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O século 17 apresenta-se (retrospectivamente) como o século que viu estruturar-se a ciência moderna102. O racionalismo filosófico sobrepõe-se à filosofia aristotélica que vingara até a Idade Média. O mundo geocêntrico dos gregos, substituído pelo mundo antropomórfico medieval, chega ao “universo descentrado da astronomia moderna”103. O homem perde então o seu lugar no mundo e, em seguida, perde o próprio mundo, ou a concepção que fazia deste, o que não deixa de resultar no mesmo. “A destruição do cosmo significa a destruição do mundo enquanto concebido como um todo finito e bem ordenado”104.

Método é a palavra-chave para esse século 17 que tem como campo privilegiado a matemática. O racionalismo, longe de propor um diálogo com Deus, apresenta hipóteses filosóficas para justificar o divino. Consciência trágica e individualismo são dois efeitos de uma mesma operação discursiva.

Nascido em 1623, Pascal é contemporâneo de Descartes. Ambos buscam aliar a Verdade científica à Verdade cristã. Porém, enquanto Descartes parece corresponder aos anseios do mundo racional moderno, Pascal não consegue fazer vingar sua aposta em um mundo cuja natureza, para ele, comporta o vazio e o acaso, e também a felicidade.

Mesmo sendo um filósofo cristão, Pascal elabora em suas Cartas Provinciais um violento ataque à corrupção e falsa moral praticadas pela igreja, principalmente a ordem dos jesuítas. Ainda adolescente, inventa a máquina de calcular e demonstra a existência do vácuo, primeira aproximação com um ponto de real, o vazio. Formula a Geometria do acaso [Aleae Geometria], e, dos jogos de azar, constrói uma tabela numérica (Triângulo de Pascal) que permite “calcular as combinações possíveis de m objetos, agrupados n a n.”105. É ele também quem generaliza o ponto de vista projetivo em geometria e funda, juntamente com Fermat, a análise combinatória e o cálculo das probabilidades106.

102 Merleau-Ponty chama o século 17 de “século do Grande Racionalismo” (apud CHAUÍ, 1999, p. 12). 103 CHAUÍ, 1999, p. 13.

104 CHAUÍ, 1999, p. 14. 105 Ibid., p. 7.

106 CHEVALLEY, 1995. Segundo Rogers, o interesse de Pascal pelo estudo das probabilidades está ligado ao seu conhecimento dos jogos de azar (ROGERS, 2001).

Pascal acredita na ciência, instrumento de promoção da razão, e, ao mesmo tempo, recusa a explicação do mundo com base na racionalidade. Por enfrentar esta divisão cartesiana produzida por seu tempo, Pascal irá trabalhar com verdades múltiplas, paradoxais. A teleologia pascaliana não é física nem metafísica, mas religiosa. Para ele, a ciência progride pelo exercício das faculdades racionais, mas “as verdades da fé” não seguem a mesma via; pelo contrário, são transmitidas pela autoridade e pela memória.107. De acordo com Ben Rogers, Pascal era “um amante da prática de desqualificação dos filósofos”108 e buscava apontar, na tradição filosófica, um racionalismo utópico, “o qual ele estava determinado a estremecer e desestabilizar”109.

Ainda assim, é Descartes, com o seu Discurso do método e as regras para a direção do espírito, quem representa mais fortemente a direção que o discurso científico tomava. Sua investigação dirige-se ao Método, categoria universal. O avesso deste tecido é Pascal que, acidentado por uma consciência trágica, não acredita num método único, prévio e necessário. Ele propõe métodos, dos quais extrai verdades. “Pascal escreve uma apologia, um discurso concatenado e coerente [...] mas seu discurso, por intermédio da dupla dissidência do pensamento e da morte, manifesta-se como dis-cursus, curso desunido e interrompido que, pela primeira vez, impõe a idéia de fragmento como coerência”110.

No Tratado sobre as potências numéricas, ele abordará os “infinitamente pequenos”, atordoado com a idéia do universo, infinitamente grande. Vejamos seu argumento: “Sabemos que há um infinito, e ignoramos a sua natureza. Como sabemos que é falso que os números sejam finitos, logo é verdade que há um infinito em número. Mas não sabemos o que ele é: é falso que seja par, é falso que seja ímpar, uma vez que, acrescentando-lhe a unidade, ele não muda de natureza; no entanto, é um número, e todo número é par ou ímpar [...]. Pode-se assim reconhecer que há um Deus sem se saber o que é”111.

