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1. Umbanda: luz que refletiu na Terra

1.1. Uma religião de mestiçagens

Reconhecemos a mestiçagem por um movimento de tensão, de vibração, de oscilação que se manifesta através de formas provisórias que reorganizam-se de um modo outro (LAPLANTINE; NOUSS, 2001, p. 8,

tradução nossa) 12.

É sempre arriscado dizer sobre a constituição das religiões afro-brasileiras. Construídas sobretudo por grupos que transmitiam suas tradições oralmente, é raro podermos nos valer de registros escritos que documentem os processos de constituição destas religiões13. O trabalho de reconstituição histórica ficou a cargo dos pesquisadores que, no entanto, se dedicaram expressivamente ao candomblé. Os principais pioneiros14 nos estudos da religiosidade afro-brasileira foram o médico Nina Rodrigues ([1900]1935), o psiquiatra e folclorista Arthur Ramos (1934) e, um pouco mais tarde, o antropólogo Roger Bastide ([1958]2000).

No entanto, devido a uma nítida predileção pelo candomblé em relação à umbanda (ou outras formas de culto), estes pesquisadores15 contribuíram, inclusive, por influenciar a própria constituição das religiões afro-brasileiras, instituindo um certo “padrão nagô de qualidade” (CAPONE, 2004 ; CONCONE, 2006; PRANDI, 1991 ; SILVA, 2000)16

.

12 « On reconnaît le métissage par un mouvement de tension, de vibration, d‟oscillation qui si manifeste à travers

des formes provisoires se réorganisant autrement ». (LAPLANTINE; NOUSS, 2001, p. 8)

13 Há, no entanto possibilidades de investigação a partir de registros policiais ou de documentos jornalísticos que

atualmente contribuem para que os pesquisadores avancem a esse respeito. 14

Nina Rodrigues (1900/1935) e Artur Ramos (1940) ainda compreendiam as religiões afro no registro de patologização do fenômeno religioso. A partir dos estudos de Roger Bastide (1958/ 2000) foi adquirido status sociológico de religião e a partir de então, seguiu-se esta corrente (GOLDMAN, 1984). Bastide (1958/2000, 1973) demonstrou que pesquisadores anteriores não percebiam a “sutil filosofia” das religiões afro-brasileiras e ressaltou que os chamados “primitivos” elaboram sistemas de conhecimento do mundo em níveis paralelos aos de nossos maiores pensadores, alicerçados em visões originais, criativas e profundas sobre a humanidade.

15 A hipótese atribuída a esta conservação vem do fato de o candomblé se formar a partir de tradições de

populações yorubá (ou nagô) - com influências de povos fons, também chamados de jêjes, que foram capturados no último período de escravatura. Desta maneira, houve, entre eles, uma maior chance de conservar suas tradições em relação aos bantos, por exemplo, que formam a maioria dos escravos trazidos desde os primeiros anos de escravatura (PRANDI, 2005).

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Como exemplo, não são poucos os pesquisadores que relatam que a partir do contato com os pesquisadores, os terreiros de candomblé percebiam a predileção pelo “purismo” africano e passavam a esconder suas características “impuras”, como, por exemplo, o culto de caboclos, entidade espiritual muito cultuada na umbanda que em vida teria sido um índio, ou seja, um indício de “marca” brasileira. Essa preocupação se devia ao fato de que era vantajoso aos terreiros possuir pesquisadores ao seu lado, pois a parceria lhes conferia reconhecimento e legitimidade social ao mesmo tempo em que os centros que contavam com a presença de ilustres pesquisadores eram mais poupados da perseguição policial e da imposição católica (SILVA, 2000).

Durante várias décadas, não bastassem os estudos serem focados no candomblé nagô, os mesmos também se restringiam a praticamente três terreiros de Salvador: Gantois, Opô Afonjá e Casa Branca, considerados até hoje como ícones e referências da tradição do candomblé. Não houve, até meados da década de 70, estudos acadêmicos aprofundados sobre outras partes do país que também possuíam representantes do candomblé nagô, nem de outras formas de culto17.

Mas para poder compreender a umbanda, devemos perceber as especificidades deste culto tal como ele se mostra, mas não compará-lo a um candomblé degenerado ou baixo espiritismo.É preciso pontuar que a mestiçagem umbandista possui historicidade e qualidades particulares.

Para tanto, é preciso acrescentar que os escravos deportados para o Brasil desde o início do tráfico negreiro provinham de diferentes lugares e consequentemente havia uma grande variabilidade de práticas, crenças e divindades. Mas em nosso país, tendo sido destruídas as famílias e rompidos os laços, muitos escravos de diferentes etnias (por vezes inimigos) eram obrigados a viver juntos. Dessa convivência, houve uma grande mistura que lhes conferia uma tentativa de elaboração “identitária” dentro deste novo contexto.

