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1. Umbanda: luz que refletiu na Terra

1.3. Luz que refletiu na Terra

1.3.1. A virada

Entre as divindades umbandistas, há também as zonas fronteiriças (por vezes bastante flexíveis) que as distinguem entre entidades de “direita”, como os pretos-velhos, caboclos, cosmes, baianos, boiadeiros33, e as entidades de “esquerda”, como os exus, as pombagiras e os exus-mirins. Trata-se de uma divisão categorial que separa as entidades de „direita‟, ligadas à “luz”, das entidades de „esquerda‟, ligadas às “trevas”, telúricas, relativas ao que é mais próximo do carnal. Há ainda quem pense que a esquerda é da ordem do maléfico, mas percebo que falar das entidades desta linha é apenas como falar da outra face da moeda, “viramos” a face do “mesmo” e encontramos outros contornos, que, como a noite e o dia, o claro e o escuro, complementam-se.

Parece que se complementam também os exus e pombagiras34. Ao longo do desenvolvimento deste trabalho, ouvi muito que para falar de pombagira é necessário falar de exu, pois as entidades de esquerda têm características em comum.

Assim, sigo o costume da ordem ritual e trago os exus primeiro:

A partir do início do século XX, o Exu africano, reinterpretado como espírito maroto mas prestativo, espécie de diabinho familiar da tradição ibérica, começa a se multiplicar nas macumbas do Rio, sob a influência das crenças espíritas sobre os mortos (CAPONE, 2007, p. 95).

Inaugurando os estudos específicos sobre esta entidade, Liana Trindade (1979) em sua tese de doutorado intitulada Exu: símbolo e função, aborda as ambiguidades do exu na sua capacidade de transitar entre o que é bom e mau, ao mesmo tempo em que o considera como possibilidade de romper com a opressão social35:

32 Os rituais de umbanda em geral começam com a incorporação das divindades de direita e em seguida apagam-

se as luzes para serem recebidas as divindades de esquerda. A isto é o que se nomeia por “virada”. Mas, como sempre, no entanto, o formato dos rituais é variável de acordo com o terreiro e muitas vezes, os rituais de esquerda e direita acontecem em dias separados.

33 Baianos e boiadeiros, dependendo do terreiro também podem ser classificados como divindades de “centro” ou

“intermediárias”, ou seja, entre esquerda e direita, assim como os ciganos e marinheiros.

34 A relação entre exus e pombagiras será melhor apresentada no quinto capítulo. 35

A esse respeito, percebo que procede no imaginário umbandista uma interessante “lógica de inversão”. Os exus contam que em vida foram “doutores”, ou seja, advogados, médicos (às vezes praticantes de abortos), juízes e engravatados em geral; e por terem feito “maldades” em suas vidas passadas, encontram-se atualmente na

A incorporação se torna mais significativa, à medida que eles simbolizam as formas comportamentais e os elementos sociais e psicológicos condenados socialmente. Caracteres estes, que neles residem e que os indivíduos sabem possuir, mas que rejeitam como sendo atribuídos a Exu. (...) A presença desta entidade que culturalmente configura os caracteres psicológicos censuráveis e como heroi “trickster” representa a possibilidade de obter as aspirações desejadas, através da violação das interdições sociais, traduz os sentimentos ambivalentes que seus adeptos possuem em relação a ela, de temor e cumplicidade, repulsa e atração (TRINDADE, 1979, p. 204).

O exu pode ser um aliado audaz ou inimigo perigoso e cada posição depende também de como se coloca o sujeito com quem se relaciona, o fiel ao qual trata ou o médium em quem incorpora. Por isso é preciso conhecê-lo para poder interagir com segurança (BRUMANA;MARTINEZ, 1991).

Uma característica que se repete é que as entidades de esquerda funcionam na base da troca, ou seja, o fiel que faz um pedido à entidade costuma dar pagamentos ou agradecimentos por seus serviços, que podem ser bebidas alcoólicas (pinga, uísque, cerveja...), tabaco (cigarros, charutos...), carnes vermelhas, suas vestes típicas (capas vermelhas ou pretas, calças..) e tudo o mais que a criatividade dessa classe de espírito ousar.