Sua base teológica agostiniana leva-o a propagar a convicção de que as virtudes humanas são marcadas pelo ódio e pela falsidade, sendo que somente Deus (a exceção) proveria a salvação.

107 CHAUÍ, op. cit.

108 ROGERS, 2001, p. 63. 109 Ibid.

110 BLANCHOT, 2001 [1969], p. 30. 111 PASCAL, 1999, p. 91-2.

Em 1654, Pascal experimenta uma conversão extática, acontecimento112 que registra num pedaço de pergaminho, intitulado “O Memorial”, onde ele repudia o Deus dos filósofos, louvando “Deus de Abraão, Deus de Isaac, Deus de Jacó, não dos filósofos e dos eruditos”113. Este fragmento, composto de palavras e frases listadas como se fossem versos, prega o esquecimento de tudo, exceto de Deus. Momento singular, em que ele se apresenta como a exceção diante de Deus por ter sido o que o conheceu. A experiência do êxtase muda o rumo de sua vida.

Conserva, entretanto, um estilo conciso, dialogal, cético e irônico. “O homem é naturalmente crédulo, incrédulo, tímido, temerário”114. Ao invés de tomar o divertimento e o ócio humanos como vícios efêmeros e malévolos, Pascal ressalta seu papel na sociabilidade, na paz e na justiça humanas115. Em vez de sermões, escreve diálogos e seu interlocutor não é o fiel, mas o agnóstico. Entre os conceitos extremos da Queda (pecado) e da Graça (redenção), Pascal constrói um intervalo para o diálogo e o jogo. Com uma sedutora abordagem, ao tempo em que reconhece que o saber do filósofo nada pode fazer para aplacar a miséria humana, ele atribui ao homem uma evidente vocação para a felicidade.

Em um dos fragmentos que compõem o oitavo maço do Pensées, cujo título é “Divertissement” [Divertimento], Pascal diz que, a partir da concupiscência, estabelecemos e desenvolvemos “admiráveis regras de política, moral e justiça”; mas, neste mesmo fragmento, mostra que sua percepção da “natureza” do homem não concorda com a idéia de reprodução de qualquer ideal divino, haja vista a sua convicção de que “neste fundo vil do homem, este figmentum malum116 [a

concupiscência] é apenas encoberto. Não desaparece”117. Ao mesmo tempo, advoga um método

firme, porém paradoxal, de tratar o homem:

Se ele exaltar a si mesmo, eu o humilho. Se ele se humilhar, eu o exalto.

E eu o contradigo continuamente

Até que ele compreenda que é um monstro incompreensível118.

112 O acontecimento, que ele nomeou “noite de fogo” e que teve duração de uma hora e meia, estaria relacionado a alguns fatores (isto é, sobredeterminado): a morte do pai, a decisão tomada pela irmã de tornar-se freira em Port- Royal, sua saúde frágil. A cura milagrosa que salva sua sobrinha (o milagre do Santo Espinho), em 1656, fortalece

mais ainda (Mais, ainda é o Seminário de Lacan sobre o gozo da mulher e o êxtase místico) aquela conversão e seu

peculiar trabalho apologético de fé cristã.

113 PASCAL, Pensées, 913, apud ROGERS, 2001. 114 PASCAL, Pensées, 124, apud ROGERS, 2001, p. 23. 115 ROGERS, 2001, p. 61.

116 Segundo Pondé, tradutor brasileiro dos fragmentos, a expressão latina significa “essa substância essencial má”. 117 ROGERS, 2001, p. 62.

Mas não somente o homem é objeto deste tratamento. As escolas filosóficas também são duramente atingidas. No entanto, o procedimento de Pascal é ainda mais complexo porque ele joga o povo contra os filósofos e vice-versa, desqualificando um e elogiando o outro, alternadamente, para afinal mostrar a fraqueza de ambos e apontar a saída feliz da fé.

A crítica pascaliana ao sistema filosófico torna-se mais evidente se comparada aos pressupostos lançados por Descartes no Discurso do método. Logo no início do livro, Descartes afirma: “olhando para as várias promessas e ações da humanidade, dificilmente há uma que não me pareça vã e inútil”119. Pascal não adere a uma visão dualista e hierárquica que promove a separação entre os homens, de acordo com a posição social. Mas, no domínio artístico, Pascal conserva o dualismo platônico; ele critica a arte por fazer com que o verossímil seja mais admirado do que “os originais”120.