À primeira instância, houve um “intercâmbio” religioso entre suas próprias crenças, mas ao longo do tempo, como o catolicismo era a religião oficial e imposta pela corte portuguesa ao Brasil, também houve a incorporação de elementos da religião nacional.

Vale acrescentar que o catolicismo ao qual me refiro e vigente no período colonial era, como diz Moisés do Espírito Santo (1990), um catolicismo popular, ou melhor, uma religião popular portuguesa. Este catolicismo foi mais fácil de ser assimilado18 e, por vezes, já era praticado em terras africanas, consistindo um sistema diferente, ainda distante dos preceitos

17 Cf. Amaral (2002), Prandi (1991) e Silva (1995).

ditados pela Contra-Reforma Católica, e carregado de crenças mágicas e milagrosas que se opunham à doutrina das elites.

Houve ainda uma mestiçagem também com as crenças e práticas ameríndias. Dentro deste novo contexto, continuavam a festejar seus ancestrais ao mesmo tempo em que se imbuíam de novas crenças para se proteger, identificar-se e se cuidar medicinalmente.

Por volta do início do século XVII, surgiram formas de cultos anteriores a umbanda e ao candomblé nomeados de “calundus” e “batuques”, entre outros (SILVA, 2005a ; SILVEIRA, 2005). Tratava-se de reuniões nas quais negros e mestiços se encontravam para dançar, jogar, dançar, fazer magia e celebrar seus ancestrais.

Tais formas de culto19 se espalharam por todo o Brasil, principalmente a partir da abolição da escravatura, quando partiram do meio rural para a cidade. Com o passar do tempo, estes cultos culminaram em subdivisões: candomblé, tambor de mina, batuque, xangô e umbanda dentre outras. Por meio da religião, reconstruía-se a fraternidade e a parentalidade perdidas, e, cada uma à sua maneira, permitiu com que suportassem a miséria herdada da escravatura, a perseguição policial20 e a dor da discriminação.

As macumbas - como passaram a ser nomeadas as formas de culto anteriores a umbanda no final do século XIX e início do século XX - eram ignoradas pelos estudiosos pela sua “degradação” da tradição afro, de maneira que a pouca oferta de estudos a respeito dificulta os estudos sobre a própria constituição da religião no país.

A esse respeito, o sociólogo Reginaldo Prandi (1991), em contraponto, argumenta sobre o equívoco ao desconsiderá-las:

19 “Eram cultos que englobavam uma grande variedade de cerimônias misturando os elementos africanos

(atabaques, transe por possessão, adivinhação através de búzio, trajes rituais, sacrifício de animais, banhos de ervas, ídolos de pedra etc.) aos elementos católicos (crucifixos, anjos católicos - o Anjo Angélico - sacramentos como casamento) e ao espiritismo e superstições populares de origem europeia (adivinhação por meio de espelhos, almas que falam através dos objetos ou incorporadas nos vivos etc.)” (SILVA, 2005a, p.45-46). 20

Apesar da separação entre a Igreja Católica e o Estado desde o início da República, essas religiões sofreram perseguições policiais até a metade dos anos 60 do século XX (BROWN, 1994 ; NEGRÃO, 1996 ).

Macumba, portanto, deve bem ter sido a designação local do culto aos orixás que teve o nome de candomblé na Bahia, de xangô na região que vai de Pernambuco a Sergipe, de tambor no Maranhão, de batuque no Rio Grande do Sul. Difícil sabermos o que foi e como se originou essa antiga macumba carioca, na qual Bastide, precedido e seguido por outros, enxergava formas degradadas (no sentido de desorganização e desagregação cultural) das antigas religiões (PRANDI, 1991, p. 45).

Em ensaio sobre uma “proto-antropologia da cidade” presente nas obras de Lima Barreto, o antropólogo franco-brasileiro Jorge Santiago (2008) expõe trechos do conto O Moleque, em que o próprio Lima Barreto analisa as práticas religiosas da cidade do Rio de Janeiro. Oferecendo-nos o panorama que a literatura acadêmica não fez, Lima Barreto retrata a “vida urbana” e a religiosidade da época:

Nas suas redondezas, é o lugar das macumbas, das práticas de feitiçaria com que a teologia da polícia implica, pois não pode admitir nas nossas almas depósitos de crenças ancestrais. A igreja católica se mistura a eles e a sua difusão é pasmosa. A igreja católica unicamente não satisfaz o nosso povo humilde. É quase abstrata para ele, teórica. Da divindade não dá, apesar das imagens, de água benta e outros objetos do seu culto, nenhum sinal palpável, tangível, de que está presente. O padre, para o grosso do povo, não se comunica no mal com ela; mas o médium, o feiticeiro, o macumbeiro, se não a recebem em seus transes, recebem, entretanto, almas e espíritos que, por já não serem mais da Terra, estão mais perto de Deus e participam um pouco da sua eterna e imensa sabedoria (LIMA BARRETO, [1920] 2008, p. 17).

