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3. Uma etnografia de três encontros

3.3. Casa Mãe Guacyara

3.3.1. Sai a menina, vem a mulher

O encontro com as pombagiras deste terreiro ocorreu em 2005. Meu orientador foi autorizado a filmar um ritual de pombagiras realizado especialmente para sua pesquisa e solicitou meu auxílio nas filmagens.

No trecho de diário de campo a seguir há o relato sobre este dia e, juntamente, as descrições do terreiro, assim como as impressões do encontro com mais uma casa de umbanda.

Depois de o Miguel pedir para filmar para seu trabalho os movimentos e as

danças das pombagiras (em outros terreiros) e as imagens obtidas “puxarem” para baianas e para “ciganas”, menos características, Miguel disse que iria deixar de lado as „mulheres‟. Mas a mãe-de-santo desta casa, Dagmar,

discordou e propôs marcar um dia especial para reunir algumas médiuns do seu terreiro com suas pombagiras. Agendado este dia, Miguel sugeriu que uma aluna que pesquisava pombagira poderia participar da gira para ajudá-lo a filmar e Dag, como a chamam, concordou. Quando chegamos, Miguel fez algumas doações para a ONG que cuida de crianças que a mãe-de-santo fundou. Dag ainda estava ocupada e disse para irmos dar uma volta lá na ONG. Que delícia é aquele lugar, lindo, lindo! Tantas cores, tudo tão colorido, as crianças nos cumprimentam com sorriso. É muito bom ver que as coisas não são bonitas só na parede. Antes do encontro, sentamos para conversar com a Dag, quer dizer, eu fiquei ali mais para escutar, falei muito pouco, não sei se por timidez ou por querer escutar mais mesmo. Tinha um certo encantamento também que me paralisou um pouco. Não fui com nada preparado, questões prontas, nada. Mas fiquei encantada mesmo, fiquei encantada com tudo o que ela me falava, era tudo muito bonito. Dag falou de suas duas pombagiras, uma que, inclusive, ajuda a proteger as crianças e é muito ligada à sabedoria, e outra que é da linhas „das Farrapos‟, que, disse Dag, era aborteira em vida e, como pombagira, vem para cuidar de crianças abandonadas, mas não “abortadas”. A mãe-de-santo disse que a pombagira trabalha a auto-confiança da médium, e deu exemplos: se uma médium está

gorda, a pombagira chama a atenção pra isso: „o que é isso? O que você tá

querendo tanto por pra dentro? Por que fica retendo?O que você tá buscando

na comida busca dentro de você mesma!‟. Acrescenta que a pombagira não dá nada de mão beijada e atribui responsabilidade ao médium: „Ah, não tá

arranjando trabalho? Se não tá arranjando trabalho é porque não quer. Se não

tá conseguindo não é culpa do sistema, do empregador ou sei lá o quê‟. „Ah,

é um câncer! Se é um câncer é porque você provocou, você cultivou porque

você se alimentou mal, você fez isso, fez aquilo‟. E então, chegou a hora da

minha responsabilidade sobre o que faço entrar em jogo! Ela pediu para contar do meu trabalho, e contei. Ela disse ter lido o meu projeto, mas que

achou muito teórico, „sociologuês‟. Era isso mesmo, ela leu o meu projeto

para o mestrado e era isso que ele era e tinha que ser (na época). Só agora começo a pisar num terreno mais vivo e me aproximo deste universo tão rico e assombroso, e imaginar que estou há dois anos nisso e não sei nada ainda...

Bom, hoje percebi algo novo, vi que „não sei nada ainda‟ também porque

agora sinto o quanto é importante eu saber e perceber que tem uma mulher dentro de mim (Diário de campo: 16/9/2005).

Ouso colocar os trechos de diário de campo na íntegra, pois neste centro houve uma dinâmica peculiar. Foram poucos encontros, mas bastante intensos e cruciais para o desenvolvimento do meu trabalho.

Apesar de estes eventos terem se passado numa fase inicial do meu trabalho, demorou para que eu pudesse perceber a importância do conteúdo aqui vivido para uma compreensão global e profunda do que eu estava realizando.

