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Ruídos do debate nos estudos de transe e possessão

2. Antropologia e Psicanálise: um meio de afinar seu ouvido e apurar seu tato

2.3. Ruídos do debate nos estudos de transe e possessão

No Brasil, a discussão antropologia-psicanálise e mesmo as próprias disciplinas (etnopsicanálise, etnopsiquiatria, antropologia psicanalítica, etnopsicologia) que nasceram destes diálogos são pouco conhecidas.

Na primeira metade do século XX houve no país uma tentativa de compreender fenômenos de transe e possessão a partir da psiquiatria e da psicanálise, mas nenhuma delas foi competente o suficiente para que ambas as disciplinas continuassem em diálogo.

Pelo contrário, apesar de atualmente serem clássicos importantes que ilustram os primórdios dos estudos sobre a religiosidade afro-brasileira, contribuíram também para afastar as disciplinas e as leituras “psi” da antropologia no Brasil.

Ainda hoje, percebo certo receio que perdura em relação às análises „psicológicas‟ nestes domínios em virtude de precedentes análises etnocêntricas e “patologizantes”, geralmente associadas à noção de um “eu” psicológico individual e particular.

Nina Rodrigues ([1900] 1935), precursor e pioneiro das investigações de situações de transe e referência para quem estuda religiões afro-brasileiras, é um exemplo do reducionismo e etnocentrismo emblemático, pois além de procurar características „primitivas‟ dos negros em suas práticas religiosas, para ele, o transe era um “reflexo direto destas perturbações psicológicas, atribuindo ao „meio social‟ apenas a capacidade de direcionar essas manifestações”, como afirma Goldman (1984, p. 75).

Uma referência posterior e já menos “nociva” é Arthur Ramos (1934), pesquisador responsável por somar a psicanálise de Freud à análise do fenômeno. À diferença de Nina Rodrigues, o pesquisador sai do vocabulário biológico e evolucionista calcado no termo “raça” para elaborar reflexões “psico-sociológicas”.

Artur Ramos não classificava a possessão como histeria, diferentemente de Nina Rodrigues ([1900] 1935), mas insistia na psicopatologia, associando a possessão a delírios e

“estratos afetivos profundos, arcaicos, resto hereditário de um primitivo estágio de vida, daquela esfera mágico-catártica das reações afetivas” (RAMOS, 1934, p. 283).

Uma das hipóteses do comprometimento desses tipos de análises refere-se ao modelo de homem utilizado75, estabelecendo por vieses etnocêntricos os supostos padrões de normalidade. Ou seja, as explicações de áreas “psi” não contextualizavam e não utilizavam o discurso e as noções de pessoa do campo trabalhado, mas atribuíam as suas próprias concepções de homem às cosmologias dos sujeitos analisados.

Como já colocado, Georges Devereux (1977) afirmava que mais valia o psicanalista identificar as capacidades de os sujeitos se organizarem e se “sintonizarem” com o seu entorno do que perceber as suas estruturas “doentias” 76, mas as ideias do etnopsicanalista pouco fizeram eco no Brasil. Como Patrícia Birman (1995) afirma, o discurso da psiquiatria no país tem como referência a noção de um “ego” saudável, ou seja, um “eu” com controle absoluto de si e de sua consciência. Para a autora, isso faz com que os estados de transe sejam percebidos pela perda de consciência, pelo descentramento e rebaixados à categoria de doenças mentais.

No entanto, nas religiões afro-brasileiras, o indivíduo que entra em transe, de fato, não está centrado em si mesmo, mas está integrado num sistema mais global que o compreende e significa. Além disso, Monique Augras (1983), Patrícia Birman (1994), Paula Montero (1985) e Márcio Goldman (1984) apontam que as religiões afro-brasileiras não compreendem a “pessoa” humana reduzida ao indivíduo empírico simplesmente, mas formada e compreendida por uma multiplicidade - entre espíritos e orixás.

75 A esse respeito, Paula Montero (1994) acrescenta: “temos portanto que o universo religioso brasileiro,

sobretudo em suas vertentes mais marcadas pelas tradições indígenas e africanas, em que a possessão religiosa está no centro do rito, veicula um conjunto de valores que tende a produzir uma identidade social na qual a noção de persona, enquanto máscara ou personagem, prevalece sobre a de indivíduo” (MONTERO, 1994, p. 76).

76 Devereux acrescenta ainda que uma sociedade sã seria aquela que permitisse e favorecesse a individualização

2.3.1. Fenômenos do “além”: produção individual ou cultural?

Deve-se ainda considerar que existe uma confusão sobre se o fenômeno da possessão é construído culturalmente ou uma produção do indivíduo. A esse respeito, atualmente, há subsídio teórico suficiente para nos mostrar os limites de nos atermos somente a um dos eixos.

Lewis (1971), um autor clássico nos estudos de possessão, foi criticado justamente por buscar uma terapêutica no culto e compreender o fenômeno no nível individual (BODDY, 1989, 1994)77, mas o autor se defende, pois, para ele, se os informantes dão esses sentidos, ele não pode ignorá-lo (LEWIS, 2003). Em seus estudos (LEWIS, 1977), por um enfoque sociológico, depara-se com uma “medicalização” da possessão e ao justificar a crítica à individualização, diz que é necessário pensar na importância da relação do grupo com o espírito na composição da identidade da pessoa possuída, afirmando que há uma força comunitária simbólica neste fenômeno78.

No entanto, Lewis (1977) é categórico ao utilizar construções como: “A possessão nesse contexto é, na verdade, um alívio, um escape à dura realidade” (LEWIS, 1977, p. 242, grifo nosso). Digo isso porque nesta pesquisa, quando encontro outras interpretações (tangentes ao psiquismo) para os rituais e transes praticados, esforço-me para não reduzir o fenômeno a explicações e traduções psíquicas. Por mais que haja possibilidades de compreensão que se somam à explicação dada pelo praticante, o que pode nos levar a compreender que a possessão pode ser também “um escape”; mas ao dizer “a possessão é, na verdade...”, Lewis coloca-se em posição delicada por desconsiderar a versão dada pelos próprios praticantes, atribuindo outra (a sua) interpretação legítima à possessão.

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Partilhando a mesma opinião de Boddy (1989) e diferentemente de Lewis, Lambeck (1988) também discorda da visão de que a possessão seja expressão de tensões psicológicas ou sociais. Para ele, a possessão é acima de tudo uma instituição social, não se devem buscar explicações terapêuticas ou resoluções de conflitos a priori.

78 Também rotulado como funcionalista (BODDY, 1994), Lewis (2003) diz ser complicado utilizar essa

categoria para crítica, pois, o que se entende por ser “funcionalista”? Em prefácio à nova edição (LEWIS, 2003), ironiza dizendo que anos atrás, um ousado comentador em face à dificuldade de denominar Antropologia Social, optou chamar de “funcionalista” o que os antropólogos sociais fazem.

Ao mesmo tempo, Lewis critica a posição de ambos os autores por interpretarem a possessão como texto. O autor afirma que para Boddy (1989) a possessão seria uma alegoria de fatores sociais como gênero, classe ou história pessoal (LEWIS, 2003, p.11).

Para ele, uma tendência da pós-moderna “interpretative-writing”, é revelar mais do antropólogo do que de seus informantes e acabar por não se preocupar com questões centrais como: o que os homens e mulheres envolvidos com possessão pensam sobre isso? Em que circunstâncias são possuídos? Quais as implicações sociais da possessão? Como isso afeta a vida das pessoas? O autor afirma que uma interpretação “textual” não é capaz de responder a estas questões adequadamente.

Para não cair nem no fenômeno como individual nem apenas num texto cultural, Stoller (1995) teoriza sobre a ideia de performance, mas vai além ao utilizar o conceito de mimese para pensar a estética e a presentificação do espírito durante o ritual. Stoller utiliza todas as expressões corporais sensitivas, pensamentos, atitudes e coloca o corpo num lugar de saber. Para ele, o etnógrafo também deveria valer-se não apenas da visão, mas de todos os seus sentidos possíveis para perceber o fenômeno observado. O autor afirma que há um senso estético no ritual que deve ser percebido e evidenciado, pois conhecemos o mundo por meio de nossos corpos em sua múltipla capacidade de percepção.

Crapanzano (1977) admite que por mais que interpretemos, o fenômeno sempre escapa a nossa total compreensão. Neste sentido, contribui ao afirmar que para compreender a possessão deve-se pensar que existe ali um “idioma” que é compartilhado coletivamente, mas além disso, há uma relação singular entre a pessoa e o espírito.

A possessão espiritual é um inquestionável dado no mundo no qual o crente individual se encontra. Ela o provê de um idioma para articular uma certa gama de experiências. Sobre articulação, quero dizer o ato de construir, ou melhor ainda a construção de um evento que o torne significativo. O ato de articulação é mais do que uma representação passiva de um evento, é a

própria essência de criação do evento (CRAPANZANO, 1977, p.10, tradução nossa) 79

O autor salienta que este “idioma” é provavelmente estruturado como linguagem, mas é mais do que linguagem no sentido restrito ao linguístico. Nesta linguagem o sentido se dá com base nas relações estabelecidas.

Para nos fornecer um quadro completo do “idioma” da possessão espiritual não basta a descrição dos espíritos, suas associações, relações e inter-relações. Seria necessário também descrever o “idioma” das pessoas que os incorporam e, consequentemente, as suas próprias associações e vice-versa (CRAPANZANO, 1977). Ou seja, trata-se de compreender os espíritos a partir do próprio idioma em que são significados, bem como por meio do idioma de quem os incorpora.

Dito de outra maneira, se buscamos traduzir o fenômeno para um segundo idioma, por exemplo, o idioma do pesquisador (“ocidental”), acabamos por reduzir e distorcer os sentidos dados pelos praticantes. O que se defende não é uma restrição a retratos “puramente” descritivos, mas de situar o pesquisador em posição de escuta do que lhe é enunciado, para então analisar as construções, as relações e as atribuições de sentido existentes entre os possuídos e os espíritos. A possessão é um processo integrado à vida da comunidade do sujeito ao mesmo tempo em que com ela se articulam transformações pessoais.