Na mesma obra, Lima Barreto vai além e elabora uma compreensão sobre a religiosidade popular sem preconceitos, abordando a riqueza e eficácia dessas práticas de maneira que os acadêmicos da época ainda não eram capazes de fazer.

Os médiuns que curam, merecem mais respeito e veneração que os mais famosos médicos da moda. Os seus milagres são contados de boca em boca, e a gente de todas as condições e matizes de raça a eles recorre nos seus desesperos de perder a saúde e ir ao encontro da Morte. O curioso – o que era preciso estudar mais devagar – é o amálgama de tantas crenças desencontradas a que preside a igreja com os seus santos e beatos. (LIMA BARRETO, [1920] 2008, p. 17)

O romancista antecipa a ciência na compreensão da religiosidade popular e, como o diz Jorge Santiago (2008, p. 50), “estuda e convida a estudar os particularismos do sociocultural,

ao ponto de preconizar processos de hibridação que somente mais tarde serão considerados pelas ciências humanas e sociais”, como o fez Roger Bastide a partir da década de 3021

. É interessante que o autor preconiza não apenas a compreensão das ciências sociais, mas também o que parece anunciar o próprio surgimento da umbanda:

A feitiçaria, o espiritismo, a cartomancia e a hagiologia católica se baralham naquelas práticas, de modo que faz parecer que de tal baralhamento de sentimentos religiosos possa vir a nascer uma grande religião como nasceram de semelhantes misturas as maiores religiões da história. Na confusão do seu pensamento religioso, nas necessidades presentes de sua pobreza, nos seus embates morais e dos familiares, cada uma dessas crenças atende a uma solicitação de cada uma daquelas almas e a cada instante de suas necessidades (LIMA BARRETO, [1920] 2008, p. 17-18).

Esta mestiçagem, que expressava a própria vida colonial dos marginalizados, provavelmente era compreendida como uma grande “confusão do pensamento religioso”, como bem pontua Lima Barreto, de maneira que algumas vezes mais vale nos valermos da literatura do que dos pesquisadores da época. Afinal, estes não se dedicavam ao estudo dessas crenças que, provavelmente, respondiam e atribuíam contornos às necessidades da cotidianidade vivenciada.

Patrícia Birman (1995) reconhece que desde os primeiros estudos há um esforço - por parte dos pesquisadores – para diferenciar e estabelecer fronteiras em cultos que se revelavam entrelaçados. No entanto, as macumbas dificultavam o estabelecimento de critérios que as separassem e a diversidade e o movimento destas religiões eram percebidos como um “obstáculo teórico”. A autora argumenta que havia uma dificuldade em “reconhecer que a flexibilidade de fronteiras diz respeito a concepções do que seja religião diferentes daquelas operadas pelos antropólogos” (BIRMAN, 1995, p. 16).

Em consonância, a pesquisadora Maria Helena V. B. Concone (2006) afirma que a umbanda é um desafio maior aos pesquisadores, pois não se pode elaborar modelos simplificados ou estruturalistas a seu respeito.

Neste sentido, Bairrão (2002) complementa:

Esta ilusão sobre a linearidade do tempo, não obstante mantida por muitos que presumem reivindicar uma fidelidade à tradição, ignora que o tempo do sagrado é sempre presente. A origem acontece atual e é revivida em cada reiteração do sagrado (BAIRRÃO, 2002, p. 57).

A maior regra da umbanda - como o veremos ao longo de todo o trabalho - é o próprio dinamismo da religião. Essas “impurezas” e mestiçagens possuem, como já mencionado, uma historicidade de inúmeros anos de interação no território brasileiro.

Percebendo a religião em sua especificidade, progressivamente aumenta o número de estudos que permitem realizar um esboço do processo de constituição da umbanda, que se desenrola desde os primeiros anos de interação dos povos bantos no território brasileiro até o início do século XX, quando foi reconhecida como religião nomeada como tal (BROWN, 1994 ; CONCONE, 1987 ; NEGRÃO, 1996 ; ORTIZ, 1978).

Uma marca fundamental do caráter “mestiço” umbandista é a presença no corpo da religião do espiritismo kardecista, que chegou ao Brasil no final do século XIX e converteu uma parte da classe média brasileira 22.

