos, mas também os aspetos percetuais e motores, e lembra que compreender como se desenro- lam os aspetos descritivos implica também desenvolver uma teoria da consciência.

We need a theory of information that does justice to the physical and descriptive accounts, and this apparently requires an account of consciousness. (…) an account of human information and coordination must relate to inference and, more generally, design.

Clancey, 1997, p. 265

Uma outra consequência da adoção dos referidos modelos é a notória reificação da informação. No entanto, a informação não é uma "coisa" em si mesma — será antes um atributo emergente da atividade de categorização de um organismo, tal como a velo- cidade é uma característica transitória de qualquer objeto que se movimenta em relação a um observador, ou a cor é uma característica de qualquer objeto que reflete a luz visível.

Ao atribuir o papel principal à informação relega-se para papel secundário aqui- lo que pode ter na realidade um papel estrutural.21 No caso dos processos cognitivos, a

metáfora do cérebro como computador atribui à fisiologia um papel passivo e considera o cérebro apenas como um recipiente ou um veículo (em termos informáticos, o

Junho de 1945. Aqui optou-se por traduzir a designação original “stored procedure” por “descrição procedimental armazenada”, com o objetivo de tornar clara a relação entre a argumentação de Clancey e o conceito de stored procedure (vide nota anterior).

hardware) para aquilo que, segundo este paradigma, é realmente importante: a infor-

mação (o software). A abordagem cognitiva baseada no conceito de "descrição procedi- mental armazenada" (tornado familiar pela arquitetura de Von Neumann) toma o conhecimento como sendo fundamentalmente uma cópia da realidade ou de um com- portamento prévio, e a memória como o vestígio ou o registo de objetos previamente percecionados. Note-se ainda que tanto a máquina de Turing como a teoria matemática da informação se referem a procedimentos absolutamente sequenciais e compostos por passos discretos, em que a ação se segue ao processamento de informação.

Mas os processos cognitivos são muito mais do que simples processamento de informação. Ao invés de um processo de armazenamento ou de recuperação de algo ar- mazenado, conhecer e lembrar são operações construtivas baseadas em valores internos e em feedback proveniente do meio ambiente. A abordagem da cognição situada presu- me uma interação complexa entre características inatas e adquiridas, interior e exterior, construção e mundo, neural e social. O estudo da memória humana sugere que este pro- cesso de coordenação ocorre através de um mecanismo que é interativo e histórico, que opera a diversos níveis de organização em simultâneo, e que envolve feedback de uma forma completamente diferente da propiciada pela arquitetura (em série ou paralelo) dos computadores (Clancey, 1997).

Information processing may be more difficult to appreciate than matter or energy processing because information is epiphenomenal: it derives from the organization of the material world on which it is wholly dependent for its existence. Despite being in this way higher order or derivative of matter and energy, information is no less critical to society. All living systems must process matter and energy to maintain themselves counter to entropy, the universal tendency of organization toward breakdown and randomization. (...)

Beniger, 1986, pp. 9-10

Para além da importante chamada de atenção de Beniger para o fato de que a in- formação é epifenomenal, uma outra consideração importante a extrair da citação acima é que a informação existe em todo o lado e não apenas no cérebro. Por um lado, isto im- plica que uma visão informática dos processos cognitivos, para ser coerente e completa,

tem de se estender para lá dos limites do sistema nervoso central e incluir outras formas de processamento de informação — o que se poderá afirmar constituir, grosso modo, a premissa da cognição distribuída (Hutchins, 1995). Por outro lado, o fato de o cérebro processar informação, não é por si só razão suficiente para este ser objeto da metáfora do computador. Considerando que a informação existe em todo o lado, existirão um sem-número de organismos e coisas que também funcionam como computadores, pois tal como o cérebro processam informação. Logo, a metáfora do cérebro como computa- dor será, à partida, tão viável como uma metáfora do "cromossoma como computador", "o formigueiro como computador", "a cidade como computador" ou "o planeta Terra e os seus habitantes como computador". Se o funcionamento cognitivo dificilmente é ex- plicado apenas de forma química ou elétrica, dificilmente será explicado apenas através de uma abordagem informática. Uma abordagem informática será pertinente se a infor- mação tiver pertinência para o organismo ou para o ambiente em que se insere.

Se os processos cognitivos são muito mais do que processamento simbólico, o que dizer da inteligência e da criatividade? O conceito de criatividade está também liga- do ao conceito de inteligência, mas terá sido talvez apenas com a teoria das inteligências múltiplas de Gardner (Walters & Gardner, 1986) que essa relação se manifestou clara- mente nas ciências cognitivas. A teoria das inteligências múltiplas já contempla outras dimensões da inteligência para além da inferência simbólica e dos paradigmas alicerça- dos no dualismo cartesiano, considerando que diferentes tipos de inteligência se mani- festam como consequência da interação entre certos potenciais biológicos e as oportunidades de aprendizagem proporcionadas pelo contexto em que o indivíduo se de- senvolve, particularmente pelo meio social.

Um dos tipos de inteligência contemplados pela teoria das inteligências múlti- plas é a inteligência espacial. A inteligência espacial sintetiza as capacidades para apre- ender a informação visual e espacial e para criar e transformar imagens mentais. A inteligência espacial não está dependente do aparelho sensorial visual, uma vez que até mesmo os sujeitos invisuais evidenciam essas mesmas capacidades.22 Esta capacidade

de manipulação de imagens mentais é considerada uma das formas sob as quais a imagi- nação se apresenta e um dos processos fundamentais da criatividade humana (Beany, 2005). Estas capacidades são indissociáveis do funcionamento cooperativo e simultâneo do aparelho percetivo, da capacidade para a conceptualização e da memória. Mas as teo- rias cognitivas tradicionais assentam antes num modelo dito de "sandwich", em que o processamento cognitivo é encaixado entre a perceção, de um lado, e a ação, do outro (Barsalou, 2015). Este tipo de abordagem não é de estranhar em ciência: uma aborda- gem modular facilita certamente a investigação, visto que os investigadores podem fo- car as suas atenções em aspetos particulares da cognição sem ter de se preocupar com os mecanismos associados da perceção ou da ação. Por outro lado, neste caso em particu- lar, uma abordagem modular fomenta paradigmas que acabam por ignorar completa- mente os processos percetivos e motores (Clancey, 1997).