Depois da conversa com Dag, preparei-me para o ritual. Vesti calça preta e blusa vermelha, pegamos todos os apetrechos audiovisuais e entrei descalça no centro, como todos devem fazer. As médiuns arrumavam suas coisas também e já entravam vestidas. Os vestidos eram bonitos, elas estavam arrumadas, maquiadas e com os cabelos soltos. Havia um lindo arranjo de rosas vermelhas no centro do terreiro e com um globo iluminado com velas

por dentro. Tudo muito bonito, de bom gosto, mas „clean‟, diferente dos

terreiros que conheço. O batuque já havia começado antes de começar de fato.

Um clima foi esquentando, havia um „zum-zum-zum‟ entre as médiuns, iam

acendendo suas velas, várias no arranjo de flores. Os pontos-cantados começaram a ser entoados e as médiuns começaram a dançar, giravam em volta do fogo. Solange, pombagira da mãe-de-santo, de vestido preto justo e gola fechada no pescoço começou a dançar, dançou muito, e com força e leveza girava e rodava. Todas as outras começaram a dançar também e eu e Miguel filmávamos aquele lindo espetáculo! Curiosamente, quando cantaram o ponto

„Labareda‟, ela veio na minha direção e disse: Pra que você tá aqui? O que você

quer? Respondi „o que eu quero...com meu trabalho?‟, ela disse que sim, com um ar de obviedade, e respondi “pelas pombagiras, eu quero conhecer as mulheres”. „Conhecer as mulheres?!‟, disse me encarando e com um ar de

deboche. Olhou para o marido da sua médium e perguntou: „você conhece as mulheres?‟, ele fez sinal com o rosto negando, como se fosse impossível e sorriu. Solange também perguntou para o Miguel, e ele disse: „Eu tento‟,

imagino que em solidariedade a mim. Então, ela olhou pra mim e perguntou: Você conhece a tua mulher?‟, respondi que não. Perguntou se eu queria

conhecer‟, e eu disse que sim. Então, Solange me mandou abaixar a cabeça,

passou a mão com força em meus cabelos, abaixei o pescoço até a altura dos joelhos. Ela colocou todo o meu cabelo pra baixo, segurou minha cabeça com firmeza e disse que quando ela tirasse a mão, eu deveria levantar a

cabeça com toda a minha força. Pensei: “Ai meu Deus! É agora que eu vou

incorporar uma pombagira! Já era! E na frente do meu orientador!”. Mas resolvi encarar. Pra falar a verdade, não senti medo, ergui a cabeça com toda a minha força. Quando levantei, ela olhou pra mim, levantou as sobrancelhas, sorriu e disse: Ah, saiu a menina e veio a mulher!. Agora você pode conversar com as mulheres. (...)No final, Solange pegou no meu queixo e me disse: „Não seja mais menina, seja mulher!‟ (Diário de campo, 16/9/2005).

Não incorporei, continuei lá, eu mesma, consciente, inteira, mas não como antes, algo parecia ter mudado. Disse meu orientador que mudei completamente, mas não tinha essa consciência, apenas estava me sentindo mais segura, mais à vontade e livre. Só então Solange me levou para conversar com as pombagiras. E disse: “Se você acha que vai conhecer as mulheres, vá conversar com as mulheres. Primeiro você começa com a terra, depois vai pro fogo e depois pra água...130”.

E foi este o caminho que fiz. Primeiro entrevistei uma médium incorporada com pombagira Maria Molambo, da qual o elemento correspondente é a terra, depois falei com a pombagira Língua de Fogo, da qual o elemento já é dito no nome e recebi um presente da pombagira Areia Preta, correspondente à água, mas com quem não houve tempo de conversar.

Todas as pombagiras foram unânimes em contribuir com a minha pesquisa e ao final do ritual o mesmo se deu na minha conversa com as médiuns desincorporadas. Um aspecto interessante é que neste centro a maioria das médiuns em estado de transe continua consciente ou semi-inconsciente, de maneira que me disseram ter gostado muito da ideia de participar da pesquisa, pois com as entrevistas das suas entidades, as mesmas poderão conhecer mais também sobre suas próprias pombagiras.