Pesquisadores defendem a tese de que os primeiros centros de umbanda foram criados a partir de uma busca de legitimidade social no kardecismo (BROWN, 1994 ; NEGRÃO, 1996 ; ORTIZ, 1978 ; PRANDI, 1991), já que praticavam sua religiosidade de forma marginalizada. Assim, buscando legitimar seus cultos como religião, encontraram no

22 Vale conferir La Table, le Livre et les Esprits (1990), de Marion Aubrée e François Laplantine, bem como Kardecismo e Umbanda (1961), de Cândido Procópio Ferreira de Camargo. Há informações tanto sobre o pensamento de Allan Kardec, como sobre a teoria de reencarnação, o evolucionismo e o positivismo característico da religião. Vale conferir ainda Procópio

espiritismo do francês Allan Kardec uma possibilidade de explicação para a possessão bem como uma via para diminuição da discriminação que sofriam.

É preciso dizer, no entanto, que o kardecismo baseia-se num evolucionismo (típico do contexto darwinista da época) e numa estratificação hierárquica dos espíritos. Para eles, espíritos evoluídos são grandes pintores, grandes médicos, grandes intelectuais, já os espíritos dos negros, índios e mestiços, como os caboclos e os preto-velhos, eram considerados pouco evoluídos e consequentemente eram proibidos de serem incorporados.

Assim, uma das teses sobre a construção da umbanda é a de que nesta ambiência de malquerença de seus espíritos, alguns grupos construíram seus próprios centros onde poderiam ser livres para incorporar caboclos, preto-velhos e tantas outras entidades que surgiram com o passar do tempo23.

Até hoje, a umbanda guarda os conceitos do kardecismo ainda muito presentes, como a ideia de “missão” (ou karma), o princípio de caridade, e uma certa tendência a colocar seus espíritos em escalas de evolução. O sociólogo Lísias Negrão (1996) acrescenta que quando há influência da moral na prática umbandista, frequentemente é influência de herança kardecista24.

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Para Bastide (1995), esse caminho pelo kardecismo foi percebido como uma tentativa de integração do negro à sociedade, o que está de certa forma de acordo com Concone (1987), pois para ela, houve uma busca de “embranquecimento”. Diana Brown (1994), também importante referência para os estudos sobre umbanda, acrescenta que esse processo de “embranquecimento” é fruto da presença da classe média na prática e na construção da umbanda. Já Renato Ortiz (1978) contribui ao dizer que ao mesmo tempo em que houve um embranquecimento das tradições africanas, houve um “empretecimento” do kardecismo e o sociólogo Lísias Negrão (1996) complementa ao afirmar que mesmo com todo esse processo de agregação de novas influências, não se pode dizer que houve uma perda total de identidade. Apresentando uma interpretação que escapa a uma dimensão valorativa pautada no “embranquecimento” ou “empretecimento”, Camargo (1961) utiliza a ideia de um continuum religioso existente entre umbanda e kardecismo; ideia posteriormente utilizada para compreender o continuum também presente entre as mais variadas formas de cultos afro-brasileiros (FERRETTI, 1995; SILVA,2005c).

24 Stefania Capone complementa: “Como no espiritismo kardecista, as sessões de umbanda visam facilitar o

processo de evolução dos espíritos. Mas, ao passo que no kardecismo esse processo está ligado à doutrinação dos espíritos graças à ação consciente dos médiuns, na umbanda a evolução deles só pode se realizar pelo “trabalho” mediúnico, ou seja, pela “caridade” praticada pelos próprios espíritos uma vez incorporados em seus médiuns. A intervenção direta dos espíritos na vida dos homens, ajudando-os a resolver os problemas, torna-se, portanto, o único meio de evoluir: é preciso “trabalhar” para progredir” (CAPONE, 2007, p. 98), de maneira que veremos ao longo do texto, a repetição das pombagiras ao dizerem que estão aqui (em nosso mundo) porque precisam ajudar.

No entanto, é importante ressaltar que a umbanda rompe com a visão de mundo kardecista baseada no sofrimento e na castração do prazer (PRANDI, 1991). Nestes mesmos termos, Bairrão (2003d) compreende também a influência do catolicismo presente na umbanda e exemplifica utilizando a imagem de Jesus Cristo em ambas as religiões: nos altares umbandistas, quando há imagens de Cristo, ele geralmente está “vivo”, de braços abertos, com aparência acolhedora e leve. Ao contrário da maioria dos altares católicos, em que a figura central é o Cristo morto, símbolo de sofrimento, com os braços pregados na cruz e o corpo sangrando.

Ainda é preciso dizer que as hipóteses levantadas sobre a constituição da umbanda são, no entanto, controversas. O fato é que a partir do início do século XX, inúmeros terreiros identificados como umbanda surgiram na mesma época em diferentes lugares do Brasil, mas principalmente no Rio de Janeiro e em São Paulo.