Nem mesmo em sua apologia da fé, Pascal esconde os furos de sua crença. Ele parte “de uma depreciação do homem como um enigma infeliz”121 em direção a um argumento religioso, porém lúdico: devemos jogar e apostar na existência de Deus e, conseqüentemente, da felicidade. Uma felicidade não necessária, posto que somente alcançável pela decisão. Tomando como ponto de partida um raciocínio, Pascal busca converter os ateus pela razão e pelo reconhecimento da miséria humana, da qual ele próprio não se exclui. Escapa da habitual divisão entre os que crêem na grandeza do homem e os que se resignam com a miséria, pela lógica que conjuga opostos não- contraditórios; por exemplo, miséria e grandeza122. Dirige-se ao homem comum, o “sujeito de

contradições”, deste modo: “Conhecei então, orgulhoso, que paradoxo vós sois a vós mesmos”123.

119 DESCARTES apud ROGERS, op. cit., p. 30. 120 PASCAL, Pensées, 40, op. cit., p. 31. 121 ROGERS, 2001, p. 20.

122 Ou, como quer Lucien Goldmann, “a incerteza radical e certa, o paradoxo, a recusa intramundana do mundo e o apelo de Deus. E é estendendo o paradoxo até o próprio Deus  que para o homem é certo e incerto, presente e

ausente, esperança e risco  que Pascal pôde escrever os Pensamentos e abrir um capítulo novo na história do

pensamento filosófico.” (GOLDMANN apud CHAUÍ, 1999, p. 12).

123 PASCAL, Pensées, 13, op. cit. Ponto de vista como esse já havia sido proclamado por Montaigne quase um século antes. “Em verdade, o homem é de natureza muito pouco definida, estranhamente desigual, e diverso. Dificilmente o julgaríamos de maneira decidida e uniforme.” Ver na Internet os Essays [Ensaios] de Montaigne (1575) traduzidos para o inglês por Charles Cotton, no seguinte endereço:

O famoso Pari [aposta] é um “longo fragmento fora da classificação”124, no qual Pascal procura aplicar a teoria das probabilidades à questão da crença em Deus (fragmento 418). Que questão interessa a Pascal? “Se há um Deus, ele é infinitamente incompreensível, porque, ao não ter partes nem limites, não possui nenhuma relação conosco. Somos, portanto, incapazes de conhecer não só o que ele é como também se existe”125. Conhecer o que ele é parece, nesta questão, secundário a saber se ele existe. Como sabê-lo? A resposta que ele próprio proporá é, paradoxalmente, um jogo:

Assim, estudemos esse ponto e digamos: “Deus existe ou não existe”. [...] Na extremidade dessa distância infinita, joga-se cara ou coroa. Em quem apostareis? Pela razão, não podereis atingir nem uma nem outra [...] – Sim, mas é mister apostar. Não é algo que dependa da vontade, já estamos inseridos nisso. [...] Uma vez que é necessário escolher, vejamos o que menos vos interessa. Tendes duas coisas a perder: vossa razão e vossa vontade [...] Pesemos o ganho e a perda escolhendo a cruz, que é Deus. Consideremos esses dois casos: se ganhardes, ganhareis tudo; se perderes, não perdereis nada126.

O argumento decisivo é que, como o acaso entra igualmente tanto no ganho quanto na perda, “é preciso renunciar à razão para guardar a vida, em vez de arriscá-la pelo ganho infinito tão prestes a sobrevir quanto a perda do nada.”127. A crença religiosa aparece marcada por uma razão

pragmática: é mais racional acreditar que Deus existe do que não acreditar, porque se ele de fato existir, os ganhos serão infinitos.

Desta formulação, pode-se concluir com Pascal: 1. que não se pode ter a vida toda, completa; 2. há que renunciar a algo para conservar a vida; 3. o nada faz parte da vida e perdê-lo é uma perda. 4. a perda (aí incluído o esquecimento) é uma positividade.

Na teoria dos jogos que ele desenvolve, o homem  entendido como jogador  arrisca na

certeza, ou ainda, terá certeza em arriscar, pois apostar é necessário. Há dois resultados possíveis nesta aposta: ele pode ganhar ou perder. Isto é demonstrável  diz ele  “e se os homens são

capazes de alguma verdade, essa é uma verdade”128. Não se trata de advogar a verdade absoluta, mas uma verdade não-toda.

