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3. Uma etnografia de três encontros

3.1. Tenda Espírita de Umbanda Pai Benedito

3.1.1. Abrimos a nossa gira

Esta não era a primeira vez que conhecia um terreiro de umbanda, pois logo que surgiu meu interesse por conhecer as pombagiras, passei a frequentar outros três terreiros de Ribeirão Preto, e não sei bem o por quê, mas em nenhum deles surgiu o desejo de pesquisar.

Já no terreiro de pai Benedito, apesar do caminho me amedrontar no início e eu pensar seriamente no gasto com gasolina que teria toda semana, a empatia foi imediata, a começar pela primeira cena marcada em minha memória: amplo, colorido e com um belíssimo altar ao fundo.

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1. Altar 2. São Benedito ao centro

3. Visão ampla do centro 4. D. Joana incorporada com Pai Benedito

5. Gira de caboclos 6. D. Joana em frente a altar (D. Chiquinha em foto ao centro)

Finalmente conheço o famoso terreiro da Mãe Joana. Todo mundo falava que eu deveria fazer a pesquisa lá, porque dizem que a pombagira principal da casa é muito famosa na região: a Maria Padilha da Meire, irmã da Joana, mas o povo também diz que não vão permitir... ah, vamos tentar, né?(...) o que me impressionou foi como tudo varia muito de terreiro para terreiro. Já

fui no da D. “T.”, no do “G.”, no das Caboclas e são completamente

diferentes entre si. Começa pelo fato de que ficamos atrás de uma muretinha,

sentados. Só entramos no “centro”, onde ficam os médiuns, na hora de tomar

o passe, mas observamos tudo de lá. Chegamos um pouco antes de começar e surpreendi-me com o tamanho e a quantidade de santos no altar. Acho que o clima de cidade pequena me contagiou e gerou em mim uma ideia de um quartinho pequenininho, mas na verdade, não é assim. Senti-me ainda menor quando finalmente cheguei. O salão é grande, amplo e com uma divisória de uma muretinha de pouco menos de um metro. Atrás dela ficam as pessoas que vão se consultar, viradas para o altar (Diário de campo, 27/08/2003). Em outros terreiros que havia frequentado, não havia esta “muretinha” de separação entre o espaço em que desenrola o ritual e onde fica a “assistência”, como são chamadas as pessoas que vão pedir ajuda.

Percebo atualmente que essa pequena separação foi fundamental, pois havia vivido situações em que ficávamos muito próximos das pessoas que incorporavam, e, certamente, aquela proximidade incomodou-me bastante, principalmente neste meu início de trabalho, quando me deparava com cenas, linguagens e regras inéditas e um tanto quanto amedrontadoras. Mas não foi só isso, claro. Apesar de eu ainda ter dúvidas sobre a autorização para realizar minha pesquisa, senti um clima imensamente acolhedor.

Como podemos ver na foto da página anterior, o altar é repleto de santos dispostos em degraus. É possível notar que Jesus Cristo está no plano mais alto, no entanto, São Benedito, santo negro e que dá nome ao preto-velho principal da casa, é a maior estátua e encontra-se em destaque no centro do altar.

Trata-se de um terreiro de umbanda “tradicional”, se é que se pode dizer isto a respeito da umbanda, mas entre os integrantes do grupo de estudos em etnopsicologia, designamo-lo como “umbanda de raiz”, já que possui aproximadamente setenta anos desde sua criação.

Esse terreiro parece ser mais antigo, vou verificar, parece ter mais história, é

mais “rico”. Tem um altar maior, lindo, todo colorido e com inúmeros santos

Tempos depois, comento com Dona Joana sobre a grande quantidade de santos no altar, e ela responde: “é tudo ganhado”. Tem muito santo, diz Joana, que vem de outros centros de umbanda, pois o pai-de-santo “não deu conta de tocar” o terreiro e levou os santos para o seu centro: “É, minha filha, não é todo mundo que dá conta de um terreiro, tem que ter muita dedicação. Eles acham que é só comprar santo e sair tocando, mas não é, não. Tem que ter muita força e muito amor.”

Mãe Joana, assim como sua mãe, dedica a sua vida ao centro. Nem de domingo descansa, pois além dos dias de ritual, atende também como benzedeira. Assim, passa o dia e a noite mais presente no terreiro do que em sua casa, atrás do centro, onde vivem o marido, os filhos, netos e irmã.

Oficialmente, as giras acontecem três vezes por semana: segunda, quarta e sexta, mas há ainda trabalhos geralmente voltados aos médiuns em outros dias da semana. Os rituais abertos ao público são os que são trabalhadas as entidades de direita: preto-velho, caboclo, criança (ou „cosme‟), baiano, boiadeiro e marinheiro. Nem todos os dias os médiuns incorporam todas as entidades, mas em todos os dias incorporam os pretos-velhos103.

Os médiuns costumam vestir-se de branco, e dispõem-se em fileiras voltadas para o altar. À direita do altar ficam as mulheres, à esquerda os homens e ao centro, na frente de todos, Mãe Joana. Além da mãe-de-santo, há duas outras figuras de prestígio: Meire (irmã de Joana) e Orestes (cunhado de Joana e marido de Meire). Estes podem coordenar a gira quando Joana está incorporada, ou vice-versa, mas sempre é importante que haja uma pessoa “de confiança” (experiente) desincorporada para organizar o ritual.

