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Nomear as coisas, nomear alguém, nomear-se, ser nomeado são interrogações que não cessam de questionar os mais diversos campos do saber. Pela lógica, Aristóteles, Frege; pela filosofia, Russell, Foucault; na crítica literária, Barthes; Lacan e tantos outros na psicanálise. Cada campo

 a lógica, a lingüística, a gramática, a filosofia, a crítica literária, a psicanálise  recorta o real

a seu modo, mas a problemática dos nomes insiste: o nome designa o objeto?

Para Frege, os objetos são sempre designados por nomes próprios. Assim, operações como 2+2 ou 6-2 designam o mesmo referente, pois têm o mesmo valor de verdade: o número quatro (4). Frege diz que 2+2 é o nome próprio de ‘o verdadeiro’; no entanto, ele não dirá que um número é um nome próprio. Sobre o sentido e a referência, obra de 1892, formula distinções entre a representação e o sentido de maneira bastante clara. A representação para Frege é invariavelmente subjetiva, tem a ver com a memória e com emoções: “vários indivíduos podem apreender o mesmo sentido; mas eles não podem ter a mesma representação”150.

Sua formalização da lógica leva-o a postular que a referência de um nome próprio é o próprio objeto, ficando o sentido entre a representação (por não ser tão subjetivo quanto esta) e a referência (por não ser o próprio objeto). É importante ressaltar que, nesta lógica, valor de verdade não é sinônimo de verdadeiro e que os juízos têm caráter puramente lógico: o juízo é “uma trajetória de um pensamento para seu valor de verdade”151. Como o número não é passível

de variação, Frege conclui que o número não pode ser colocado sob a categoria de nome próprio:

Um homem envelhece, mas se, no entanto, não pudéssemos reconhecê-lo como o mesmo, não teríamos nada de que pudéssemos predicar o envelhecer. Apliquemos isto ao número. Quando um número varia, o que permanece o mesmo? Nada. O número portanto não varia, já que nada temos de que possamos predicar a variação. Um número cúbico jamais se torna um número primo [...] Não há, pois, números variáveis, e isto se confirma pelo fato de que não temos nomes próprios para números variáveis152.

De outro modo, opondo-se a este argumento, Kripke define nomes próprios como designações rígidas, nos quais existiria uma fixidez entre significante e significado, ou seja, entre o nome e o objeto ao qual faz referência. Para este autor, “o atual presidente da república” não seria um

150 FREGE, 1978 [1892], p. 65. 151 Ibid., p. 70.

designador rígido porque não designa o mesmo objeto em todas as situações possíveis; por outro lado, o nome próprio Miterrand, por exemplo, seria rígido, posto que em qualquer situação, perdendo ou ganhando uma eleição, significaria a mesma pessoa153.

Bourdieu assinala um cristalino exemplo no âmbito da literatura, ao referir-se ao modo com o qual Proust nomeia seus personagens. Trata-se de uma posição oposta àquela de Kripke, pois Proust utiliza os nomes próprios (“a Albertine de então” ou “a Albertine encapuzada dos dias de chuva”) não somente precedendo-os do artigo definido, como também lhes atribuindo propriedades específicas a cada momento do trajeto de suas narrativas de sujeitos.

e eu tenho a impressão de deixar alguém para ir ter com outra pessoa diferente, quando, em minha memória, retrocedo do Swann que mais tarde conheci deveras para este primeiro Swann – este primeiro Swann que descubro entre os encantadores equívocos de minha juventude, e que aliás se parece menos com o outro do que com as pessoas a quem conheci na mesma época [...]154.

Assim entende Bourdieu a estratégia proustiana: “rodeio complexo pelo qual se enuncia, ao mesmo tempo, a súbita revelação de um sujeito fracionado, múltiplo e a permanência além da pluralidade dos mundos da identidade socialmente atribuída pelo nome próprio”155.

A partir da obra de Proust À la recherche du temps perdu, tomada como romance e, ao mesmo tempo, como a história de uma escritura, Barthes vai além; confere ao nome próprio o estatuto de sistema que, uma vez encontrado, desencadeia a escritura: “O Nome próprio é de algum modo a forma lingüística da reminiscência”156. Em toda a Recherche, vemos Proust inventar nomes de pessoas e de lugares que são, segundo ele próprio, condensações de pessoas e lugares que ele conheceu e visitou durante sua vida.

Uma outra característica do nome próprio é formulada extensamente na prática clínica. No trabalho em torno do nome do sujeito, vê-se que, paradoxalmente, o nome próprio é o mais impróprio dos nomes, já que é imposto, em geral antes mesmo que o ser humano se apresente ao mundo. O nome próprio é a marca do Outro no sujeito. Assim, se não há acoplamento significante/significado, o nome próprio nada significa. Por este motivo, não-traduzível e transportado como marca em qualquer idioma. Não significa, mas aponta, indica.

153 apud DARMON, 1994, p. 261; e BOURDIEU, 1997, p. 78. 154 PROUST, 2001, p. 25.