124 Ibid, p. 44.

125 PASCAL, op. cit., p. 92. 126 Ibid., p. 92-3.

127 Ibid., p. 93. 128 Ibid., p. 94.

“Apostar” em Pascal aponta duas referências aparentemente contraditórias: a incerteza da fortuna e o rigor das demonstrações. A ênfase da aposta está no jogo e não no resultado “o jogo é feito para jogar, não para decidir sobre questões indecidíveis”129. Assim, o conhecimento é entendido como singular e inevitavelmente colado a seu método, não havendo, portanto, instrumentos neutros, nem objetos descolados dos sujeitos que o produzem.

Enquanto a certeza metafísica cartesiana exclui a contingência do seu horizonte, a geometria pascaliana reintegra-o a uma espécie de relativismo antropológico130, onde “As coisas são verdadeiras ou falsas dependendo do lado pelo qual são vistas”131. Uma posição política baseada na diversidade e levando em conta o arbitrário mostra-se ainda hoje um arrojado projeto. Pascal lamenta que as leis caprichosas e efêmeras que governam os homens sejam tomadas como leis universais e atemporais. Desafia o argumento que alia as leis à idéia de justiça, porque a considera um produto do homem e de sua época, nada possuindo de imanente ou universal. Onde enxerga autoridade baseada no arbítrio, denuncia seus fundamentos, pois não confunde justiça com “costumes” e repudia a pompa, a reverência e a tirania.

A posição antifilosófica de Pascal contribui para pensar metodologicamente campos do conhecimento, cujos objetos são descritos em sistemas abertos e cujos fundamentos são remanejáveis, móveis. A questão do correlato do objeto no mundo ou na representação não é algo relevante; a racionalidade pode ser pensada como um saber não-universal e não-necessário; as verdades, sempre plurais, são circunscritas às regiões nas quais a experiência foi produzida; a invenção de objetos não naturais, não objetivos e, portanto, não passíveis de generalizações, nem por isso são menos demonstráveis: o cálculo do acaso, ou o cálculo de relações132 são exemplos

disso.

Tais características metodológicas destroem a cisão entre ciências exatas e humanas, por distanciar as primeiras da certeza dos ‘dados’ e afastar as segundas da pecha de anticiência por trabalharem com um tipo de formalização que emprega o cálculo do singular e acolhe a indecidibilidade de certas proposições.

129 “le jeu est fait pour jouer, non pour décider de questions indécidables” (CHEVALLEY, op. cit., p. 101). 130 O livro O homem insuficiente: comentários de antropologia pascaliana (PONDÉ, 2001), é um bom referencial sobre o tema.

131 “Les choses sont vraies ou fausses selon la face par où on les regarde” (PASCAL, Pensées 539, apud CHEVALLEY, op. cit., p. 52).

132 A propósito, em 2002, o psicólogo Daniel Kahneman ganhou o Prêmio Nobel de Economia por demonstrar que nosso comportamento econômico não é regido pela racionalidade cartesiana, mas por um cálculo do acaso.

Sobre os efeitos que as contribuições de Pascal produziram no conhecimento, Catherine Chevalley destaca as seguintes características: o objeto matemático ou físico não é uma idealização do objeto natural do qual se revelaria uma essência, mas é pensado em termos de relação133 [rapport]; para Pascal, a Natureza é um termo que não deixa de apresentar sua face moderna e complexa134, pois não obedece a leis universais e necessárias, sendo um processo sujeito a variações e submetido a flutuações; o conhecimento não é seguro nem neutro, tampouco independe de seu objeto. O saber que se pode adquirir, portanto, é intrinsecamente incompleto e submetido às suas proprias condições de enunciação. Resumidamente, esta é “a epistemologia anticartesiana de Pascal”135.

Nesta posição, ilustrada pelo célebre Pari, a possibilidade do saber não se encontra anulada pelo fato de que o conhecido depende das condições de sua observação (é singular), mas termina liberada da obsessão da certeza (ego cogito) cartesiana. É certo que a aposta pascaliana não vingou como efeito hegemônico para o conhecimento e a ciência ocidentais, mas seu trabalho de aliar o acaso ao rigor da demonstração, partindo do pressuposto de que o saber é contingente, verifica-se atualíssimo.