103 Costuma haver também comemorações de entidades ou trabalhos específicos para os médiuns ou pessoas

bastante próximas nas terças, quintas e sábados. Até hoje, só não presenciei trabalhos aos domingos. A esquerda costuma ser trabalhada pelo menos duas vezes por semana, após as giras de direita encerrarem e a maioria ir embora. Quem sabe e conhece, fica um pouco mais ao término da gira de direita até que as luzes são apagadas e a porta da frente é fechada.

Meire sempre esteve ao seu lado e durante a pesquisa ausentou-se do terreiro apenas quando teve seu filho, mas continua ocupando espaço de poder significativo. Orestes, também ocupa posição reverenciada e, atualmente, é o “braço direito” de Joana no terreiro.

Em geral, os rituais são abertos com pontos-cantados de orixás104, em seguida é entoado ponto-cantado para preto-velho, para as „almas‟ e para a hora da defumação no terreiro. Médiuns mais antigos, como Orestes ou Gordim (como é chamado pela comunidade), passam o defumador com ervas por todo o terreiro e por todas as pessoas presentes. Esse processo, segundo eles, serve para „limpar‟, ou seja, retirar más vibrações e preparar o centro para o ritual.

Usualmente, assim como no meu primeiro dia, é dado o início do ritual com uma sequência de pontos-cantados para orixás e guias de umbanda. Em seguida, é entoado um ponto-cantado de esquerda e todos se viram de costas para o altar com a mão esquerda levantada em direção à porta de entrada e às imagens de entidades de esquerda dispostas na entrada do centro. Só então os médiuns se voltam para o altar e rezam as orações católicas Pai-Nosso e Ave- Maria sem o som dos atabaques. Ao final da abertura, Joana inicia a “chamada” das entidades com um belíssimo ponto-cantado: “Abrimos a nossa gira/ pedindo de coração/ para nosso Pai Oxalá/ para cumprir a nossa missão”.

Em primeiro lugar são entoados pontos-cantados para os pretos-velhos, sempre os primeiros a serem incorporados e responsáveis por atender a maior parte dos fieis que buscam ajuda, seja para curar males físicos, psicológicos, financeiros ou “puramente” espirituais.

Assim que incorporados, as pessoas já começam a se organizar em filas para se dirigirem a eles. Não há uma ordem clara, mas, de maneira não-dita, respeita-se uma ordem de chegada e dirige-se ao preto-velho que se deseja consultar. Em meu primeiro dia, escolhi o preto-velho de D. Joana, Pai Benedito, entidade principal da casa que dá nome ao centro, que

também foi entidade da primeira mãe-de-santo, D. Chiquinha, até o seu falecimento. Em seguida, herdou tanto o cuidado pelo terreiro quanto as entidades espirituais de sua mãe.

No início, eu estava um pouco receosa, não sabia o que dizer e tinha medo de escutar. Então eu disse à entidade o que os integrantes do grupo me diziam para falar sem me “comprometer”: “Está tudo bem, queria apenas pedir uma benção”. Era o artifício que utilizava para entrar e sair ilesa.

Assistir ao ritual e não receber a benção não seria de bom-tom, mas, ao mesmo tempo, eu não era uma religiosa e não queria me envolver com a espiritualidade. Se dissesse que alguma coisa não estava bem, ou que queria algo, teria que conversar, talvez pudesse escutar algo que me abalasse e tinha muito medo deste envolvimento. Mas não houve saída, por mais que tenha me esforçado para me mostrar muito à vontade às entidades espirituais, a máscara do pesquisador nem sempre “cola”:

Pai Benedito: Tá formosa, fia? Eu: Eu só queria pedir a benção.

Pai Benedito: Não precisa ficá com medo não, fia, chega mais perto do pai que ele tá aqui prá te ajudá.

(conversa transcrita em diário de campo, 27/08/2003)

Depois disso, Pai Benedito falou-me ainda alguma coisa que não me recordo, pois me apeguei apenas a esta última frase. Ele era o primeiro a ter desvendado meu “disfarce” de pesquisadora e, depois disso, em vez de ficar paralisada, senti-me bem e aos poucos fui chegando “mais perto”.

O estranhamento e distanciamento que sentia anteriormente em outros terreiros, foram suplantados por uma boa sensação. De alguma maneira uma calma parecia ter tomado conta de meu corpo e percebi que ali existia algo de muito interessante.

Gostei muito, mas parece que não vai ser fácil conseguir apoio para falar e observar as pombagiras. (...) pelo que percebi e o Fábio falou, só os médiuns podem participar desses rituais de esquerda (Diário de campo, 27/08/2003).

Ao final do ritual, Fábio me apresentou à Dona Joana, disse que eu entrava para o grupo de pesquisa e gostaria de conhecê-los. Assim, marcamos um horário para nos encontrarmos num próximo dia à tarde para conversarmos.

Encontro e desencontro105: Conforme li depoimentos no “O antropólogo e

sua magia106” sobre o atraso e esquecimento dos pais e mães-de-santo, hoje

pude verificar a veracidade do que diz Vagner Silva. Havíamos marcado com a Joana às 19:00. Aparecemos lá e ela havia esquecido. Havia acabado de sair para ir numa festa em Sertãozinho. Bom, venho aprendendo que as

coisas sempre acontecem no tempo certo... Não devia ser “a” hora, melhor

entender assim. (Diário de campo, 2/8/2003).

Isso nunca mais aconteceu depois desse episódio. Aliás, a coisa mais rara é ver D. Joana fora de casa e do espaço do terreiro. Marcamos outro encontro, ela desculpou-se e passamos toda a tarde conversando. Joana permitiu que ligássemos o gravador e não apenas contou-nos sua história como já me falou bastante sobre as pombagiras.