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2. Antropologia e Psicanálise: um meio de afinar seu ouvido e apurar seu tato

2.1. Ressonâncias de impasses históricos

Portanto, é realmente verdade que, num certo sentido, todo fenômeno psicológico é um fenômeno sociológico, que o mental identifica-se com o social. Mas, num outro sentido, tudo se inverte: a prova do social, esta, só pode ser mental (LÉVI-STRAUSS, em prefácio à obra de

Mauss ([1950]2003), p. 24, tradução nossa).

Desde o seu início, a psicanálise nos convida a pensar o nosso lugar na cultura43 e nossa responsabilidade face a ela. Por isso mesmo, longe de ser um apêndice da psicanálise, o estudo da cultura e a referência às ciências sociais são necessários e essenciais para um desenvolvimento coerente de sua teoria e prática (ASSOUN, 1993a).

A teoria psicológica freudiana abarca o funcionamento do psiquismo não circunscrito ao individual. O social da psicologia psicanalítica não é uma extensão do saber sobre o psiquismo individual ao social. É a psicologia de cada sujeito que já é constitutivamente social, embora por ser meramente psicologia não precise nem tenha como dar conta de toda a verdade do social (BAIRRÃO, 2005, p. 442).

43Antes de mais nada, admito o perigo de utilizar o termo “cultura”, sem prerrogativas, como um dado por si só. Sei da necessidade de situá-lo e admito que poderia ser interessante, mas não pretendo elaborar um histórico de mais de um século de discussões sobre o conceito. É válido ressaltar, no entanto, que neste trabalho considero o termo “cultura” desvinculado de qualquer determinismo biológico, geográfico ou social. O conceito de cultura é útil para perceber e compreender a diversidade humana, mas desvinculado de vieses deterministas. As diferenças genéticas não são determinantes das diferenças culturais, nem as geográficas; assim como o meio cultural em que o sujeito se desenvolve não determina o seu psiquismo. Não há supremacia do biológico sobre o cultural nem o contrário. Atualmente há subsídios teóricos suficientes para crermos que a cultura desenvolveu-se simultaneamente ao equipamento biológico (GERTZ, 2000; BAHBA, 2005). A perspectiva de Geertz (1989, 1997) contribui para pensarmos o estudo da cultura como o estudo de um código de símbolos partilhados pelos sujeitos que podem ser lidos e interpretados (de maneira cuidadosa) como um texto, mas desconsidera a questão do inconsciente. Não avalio o mérito a respeito de quem discutiu ou não o “papel” do inconsciente, mesmo porque é mais fácil se equivocar do que acertar neste sentido. Lévi-Strauss, em minha singela opinião, saiu-se bem admitindo o papel do inconsciente na sua compreensão da cultura. É verdade que não partilho com ele o entusiasmo de buscar estruturas binárias nas sociedades estudadas. Neste trabalho, considero que Lacan é quem pode fornecer pistas interessantes sobre como pensar a cultura no sujeito e o sujeito pela cultura baseado em uma psicanálise que não se fundamenta na noção de um eu individual e permite um proveitoso diálogo com as ciências sociais (lembrando que o próprio se valeu também do estruturalismo de Lévi-Strauss ([1963]2003a; [1949]2003b; [1964]2004) e da linguística de Saussure).

Desde a sua origem, a psicanálise possui alcances mais amplos, entretanto, frequentemente, estamos habituados a pensá-la restrita à clínica psicológica, ou seja, à ideia de tratamento (geralmente voltado uma classe média alta ocidental, diga-se de passagem).

Laplanche e Pontalis ([1967] 2007) esclarecem que a partir das próprias definições de Freud, a psicanálise é tanto um método de investigação de processos psíquicos (que se funda principalmente no mise en evidence de significados inconscientes de falas, ações e produções imaginárias (tais como sonhos, fantasias, delírios), quanto um método de tratamento baseado nesta investigação (interpretação da resistência, transferência e do desejo, por exemplo) e uma disciplina científica (um conjunto de teorias em que são sistematizados os dados colhidos com base no método de investigação e tratamento psicanalítico).

O objeto da psicanálise não é o indivíduo, mesmo se sobre o divã do analista, esteja, aparentemente, um indivíduo-corpo-biológico que fala. A concepção deste indivíduo é muito particular porque como Freud o indica, o que o caracteriza é o inconsciente e que “o conteúdo do inconsciente é, na verdade, coletivo em todos os casos, propriedade comum dos seres humanos” (Freud, ([1939]1986), p. 237) ; em outros termos, o que caracteriza o indivíduo é o fato de estar inscrito numa massa, numa história, num meio social, linguístico (PÉGUIGNOT, 2006, p. 52, tradução nossa ) 44.