155 BOURDIEU, 1997, p. 79.

Somente depois, nas travessias identificatórias, esse nome ganha estofo e, por isso, pode representar, fazer-se representar. Por estar submetido à representação, o nome indica uma falta pois “representação” é uma operação que diz respeito à linguagem, à estrutura de ficção, onde não há proporção, complementação, correspondência: um nome representa um significante para outro significante, mas não há cópula, unidade.

Na obra de Lacan, encontraremos um termo forjado por ele para dar conta do complexo tema da nomeação na constituição do sujeito. Este termo é o Nome-do-Pai e Lacan começa a formalizá-lo desde 1957, quando profere o Seminário As formações do inconsciente. O significante Nome-do- Pai é correlativo à estruturação edípica, tendo na função paterna sua sustentação. Não corresponde evidentemente a qualquer traço de presença do genitor masculino na realidade, mas, como função que é, suporta a conjunção presença/ausência na linguagem e determina, para o sujeito, um lugar simbólico de filiação. Mesmo porque, lembra Lacan naquele seminário, nada impede que um sujeito órfão de pai conheça as vicissitudes  necessárias, aliás,  da situação

edípica.

Lacan considera o pai antes de tudo como metáfora, isto é, um significante que vem em lugar de outro significante. Identifica, porém, três apresentações para esta figura: o pai real, representante da lei, que ao ser suposto pela criança como detentor do objeto de desejo da mãe torna-se pai simbólico, já aí mesclado a todas as representações possíveis de um pai imaginário, corporificado em alguém, não necessariamente o genitor, mas que sustente este lugar de presença simbólica e garantia de limite. Nesta formação, a mãe tem papel preponderante, pois é ela quem autoriza, ou não, na sua fala dirigida à criança, o lugar possível da enunciação paterna.

O sintagma Nome-do-Pai reúne os três termos, o que levou Lacan a designar, quase vinte anos depois, o “Nome de Nome de Nome”157. Ao triplicar o significante, Lacan não abandona o Nome-do-pai; antes indica a estrutura ternária do nó como figura topológica: real, simbólica e imaginária, propondo-o como amaração dos três registros. É através do recalcamento e da metáfora paterna construída que o desejo vai poder a um só tempo inscrever-se no sujeito, pela linguagem, como marca de sua singularidade e, ao fazê-lo, permanecer alienado, isto é, metonimicamente relançado em demandas que constituirão, por sua vez, o mundo dos objetos.

157 LACAN, aula de 11/03/1975, inédito.

De um objeto a outro, de uma demanda a outra, o desejo engendrará a série de significantes. Sua marca primordial de falta nos faz lembrar que não se trata absolutamente da necessidade, e que este desejo será para sempre insatisfeito. Em resumo, a metáfora paterna vai possibilitar ao sujeito uma via (vida) metonímica, levando a criança a “tomar a parte (objeto substituto) pelo todo (objeto perdido)”158. Não é outra a razão pela qual Lacan fala do “sujeito desejante”.

“O romance familiar do neurótico” é um texto de Freud no qual ele trata literalmente as histórias familiares humanas como “obras de ficção”159. Sua escuta analítica ensina-lhe que uma história de vida compreende muitas possibilidades de versão (termo dele) e que as fantasias infantis possuem um amplo leque de variações sobre o tema da sexualidade, sendo elaboradas com diferentes graus de esforço na direção da “verossimilhança”160. Neste texto ainda, Freud comentará que, ao construir versões da sua história, o sujeito reivindica sua legitimidade como “protagonista e autor”161 deste romance.

Três enodamentos cercam a questão da identidade subjetiva: a criança, um resto real que é efeito de uma cópula; o protagonista (herói) de uma história imaginária; e a função autor, nomeação simbólica possível para todos, mas que, em casos excepcionais, se imporá sobre as demais e fará do impróprio nome próprio um singular Nome Próprio, filiação tributária de uma invenção: a obra162.

Já um nome de autor pode significar muitas coisas, como vimos acima, inclusive ser tomado metonimicamente para representar toda uma época. Além disso, a função autor varia e refaz sua própria estruturação em conseqüência do ato ao qual se presta a cada nova produção, uma escritura na retroação da leitura.

158 DOR, 1985, p. 121.

159 FREUD, 1973 [1908-9], p. 1363.

160 FREUD, 1973 [1908-9], p. 1362. Verossimilhança é um termo aristotélico que não deve ser negligenciado. Freud não se refere a uma adequação das fantasias à pretensa realidade, posto que a realidade é obra de ficção.

161 Ibid., p. 1363.

162 Em Totem e tabu, Freud apela a Goethe para nos explicar que a construção do sujeito não se dá sem a presença dos traços familiares. Do Fausto, Freud anota: “Aquilo que herdaste de teus pais, conquista-o para fazê-lo teu.” (apud FREUD, 1973 [1912-3], p. 1849). Este efeito de autoria que Freud espera de um indivíduo não é o mesmo efeito de autoria que se extrai de uma obra poética. No entanto, a base da invenção é a mesma: traços de memória herdados e reconstruidos singularmente.