Por fim, a posição de Pascal também concorre para esclarecer questões aqui levantadas a respeito da memória. Ele recomenda que “Ao final de cada verdade é preciso acrescentar que lembramos da verdade oposta”136; o que se explicita é o método de conjugar idéias opostas, do mesmo modo

que Freud, dois séculos depois, ao afirmar que o inconsciente não conhece a contradição. Por não conseguir “conceber a relação entre duas verdades opostas, os homens aferram-se a uma e excluem a outra”137. Não é difícil encontrar nessa exclusão os impedimentos que a ciência

contemporânea ainda se dá para pensar o funcionamento do aparelho de memória sujeito a reordenamentos e retranscrições.

133 O termo é rapport. Tal como Lacan que diz Il n’y a pas de rapport sexuel, o emprego do termo é preciso: trata-se de relação no sentido matemático, empregado pela teoria dos conjuntos, de proporção ou razão, por oposição à relação biunívoca, linear.

134 “Qu’est-ce que nos principes naturels sinon nos principes accoutumés” [O que são nossos princípios naturais senão nossos princípios acostumados]. (PASCAL, Pensées 125, apud CHEVALLEY, op. cit., p. 54).

135 “l’epistémologie anticartésienne de Pascal” (CHEVALLEY, 1995, p. 8).

136 “A la fin de chaque verité il faut ajouter qu’on se souvient de la verité opposée” (PASCAL, Pensées 576, apud CHEVALLEY, op. cit., p. 81).

137 “concevoir le rapport de deux vérités opposées, les hommes s’attachent à l’une et excluent l’autre” (PASCAL, Pensées 733, apud CHEVALLEY, op. cit., p. 81).

Pascal morre aos 39 anos. Somente então são encontrados, nos bolsos de suas roupas, pedaços de papel escritos e que, posteriormente, recebem o nome de Pensées138. O formato de seus apontamentos é condizente com a obra que produz: pensamentos, fragmentos de vida que ele anota, sem pretensão de construir sistemas de explicação do mundo que, para ele, nada mais é do que cada ato humano produzido em estrita singularidade.

Idéias pontuais sobre polidez, alegria, sobre a filosofia de Descartes, misturam-se a pensamentos religiosos e citações do Velho Testamento. Seus pedacinhos de papel inscrevem no Livro do homem contemporâneo uma visão não totalitária do mundo e das ações humanas: “Não tireis de vosso aprendizado a conclusão de que sabeis tudo, mas sim a de que vos resta infinitamente a saber”139.

Enfatizar o papel da situação, ou do ambiente, na produção do conhecimento ou na recuperação de um conhecimento estabelece as bases para compreender que diferentes posições subjetivas criam heterogeneidades irredutíveis. Tais heterogeneidades possuem características não imanentes ou intrínsecas, e constituem valores de verdade passíveis de mudança e verificação, sem que por isso se deva julgá-las descartáveis como produção de conhecimento. Por outro lado, se não há respostas prévias, mas formuladas como efeito retroativo, a generalização  se e

quando é possível  se fará por regressão, impedindo assim a previsibilidade que promove esta

mesma generalização. A utilização do futuro anterior na gramática dá conta desta possibilidade discursiva: o resultado terá sido este ou aquele a depender das apostas formuladas e das ações realizadas.

Nesta antifilosofia, vemos que o presente somente é estabelecido por referência ao futuro, um futuro probabilístico, e em relação a fatos singulares construidos pela memória. Mas nem tudo é antifilosófico no pensamento de Pascal. Vejo o seu esforço de escrever e projetar um final feliz como uma tentativa de cobrir a falta que nos constitui humanos, e apresentar, como horizonte, uma idealização de unidade, harmonia e comunhão. Seguir Pascal parece-me uma empresa de fôlego e de grande impacto para os campos do conhecimento que desejam manter-se abertos e plurais, mas à condição de não segui-lo até o seu fim, no sentido de telos.

138 Estão registrados quase mil fragmentos. Há também folhas amarradas em maços que correspondem a 28 capítulos de um projeto.

Peço desculpas ao leitor pelo caráter fragmentário desses apontamentos. A leitura que fiz de temas mitológicos e de autores da filosofia que trabalham a memória busca extrair pontos de interrogação e articulação ao tema, mais do que reintegrá-los à história das idéias, na ilusão de exprimir o sistema de pensamento de uma época ou de cada um desses autores. Se a psicanálise pôde ser inventada numa determinada época e não em outra, sua gênese tem relação, por um lado, com a articulação do mito com a verdade, e, por outro com os sistemas de pensamento que pavimentaram o campo da ciência, do qual o campo psicanalítico é tributário.