É sabido que Freud (1921/2005) não concebe um “psiquismo coletivo”, mas compreende os mecanismos que se processam no indivíduo mediante a interação e integração com o outro:

O contraste entre a psicologia individual e a psicologia social ou de grupo, que à primeira vista pode parecer pleno de significação, perde grande parte de sua nitidez quando examinado mais de perto. É verdade que a psicologia individual relaciona-se com o homem tomado individualmente e explora os caminhos pelos quais ele busca encontrar satisfação para seus impulsos instintuais; contudo, apenas raramente e sob certas condições excepcionais, a psicologia individual se acha em posição de desprezar as relações desse indivíduo com os outros. Algo mais está invariavelmente envolvido na vida

44L‟objet de la psychanalyse n‟est pas l‟individu, même si sur le divan de l‟analyste, c‟est, en apparence, un

individu-support-biologique qui parle. La conception de cet individu est très particulière puisque comme l‟indique S. Freud, ce qui le caractérise, c‟est l‟inconscient et que « le contenu de l‟inconscient » est en effet collectif dans tous les cas, propriété générale des êtres humains » (Freud ([1939]1986), p. 237) ; en d‟autres termes ce qui caractérise l‟individu, c‟est d‟être inscrit dans une foule, une histoire, un milieu social, linguistique (PÉGUIGNOT, 2006, p. 52).

mental do indivíduo, como um modelo, um objeto, um auxiliar, um oponente, de maneira que, desde o começo, a psicologia individual, nesse sentido ampliado mas inteiramente justificável das palavras, é, ao mesmo tempo, também psicologia social. As relações de um indivíduo com os pais, com os irmãos e irmãs, com o objeto de seu amor e com seu médico, na realidade, todas as relações que até o presente constituíram o principal tema da pesquisa psicanalítica, podem reivindicar serem consideradas como fenômenos sociais, e, com respeito a isso, podem ser postas em contraste

com certos outros processos, por nós descritos como „narcisistas‟, nos quais

a satisfação dos instintos é parcial ou totalmente retirada da influência de outras pessoas (FREUD, [1921] 2005, p. 1).

“A psicanálise se situa entre terapia e cultura” (DAVI-MÉNARD, 2000, tradução nossa, p. 24) 45, e, diferente do que costumamos ouvir, em nenhum momento Freud afirmou que o sujeito deveria ser compreendido como um eu individual dotado de psiquismo “interno” e universal, o que dificultaria, sem dúvida, um debate com as ciências sociais.

A psicanálise constitui uma parte da ciência mental da psicologia. Também é

descrita como „psicologia profunda‟; mais tarde, descobriremos por quê. Se alguém perguntar o que realmente significa „o psíquico‟, será fácil responder

pela enumeração de seus constituintes: nossas percepções, ideias, lembranças, sentimentos e atos volitivos – todos fazem parte do que é psíquico. Mas se o interrogador for mais longe e perguntar se não existe alguma qualidade comum, possuída por todos esses processos, que torne possível chegar mais perto da natureza, ou, como as pessoas às vezes dizem, da essência do psiquismo, então será mais difícil fornecer uma resposta (FREUD, [1938] 1996, p. 302).

Mas há uma insistência em colocar a psicanálise de escanteio e estipular fronteiras disciplinares. Sobre isso, Péguignot (2006) questiona: se a psicanálise não pertence às ciências sociais, a que grupo de ciências ela pertence? A outra questão é relativa ao seu objeto; se as ciências sociais não partilham o mesmo objeto de estudo, qual seria a natureza de seu objeto?

Ambas as disciplinas, antropologia e psicanálise, no entanto, contribuíram para este afastamento. Zafiropoulos (2006) acrescenta que ao escrever grandes textos como Totem e tabu ([1913],1993), Mal-Estar na Cultura ([1930],2002), O Futuro de uma ilusão ([1927], 2001) e Moisés e o Monoteísmo ([1939], 1986), Freud tinha o desejo de descobrir uma

“clínica da cultura” para além de estudos de casos. Porém, a maior parte da psicanálise pós- freudiana não se filiou a este desejo.

2.1.1. “Malinowski contra Freud”

Não há um “culpado” pelo entrave no diálogo entre as disciplinas, pois cada uma à sua maneira se resguarda em críticas que sustentam a dificuldade de interlocução.

No entanto, uma coisa se pode afirmar: foi Bronislaw Malinowski ([1922]1976, [1929] 2000) que disparou a querela “oficialmente” quando buscou contestar (a partir de trabalho de campo realizado na Nova Guiné) as teses freudianas acerca dos tabus sexuais e, principalmente, do Complexo de Édipo em debate direto com a obra Totem e Tabu.