Atualmente exus e pombagiras são os alvos prediletos dos ataques das igrejas evangélicas. As pombagiras são responsabilizadas por toda a sorte de problemas que possam surgir na vida de um casal. Nestes espaços, elas se aproximam da mulher diabólica, prostituída e “destruidora de lares”.

Antes desconhecida para mim, logo que a elas voltei minha atenção, percebi que presença desta sacerdotisa espiritual no imaginário social extravasa os limites de seus seguidores para se fazer representar no pensamento das mais diversas classes sociais do país. Trata-se de uma figura muito

qualidade de exus. Fazem parte, em geral, de grupos “abonados” e de pertencentes à alta sociedade em vida, que, na morte, descem a um escalão “mais baixo” entre as classes de espírito. Já entre pretos-velhos, que eram velhos escravos, ou entre os caboclos, que eram índios que também foram marginalizados, perseguidos, parece haver uma tentativa de inversão oposta; ocupam as posições mais altas na hierarquia das entidades espirituais. Mas mesmo isso também é bastante flexível, pois não são poucos os casos que acompanhei de exus que vêm atender pessoas em giras de preto-velho e todos pensam que são pretos-velhos. Essa seria, principalmente, uma possibilidade atribuída aos exus: a possibilidade de transitar. Mas mais interessante do que comprovar se isso ocorre ou não, é dizer que as categorias, as diferenciações, as regras, na umbanda, são sempre fluidas e permeáveis. Depende muito dos pais ou mães-de-santo, do lugar do Brasil, da região, do período do ano, do momento político, enfim, as regras estão sempre em diálogo com o que se passa no mundo.

popular, que não circula apenas nos espaços religiosos da cultura brasileira, mas na literatura, no cinema, nas novelas, na música – a título de ilustração, vale ressaltar o título do presente trabalho: “Labareda, o teu nome é mulher”, trecho da música “Labareda”, de Baden Powell, que é entoada como ponto-cantado36 de pombagira em terreiros de umbanda – e nas conversas do dia-a-dia.

No discurso acadêmico chegou a ser considerada como a mais popular divindade afro- brasileira (HAYES, 2008), mas ainda são poucos e recentes os estudos aprofundados e dedicados especificamente às pombagiras.

Ao notar um certo “silêncio” em torno da pombagira na Academia, Monique Augras (2004) afirma que apesar de encontrar o seu culto bem estabelecido no Brasil desde sua chegada ao país, em 1961, os pesquisadores ainda não haviam comentado ou não tinham percebido a importância dessa figura nos ritos populares.

Até onde foi possível verificar, aliás somente trabalhos recentes de jovens antropólogos vêm dando destaque à pesquisa da umbanda e, consequentemente assinalam o papel da Pombagira. Mesmo assim, raríssimos são os artigos em que a mesma é focalizada como figura central da investigação (AUGRAS, 2004, p.31-32). 37

O mistério também ronda o modo como categorizá-la no panteão umbandista: por alguns, é reconhecida como exu feminino, por outros é apenas a esposa do exu, tal como é entoado em alguns pontos-cantados: “Pombagira é mulher de sete maridos” (referente às sete „linhas de exus‟).

Marlyse Meyer (1993), autora de uma das raras obras focadas especificamente em pombagiras, constroi uma análise rica e envolvente sobre a pombagira Maria Padilha. Em sua obra, reúne elementos que remontam à Antiguidade, passam pelas feiticeiras dos séculos XVI e XVII até o Brasil Colonial.

O percurso construído por Marlyse Meyer permite refletir sobre a possibilidade de perceber a pombagira como síntese de um longo processo histórico e cultural. Tratarei mais

36 Ponto-cantado é a música ritual entoada para “chamar” as “entidades”. Cada classe de espíritos costuma ter

pontos-cantados específicos.

