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3. Uma etnografia de três encontros

3.3. Casa Mãe Guacyara

3.3.2. Xangô me ajuda a chegar

Apesar de ter sido frutífero o encontro relatado acima, não foi de imediato que pude dar continuidade à minha pesquisa neste centro, pois morava em Ribeirão Preto. Acredito, no entanto, que a tamanha intensidade do encontro e o convite explícito para conhecer “minha mulher” precisavam antes ser melhor digeridos. Assim, depois de aproximadamente um ano, voltei a entrar em contato com a Casa:

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A relação das pombagiras com os elementos da natureza é mais marcante, sobretudo, neste centro, que possui um vínculo maior com a tradição do candomblé (religião que associa os orixás a elementos da natureza). Infelizmente, não tive oportunidade de conversar com nenhuma pombagira “ar” nesta ocasião.

Depois de tanto tempo, finalmente ponho os pés no chão e agendo um horário com Corina, psicóloga que trabalha na administração da ONG. Ela foi sempre a minha intermediária para acessar as médiuns que iria entrevistar (justamente aquelas com que conversei naquele dia). Bom, depois de não doer nada o telefonema para agendar, já que Corina foi tão prestativa, programei-me para visitar o centro no sábado próximo. Antes disso, procurei saber se Miguel poderia ir comigo, pois as poucas vezes em que fui lá, não prestei atenção no caminho, que apenas lembrava ser cheio de curvas e quebradas. Na verdade, isso parece ser uma constante entre os terreiros. Geralmente em bairros periféricos, que crescem por geografias nada planejadas, e os caminhos são pouco diretos. Na impossibilidade de Miguel me acompanhar, ousei ir sozinha já que havia assumido o compromisso. Miguel me deu indicações bem detalhadas a partir da estrada de Itapecerica da Serra. É claro que meu problema começou onde ele imaginava não haver problema. Ingênua, imaginava que

haveria uma placa indicando “Estrada de Itapecerica da Serra”, mas é claro que

não havia. No entanto, já havia planejado o tempo em função de algum atraso, e saí de casa com horas de antecedência, pois chegar a um terreiro nunca é tão fácil quanto se imagina. Bom, depois de pedir informação a um taxista (simpático e, para mim, com cara de filho de Xangô), cheguei na estrada e logo depois fui seguindo as indicações de Miguel. Devo ter virado errado, claro,

porque os „segue em frente‟ dele não eram compatíveis com as ruas sem saída

com que eu me deparava. Foi quando comecei a escutar uma música no rádio

que dizia para mim: “Xangô vai te ajudar a chegar”131

, e na hora senti um arrepio que me tranquilizou, dei meia volta e alguns quarteirões à minha frente estava a ONG toda colorida, preenchendo o quarteirão. Nossa! Esse lugar exala alegria mesmo, chego lá e começo a sorrir sem me dar conta, e neste exato momento que escrevo também sorrio. Crianças descem a ladeira saltitando, e a rua soa o „abençoado por Deus e bonito por natureza‟ que se perde no caminho de minha casa até aqui (Diário de campo, março de 2006)

Neste dia, realizei duas entrevistas com médiuns presentes no ritual de pombagiras que eu havia participado. Foram belíssimas e incrivelmente elucidativas. As médiuns deste terreiro têm uma interpretação de suas pombagiras que parece muito próxima de minha linguagem, é mais fácil compreender, e já imaginava que seria mais fácil também transmitir estes conteúdos para a linguagem escrita do meu texto.

Depois das entrevistas, esperei para participar do ritual. Surpreendi-me com a organização, pois neste quesito, é o mais rígido de todos. Não se deve ir ao ritual com nenhuma peça de roupa preta ou escura, também é desaconselhável roupas justas,

131 A Música era cantada por Suzana Salles: “É Xangô que vai chegar/ Por Alá canta o corão/Coro Atlântico verão/Acalanto uma canção”.

transparentes, curtas ou decotadas. Se sua calça ou blusa for mais curta, a organização do terreiro fornece uma saia branca para colocar por cima da sua roupa.

Na entrada, deve-se deixar sapatos e outros pertences (por ex: bolsa, brincos, pulseiras, relógios, aneis e prendedores de cabelo) numa sacola com um número e é dada também uma senha com a ordem de chegada e outra com o nome do médium escolhido para a consulta. Se há sobrecarga de número de consulentes para um único médium, é sugerido que se escolha outro para se ser atendido.

As pessoas começam a ordenar-se em filas até a hora em que são abertas as portas do terreiro. Muitas trazem velas coloridas e flores do campo nas mãos para doação às entidades, que posteriormente as distribuem entre os fieis. Ao final do ritual, a maioria sai com algum „presente‟ das entidades: velas, flores, comida, enfim, materiais que fazem parte do tratamento dos fieis.

O centro é amplo, as paredes são pintadas de um verde bem clarinho, o que chamo de verde „erva-doce‟, e não há as imagens de santos típicas de centro de umbanda. Há uma obra de Iemanjá „estilizada‟ na parede e algumas peças de inspiração africanas.

No início do ritual são entoados vários pontos-cantados com muita força e alegria. Há um grande número de médiuns, que ficam dispostos em círculo ao redor do centro, de maneira que o canto alto entoado por tantos médiuns é contagiante. A mãe-de-santo entra em um dado momento em que todos já estão posicionados em círculo.

Assim que entra, ela profere algumas palavras para seus médiuns e pessoas da assistência; espiritualidade, política e solidariedade são as temáticas mais evocadas mas na maior parte das vezes, faz apelos aos cuidados com as crianças ou mesmo por doações de materiais de que a ONG necessita. Todos, médiuns e assistência, a escutam em silêncio e com admiração.

A organização do centro é característica também na incorporação das entidades, pois tanta sincronia só havia visto em terreiro de candomblé, mas nunca na umbanda. Há um sinal da mãe-

de-santo, que toca um instrumento ritual conhecido por “adjá”(também bastante presente no candomblé), e todos os médiuns dão um pulo, abaixam a cabeça e levantam com os espíritos em seus corpos.

Neste dia, por “coincidência”, recebi uma senha para me consultar com uma médium que havia entrevistado naquela tarde. A médium estava incorporada com um caboclo de Xangô e quando pedi ajuda para meu trabalho, a entidade disse que cuidava de todos que buscavam sabedoria. No momento, eu estava finalizando meu texto de qualificação de mestrado e esta conversa foi extremamente apaziguadora.

Neste encontro, mostrou-me que o desenrolar do trabalho não é sempre claro, leve, limpo e tranquilo. O caminho de Xangô também é cheio de pedras, pode ser íngreme, é preciso muito machado para quebrar os obstáculos132 e determinação para chegar ao lugar que se deseja.

Após o ritual, dirigi-me a sua médium e ela me disse que todos que procuram ajuda para provas, concursos e exames gostam de falar com o caboclo dela porque ele lida justamente com o saber. Tratava-se de um antigo monge tibetano que havia passado a vida “estudando”. Nesse dia, de fato, Xangô me ajudou a chegar ao terreiro e ao fim do meu trabalho.

132 O instrumento associado ao orixá Xangô é um machado com dois lados iguais, que sinaliza também equilíbrio