Em contraponto, na obra Anthropologie et Psychanalyse: Malinowski contre Freud, do antropólogo francês Bertrand Pulman (2002), o autor elabora um estudo das obras de Malinowski apontando o despreparo evidente do pioneiro etnógrafo frente às obras psicanalíticas assim como as incongruências presentes dentro de sua própria obra.

Pulman (2002) constroi seu argumento baseado nas principais questões levantadas pelo antropólogo acerca dos trobriandeses: a grande liberdade sexual destes povos, o desenvolvimento sexual independente das fases descritas por Freud, a ausência de importância do pai no desenvolvimento da criança (e mesmo o suposto desconhecimento como pai fisiológico), e a conclusão de que o Complexo de Édipo não seria universal porque entre os trobriandeses, os desejos do menino se dirigiriam à irmã (não à mãe) e o mesmo teria impulsos hostis ao tio materno (não ao pai).

O autor afirma que essas questões teriam levado Malinowski a concluir que Freud não havia levado em consideração a diversidade entre as configurações familiares e sociais, tendo construído suas teorias baseadas em famílias burguesas de cidades modernas como Viena, Londres ou Nova York.

Malinowski é autor clássico por inaugurar a antropologia moderna defendendo com veemência a importância do trabalho de campo (o quanto mais longo possível) para qualquer teorização. Contribuiu ao afirmar que não poderiam existir especulações e hipóteses pré- concebidas, devendo o pesquisador apenas descrever os fatos como se apresentam.

É bem verdade que para escrever Totem e Tabu ([1913],1993), Freud se apoiou em trabalhos etnológicos do final do século XIX e início do XX, muito marcados pelo evolucionismo. Também é verdade que esses autores escreviam trabalhos de “segunda-mão”, ou seja, baseando-se em dados colhidos por outros, pois não haviam mantido contato direto com os “primitivos” em questão46

.

Mas a intenção de Freud com esta obra era muito mais contestar o “universalismo” que Jung passou a defender (e Freud achava ser perigoso), do que intrometer-se no território dos etnólogos. No entanto, foram (e são) muitas as reações negativas de antropólogos a Totem e Tabu.

Ponderando seus colegas antropólogos, Pulman (2002) afirma que a maioria dessas críticas é “fragmentária” 47

, insuficiente e mesmo errônea, de maneira que devem ser revistas. Para sustentar esta argumentação, o antropólogo baseia-se em materiais preciosos que foram publicados sobre o trabalho de campo de Malinowski (e mesmo sobre sua biografia48) que podem trazer luz à obra do próprio assim como ao debate psicanálise-antropologia.

46 Ao longo de sua obra, Pulman (2002) acrescenta ainda que a crítica à não-realização de trabalho de campo e a

própria defesa de Malinowski a um longo período de convivência com o grupo estudado foi fruto do acaso. Na verdade, o antropólogo foi forçado a passar 18 meses entre os trobriandeses devido à I Guerra Mundial, porque sendo polonês, era considerado inimigo da Inglaterra e não podia voltar à sua Universidade nem à sua casa em Londres. Ainda em relação às datas em que o antropólogo ficou com os trobriandeses, Pulman (2002, p. 59) aponta contradições das tão “precisas” e “detalhadas” descrições de Malinowski, apesar de inaugurar um novo regime de verdade no discurso antropológico nesta busca pela exatidão e descrição pormenorizada.

47 Pulman (2002) afirma que a maior parte dos antropólogos que se referem à psicanálise para criticá-la

desconhece o conjunto da obra freudiana e dedicam-se apenas às obras “sociais”, como Totem e Tabu, Moisés e o Monoteísmo ou O Mal-estar na civilização, quando não é através destas que podemos compreender o método e a construção do saber psicanalítico, bem como a sua prática.

48 O autor vale-se da obra De l’angoisse à la méthode dans les sciences du comportement, de Georges

Devereux (1980) para pontuar que os problemas científicos sobre os quais o pesquisador trabalha são passíveis de entrar em ressonância com conflitos intra-psíquicos latentes. De maneira que fatos como a “ausência” da presença paterna nos relatos de Malinowski e a extrema devoção à sua mãe ou mesmo a “castidade” forçada (porque não podia voltar à Europa por conta da Guerra) que o antropólogo vivia entre trobriandeses e o desejo

O autor argumenta não apenas que:

(...) as afirmações de Malinowski relativas ao complexo nuclear dos Trobriandeses são inexatas, bem como igualmente qualquer um que se debruce com um mínimo de minúcia sobre os materiais etnográficos publicados por ele mesmo e sobre as contradições internas de sua argumentação podem se dar conta disso. (PULMAN, 2002, p.8, tradução nossa) 49.

Pulman (2002) acrescenta que é preciso ressaltar a incompetência do antropólogo na crítica à psicanálise também por retirar conclusões baseado no discurso e no comportamento manifesto dos aborígines, demonstrando uma profunda incompreensão da prática e da teoria psicanalítica. O autor acrescenta que Malinowski não possuía qualquer interesse na psicanálise antes de sua estadia entre os trobriandeses e nem mesmo na altura de sua coleta de dados havia estudado ou compreendido as teorias freudianas. Apenas em seguida, para escrever A vida sexual dos selvagens ([1929] 2000), buscou a bibliografia freudiana50.

Freud, por sua vez, assim que soube dos primeiros trabalhos do antropólogos em crítica direta à sua obra, solicitou a Ernest Jones e Géza Róheim, psicanalistas e colegas, que averiguassem se as afirmações de Malinowski tinham procedência.

que o antropólogo revelava sentir pelas índias, tornam-se fatos dignos de curiosidades. Tais relatos fazem com que Pulman (2002) reflita sobre até que ponto a situação sentimental e libidinal de Malinowski não pesaram sobre suas reflexões e o quanto suas observações, que ele afirma serem (pois devem ser sempre) imparciais, possuem, na verdade, uma marca transferencial não elucidada em seus materiais etnográficos. O autor diz não pretender “psicanalizar” Malinowski, mas apenas levantar alguns pontos interessantes para pensar sua situação no período em que colheu seus dados, pois o próprio Malinowski afirma que questões pessoais podem influenciar consideravelmente o valor e a credibilidade dos dados colhidos pelo pesquisador (PULMAN, 2002, cf. p.38).

49

« (…) les affirmations de Malinowski relatives au complexe nucléaire des Trobriandais sont inexactes, mais aussi que toute personne se penchant avec un minimum de minutie sur les matériaux ethnographiques publiés par Malinowski lui-même et sur les contradictions internes de son argumentation peut s‟en rendre compte » (PULMAN, 2002, p.8).

50 De maneira minuciosa, o autor apresenta as contradições dos relatos de campo do próprio Malinowski, o

quanto o antropólogo se precipitou ao considerar o “desconhecimento” da paternidade por parte dos aborígenes e não considerou e evidenciou as inúmeras interdições sexuais (por ele mesmo coletadas através de relatos ou de mitos) existentes na tão “libertária” vida sexual dos selvagens.

Assim, Géza Róheim foi o primeiro a reagir criticamente em 1925, quando publica “Australian Totemism” (apud PULMAN, 2002) 51

baseando-se na obra do antropólogo, mas apenas em 1928 segue à Nova Guiné, custeado pela princesa Marie Bonaparte52.

Róheim (1925 apud PULMAN, 2002) afirma em suas críticas que o investimento libidinal dirigido à irmã ou a agressividade em relação ao tio não provam a inexistência do Complexo de Édipo, mas seriam, provavelmente, um modo de defesa contra as tendências edípicas: por manobras psíquicas, a irmã seria uma substituta da mãe assim como o tio maternal um substituto do pai.

Tais reflexões, no entanto, não foram levadas adiante nem pelos antropólogos, que parece não terem lido ou se pronunciado sobre isso, nem pelos psicanalistas da época (incluindo Freud), visto que Jones e Róheim já haviam contestado53 as afirmações de Malinowski (PULMAN, 2002).

No entanto, pode-se dizer que é a partir desse contexto confuso e sem diálogo explícito e direto, que se inicia a polêmica entre a antropologia (ou mesmo as ciências sociais em geral) e a psicanálise.

De um lado os antropólogos criticavam uma “psicanálise selvagem” que patologiza o outro em análises egoicas (o que têm razão na maioria das vezes) e à distância. De outro lado, psicanalistas parecem ter se conformado com o conforto da clínica individual e assumiram a autoridade dos antropólogos na realização do trabalho de campo, ficando a cargo destes últimos o direito do saber sobre povos para além da burguesia europeia e norte-americana.

51

Cf. Roheim, G. Australian Totemism. A Psycho Analytic Study in Anthropology, London, Allen & Unwin Ltd. (1925), in Pulman (2002).

52 A princesa e psicanalista Marie Bonaparte foi uma das maiores responsáveis pela sustentação “financeira” da

psicanálise. Financiou pesquisas, viagens, publicações e até mesmo a “fuga” de Freud de Viena a Londres.

53“Freud n‟a jamais jugé utile répondre directement aux critiques émanant des anthropologues. Il laissera cette

tâche à Ernest Jones et à Geza Roheim » (PULMAN, 2002, p. 221). Tradução nossa: Freud nunca julgou útil responder diretamente às críticas vindas dos antropólogos. Deixará esse encargo a Ernest Jones e a Géza Róheim.