37 Ao passo que desenvolvia este trabalho, recebia indicação de novos estudos, como da própria Augras (2009),

especificamente sobre esta questão no quarto capítulo, mas vale ressaltar que para a autora, assim como para mim, o fato de os ecos passados de feminino encontrarem ressonância na figura da pombagira, não precisa corresponder a um arquétipo do feminino da mulher guerreira ou feiticeira, ou seja, um sentido de feminino único, essencial e atemporal. A história, os mitos e as interpretações religiosas podem ser utilizados para a compreensão de discursos que compõem as imagens que temos hoje, não necessariamente para provar ou buscar verdades estáticas ou categorias essenciais.

Para uma ampla reflexão do que compõe nossas realidades hoje, Meyer (1993) aponta a importância de estudos multidisciplinares, inclusive no que toca à compreensão da pombagira, que, para a autora, é de suma importância que seja estudada.

“Síntese dos aspectos mais escandalosos que pode apresentar a livre expressão da sexualidade feminina” (AUGRAS, 2004, p.14), a pombagira comporta a ideia de que as pessoas podem, através dela, manifestar e canalizar seus desejos sem pudor, de modo a poder elaborar suas experiências. Portanto, passa a ser um interessante objeto de estudo justamente por permitir que compreendamos algo das “das aspirações e frustrações de largas parcelas da população que estariam “muito distantes” de um código de ética e moralidade embasado em valores da tradição ocidental cristã” (PRANDI, 1996, p.142).

O sociólogo Reginaldo Prandi (1996) afirma que mesmo a prostituição associada à imagem da entidade, em vez de afastar os fieis, contribui para que a pombagira seja encarada como possuidora de um saber e domínio do relacionamento pessoal e da vida sexual, pois é reconhecida como “alguém” que tem o poder de compreender as fantasias, os desejos e as angústias dos fieis que pedem ajuda.

Neste sentido, percebi ao longo desta pesquisa que essa famosa entidade parecia refletir um outro olhar sobre o feminino, pois, distante da mãe e muito mais próxima da imagem da “outra”, da amante, a pombagira parecia ocupar um lugar do feminino que não se

associa primordialmente ao matrimônio ou à reprodução (BIRMAN, 1995; MONTERO, 1985; SANTIAGO, I. , 2001).

No entanto, pouco se discutiu sobre como ela é vivida e experienciada38. Ora, é importante ressaltar que as entidades se expressam, além de tudo, por via do que dizem e utilizando o código corporal que imprimem em seus médiuns, mas desconheço estudos aprofundados que compreendam como e em que medida a pombagira atua na vida das pessoas ou pesquisas que tomassem as próprias39 pombagiras como interlocutoras.

Percebo que, para maior entendimento desta entidade, é valioso que entremos em contato com os sujeitos que vivenciam a experiência com a entidade, pois os elementos que permitem esta compreensão aparecem tanto em discursos sociais, quanto no próprio corpo. Mas, por enquanto, não avanço sobre a questão, pois gostaria de levar o leitor ao campo junto comigo, para que em sincronicidade cronológica40, possa apresentar como os dados se configuraram como questões a serem trabalhadas.

No próximo capítulo, apresento a base metodológica para o que considero ser o diferencial deste trabalho em relação aos estudos precedentes: a inclusão das próprias pombagiras como interlocutoras da pesquisa e o meu posicionamento a partir da psicanálise na compreensão dos dados colhidos.

38

Destaco os trabalhos de Stefania Capone (2004) e Kelly Hayes (2008).

39

Recentemente tive conhecimento de uma dissertação publicada em alemão por Marie Elisabeth Thiele (2005). Correspondi-me com a autora, que me disse ter realizado entrevistas com médiuns e pombagiras, mas ainda não pude entrar em contato com o respectivo trabalho.

40Minha intenção sincera é apenas preparar o terreno para os “leigos”, pois para os especialistas em estudo afro-

brasileiros, não trago aqui nenhuma novidade. Gostaria, inclusive, de me abster da necessidade deste capítulo, mas se escolho pela permanência, não é apenas para facilitar e contextualizar a leitura de tudo o que estar por vir, mas também em respeito aos vários pesquisadores que me precedem.

2. ANTROPOLOGIA E PSICANÁLISE: