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O início deste trajeto antecipa uma formulação que, para a psicanálise, a partir da leitura que faz Lacan do texto de Freud, é premissa lógica: o inconsciente é estruturado como uma linguagem. Ao fazê-lo, subverte uma noção cara ao senso comum e à psicologia que preconizam a linguagem

73 BARTHES, 1999, p. 83. 74 Ibid., p. 34.

75 LACAN, 1992 [1969/70], p. 76.

76 Parece que não somente da obra literária, mas de qualquer manifestação humana que aponte diretamente ao desejo. No Seminário O desejo e sua interpretação, Lacan fala sobre o “caráter decepcionante do desejo humano.”

(LACAN, 1994 [1958-9], p. 477). 77 BARTHES, 1999, p. 33.

78 “à sa perte” (BARTHES & NADEAU, 1980, p. 7). 79 Ibid., p. 41 e BARTHES, 1999, p. 33.

como um produto do psiquismo humano em suas aquisições temporais. Lacan recusa a linguagem concebida como um aprendizado em etapas de desenvolvimento, cuja aquisição se daria à medida que o pequeno sujeito fosse galgando degraus em seu aparato psíquico. A posição de Lacan é inversa. A linguagem precede o sujeito e ele só acederá ao registro humano através de uma aposta perdida: a submissão à linguagem, tornando-se sujeito, assujeitado81.

Não se trata evidentemente daquilo que se diagnosticou no pensamento de Lacan: uma negação do homem em geral, do sujeito e também do autor82. O que está em questão é a dependência do sujeito a algo verdadeiramente elementar que Lacan estabelece, a partir de Saussure, sob o nome de significante. Já no final do seu ensino, Lacan evoca a lingüística como a referência, no campo da ciência, para a fundação da psicanálise83; a objeção que o psicanalista pode fazer quanto à utilização desta ciência se refere à suposição de que linguagem é comunicação.

Meio século antes, Freud já havia explicitado a lógica do funcionamento inconsciente, dando prioridade à linguagem, e, assim, à palavra falada, fonematizada. Não apenas por ter abandonado o procedimento corrente da hipnose, ao dar voz à histérica, mas por apontar o mecanismo estrutural das formações inconscientes  especialmente nos sonhos  regidos por processos

peculiares, a condensação e o deslocamento. Fazendo uso de letras e pedaços de palavras, Freud deu demonstrações exemplares do manejo do significante e da letra na delicada e singular tarefa de desatar os nós imaginários da fala do sujeito, apresentados em sua roupagem sintomática de satisfação e dor.

Embora Saussurre e Freud tenham sido contemporâneos, até hoje não se tem uma idéia clara das razões que teriam impedido um intercâmbio de trabalhos. De acordo com Michel Arrivé84,

durante os anos em que Saussure ministrou seu Curso de lingüística geral, entre 1907 e 1911, os trabalhos de Freud já eram conhecidos na Universidade de Genebra, havendo inclusive comunicações escritas de colegas de Saussure sobre estudos de Freud. Além disso, sabemos pelo próprio Freud que Raymond de Saussure, filho do lingüista, estivera em análise com ele, antes de 1920.

81 “O sujeito não é originário. O sujeito tem uma gênese. Bem, quem disse isto? Freud, certamente; mas foi necessário que Lacan o mostrasse claramente” (FOUCAULT apud ERIBON, 1996, p. 147).

82 Intervenção de Lucien Goldmann à fala de Foucault (GOLDMANN, 1992). 83 LACAN, 1977, inédito.

De todo modo, Lacan se encarregará, na década de 1950, de estabelecer um diálogo entre as formulações de ambos, fazendo com que algumas das principais categorias lingüísticas estabelecidas por Saussure permaneçam no centro das discussões psicanalíticas. Podemos dizer que Lacan é quem mais sistematicamente problematiza tais categorias, entre elas, significante/significado, sincronia/diacronia, língua/linguagem, linguagem/fala/discurso.

Desde o Seminário I, realizado em 1953, Lacan presta homenagem a Saussure, reconhecendo em suas contribuições a articulação clara e precisa sobre o processo pelo qual se constitui a linguagem humana. Em algumas ocasiões, como no Seminário A Identificação85, ele pede ao seu auditório que “releia” Saussure, para acompanhar o desenvolvimento que ele, Lacan, vem fazendo a partir de uma leitura minuciosa do Curso de lingüística geral. No seminário, Lacan lê alguns trechos da obra, recomenda um determinado capítulo, fornecendo inclusive a página, coisa pouco habitual, e fazendo com que seus ouvintes acompanhem passo a passo o que está sendo extraído daquele campo.

Quando Saussure define o signo lingüístico, o faz numa perspectiva de oposição à concepção clássica que o definia como representação do objeto. Para ele, o signo é a união do significante (a imagem acústica) ao significado (o conceito), união que é tanto arbitrária quanto necessária. Lacan rompe com essa noção do signo em vários níveis. Em primeiro lugar, separa significante de significado, dando primazia e autonomia ao primeiro. Em segundo lugar, considera o traço divisório (S/s) presente no signo, como barreira entre os dois e não como colagem. A barra assume valor estrutural, referente à operação de recalcamento, forjada por Freud.

Por outro lado, Lacan considera que “O significante repudia a categoria do eterno”86, criticando a

formulação de Saussure que o classifica como fixado ao significado e, desde que atrelado ao significado por meio da “unidade” sígnica, torna-se “totalidade”. Como Lacan utiliza o referencial da lógica, ele dirá que a relação significante-significado não é arbitrária nem necessária, mas contingente e que o significado é um efeito possível do significante.

A grande virada está na utilização do signo fora de qualquer apreensão subjetiva de representação, e nisso Lacan segue uma indicação freudiana sobre o papel do representante pulsional preponderando sobre as representações. O lugar dado ao significante também ressitua

85 LACAN, 1961, inédito. 86 LACAN, 1975 [1972-3], p. 41.

logicamente o sujeito, não mais agente, mas sujeitado ao inconsciente que, em sua estrutura, obedece às leis de funcionamento da linguagem. Para Lacan, como já dissemos, o significante representa o sujeito para outro significante, em sua função essencial de ser pura diferença e de não significar nada em si mesmo. Esta formulação só é possível porque Lacan leva ao pé da letra aquela barra entre significante e significado. Lacan não está de modo algum afastado da abordagem freudiana, em muitos casos, antimetafísica. O que está em jogo aí é uma posição de descentramento do sujeito e uma recusa em pensar o discurso humano como uma mensagem cuja essência poderia ser decifrada.

Lacan subverte também o triângulo da comunicação entre os falantes. Já não se trata mais de falantes87, mas de falados, sujeitos à linguagem ou, Lacan explicita, ao Simbólico, este Outro necessário como campo no qual um sujeito pode se produzir, como intervalo entre significantes numa cadeia de discurso (S1 – S2). Entre um sujeito e o Outro está a palavra; mas como esse

sujeito é extraído do campo do Outro, sendo por isso um sujeito barrado ($), não há simetria nem relação complementar entre os dois. Sujeito é um termo contraposto a ser, o sujeito é falta-a-ser, diz Lacan. Desde o primeiro Seminário, Lacan diz que o ser só existe na palavra. Entre o ser e o Outro como lugar da palavra sempre faltará um significante, visto que não há completude. Esse significante que representa a falta chama-se, no campo da psicanálise, o falo. O falo seria aquilo que, caso existisse, viria completar o campo do Outro.

O ser humano é um ser em falta, não no sentido religioso que supõe uma totalização, uma unidade que a restaure, mas como falta-a-ser, homem ou mulher. Por isso, dissemos, logo na Apresentação, que os significantes homem e mulher para a psicanálise são posições de discurso, sem necessariamente estar colados ao sexo biológico ou gramatical. Dizer que estes significantes se inscrevem como diferença é uma redundância, dado que uma das características do significante é valer por sua diferença; o conceito de homem e mulher é, enquanto conceito, apenas a face significado do signo saussuriano.

A língua é um ponto que merece destaque na interseção dos dois campos. A visão de Saussure é fortemente marcada pela psicologia e isto aparece claramente na sua definição de signo em que a face ‘imagem acústica’ liga-se muito mais à imagem como a marca psíquica, e bem menos ao acústico como o som físico. A fusão conceito/imagem acústica na totalidade signo, que funciona

dentro de um sistema, também aponta para o universo de discurso da psicologia. É deste modo que Saussure recusará a definição clássica de língua como uma nomenclatura, isto é, uma relação linear entre coisa e objeto.

Sua definição de língua como “sistema de signos que exprimem idéias, e por isso comparável à escrita, ao alfabeto dos surdos-mudos, aos ritos simbólicos, às fórmulas de polidez [...]. Ela é apenas o mais importante desses sistemas.”88, prepara o campo para compreender a língua como dependente da linguagem: “ela é apenas uma parte determinada da linguagem”89. Assim, Saussure atribui à língua um duplo estatuto: produto da linguagem e conjunto de convenções adotadas pelo corpo social. Situando a linguagem nos âmbitos físico, fisiológico e psíquico, ao domínio individual e social, Saussure dá à língua atributos imprecisos e também ambíguos: “A língua, ao contrário, é um todo em si e um princípio de classificação [...] ordem natural”90.

Como compreender a língua como “um todo em si” se ela é “apenas uma parte da linguagem”? Arrivé aborda esta definição criticamente: “Evidentemente, resta identificar o objeto que, acrescentado ao todo da língua, vai constituir o não-todo (perdoem essa antecipação lacaniana) da linguagem saussuriana.”91. Bastaria algum conhecimento de teoria dos conjuntos para tornar prescindível o parêntese da citação acima, porque a caracterização de linguagem que Saussure nos oferece “multiforme e heterogênea, situada em vários campos [...] não se sabe como depreender a sua unidade”92 é suficiente para deduzir o estatuto de conjunto aberto, não-todo, da

linguagem. Ao introduzir a fala, Saussure aparentemente fecha o conjunto, dizendo que língua é a linguagem menos a fala. Voltaremos sobre este ponto, para delimitar o conceito de língua para a psicanálise.

As leis que regem o inconsciente  os mecanismos de condensação e deslocamento  possuem

correlato na lingüística. Freud observa que os pensamentos do sonho formam uma rede de idéias que se entrecruzam, e que cada elemento, palavra ou imagem, refere-se a uma série de idéias sobrepostas93, sem que o sujeito tenha, necessariamente, consciência de sua ligação94. A célebre

88 apud ARRIVÉ, 1999, p. 35. 89 Ibid., p. 36. 90 Ibid. 91 Ibid. 92 Ibid.

93 Lacan considera que os mecanismos de condensação e deslocamento, assim como a figuração dos sonhos, pertencem à articulação metonímica, sendo esta a base para a metáfora poder intervir. (LACAN, 1981 [1955-6]).

palavra “familionário”95, analisada por Freud é um claro exemplo deste mecanismo de substituição significante que vem produzir um novo sentido96. Lacan relê Freud, propondo que a metáfora seria o equivalente da condensação, por permitir a transferência de um sentido para

outro, e a metonímia o correlato do deslocamento.

Trabalhando sobre o material do sonho, Freud se vê diante de uma “outra cena”97, diferente daquela que é vivida na vigília e que daria ao sujeito a sensação de estranhamento, tão comum nos sonhos quanto a sensação de familiaridade relativas a um mesmo tema. Seguindo a metáfora freudiana, Lacan entende que essa outra cena designa “o palco regido pela maquinaria do inconsciente” e que é nesse palco “que o sujeito aparece como sobredeterminado pela ambigüidade inerente ao discurso.”98.

No Seminário sobre O desejo, Lacan detém-se no par sincronia-diacronia para mostrar como esses conceitos de Saussure repercutem no campo psicanalítico. Pensando no discurso segundo os vetores das simultaneidades e das sucessividades, Lacan toma a continuidade sincrônica como lugar do código, “o lugar onde jaz o tesouro da língua em sua sincronia”99. A sincronia, portanto, refere-se à organização sistemática da língua, onde não conta, segundo Saussure, o elemento tempo. Nessa linha, cada significante tem valor por sua diferença dos outros. No entanto, diz Lacan, o importante para a psicanálise, e que as teorias da comunicação esquecem, é que “o que é comunicado não é o signo de algo, é simplesmente o signo do que, em seu lugar, um outro significante não é.”100.

Já a diacronia corresponde ao eixo vertical, afetado pelo tempo, “o tempo de falar”101. E é aqui

que Lacan retoma uma questão que situa como sendo uma preocupação dos psicólogos: a continuidade do sujeito, isto é, “por que um ser essencialmente entregue ao que se pode chamar

94 Somente esta formulação explicaria porque Lacan diz que Freud antecede Saussure na apresentação do par

significante/significado.

95 Sua análise encontra-se em O chiste e sua relação com o inconsciente.

96 Para Lacan, a nova significação “arranca o significante de suas conexões lexicais” (LACAN, 1981 [1955-6], p. 248).

97 O conceito de “outra cena” é tomado de empréstimo a Fechner, importante psicofisiologista, e é retomado várias vezes por Freud.

98 LACAN, 2003, p. 175. 99 LACAN, 1994 [1958-9], p. 35. 100 Ibid.

as intermitências  não simplesmente do coração como disseram102, mas de muitas outras coisas  pode colocar-se e afirmar-se como um eu.”103. As intermitências seriam uma metáfora para as

variações que a fala sofre, submetida ao passar do tempo104.

Com a ‘ciência do Real’, última fase dos seus Seminários, Lacan problematiza o conceito de verdade, enxugando-o de sua roupagem imaginária e de conteúdos, e deixando-o como “um valor vazio, isto é, exatamente nada de nada, [...], ou seja, uma maneira de tratar a verdade que não tem nenhum tipo de relação com aquilo que chamamos comumente verdade.”105. Em paralelo, o trabalho de Foucault em direção a uma Genealogia indica que, historicamente, efeitos de verdade vão sendo produzidos no interior dos discursos, e que estes “não são em si nem verdadeiros nem falsos”106.

Para situar o alcance desta produção de verdade na via discursiva, a lingüística distingue duas operações fundamentais no campo da linguagem, e que a psicanálise retomou com grandes conseqüências. Trata-se dos termos enunciado e enunciação, que comportam uma relação de oposição, mas também de dependência. O enunciado pode ser compreendido como uma uma frase, ou proposição. Refere-se ao que o emissor pretendeu dizer, sua intenção. A enunciação seria um ato de linguagem mais complexo porque não podemos apreendê-lo no enunciado; algo falta ou nos escapa.

Para Barthes, a enunciação “visa o próprio real da linguagem”, indica um lugar de falta, no qual a língua se expressa obrigatoriamente. A psicanálise implica o sujeito nesta operação, propondo o sujeito do enunciado e o sujeito da enunciação. Não se trata de um sistema de oposição, fundado na contradição, porque não há enunciação sem enunciado. Esta distinção é explicitada por Lacan no par dito/dizer. Naquilo que pensamos ‘dizer’, o dito comparece, trazendo a dimensão equívoca do dizer. Não há polaridades a serem destacadas, o par presença-ausência, na verdade é um trio, pois não podemos excluir, desta alternância, o intervalo, a diferença.

102 Para o público francês, certamente não passa despercebido que Lacan se refere a Proust. De todo modo, ele o faz com um tom irônico bastante depreciativo, talvez em função do alcance que esta expressão “intermitências do coração” adquiriu, quase como um epíteto da obra proustiana.

103 LACAN, 1994 [1958-9], p. 36.

104 Não é à toa que Lacan fez a referência às intermitências; a obra de Proust trata justamente, na diacronia do discurso, daquilo que se perde com o tempo.

105 LACAN, 1973-4, inédito. 106 FOUCAULT, 1995, p. 7.

Em Barthes, encontramos uma afirmação extraída do ensinamento de Lacan que merece ser citada. Para ele, a enunciação é um ato de discurso e somente pode ser entendida como efeito retroativo da escritura, produzindo enunciado e sujeito107. Entre enunciado e enunciação, entre dito e dizer, o que está em questão é a divisão constitutiva do sujeito. No entanto, este constitutivo não tem relação com uma imanência, sendo apenas um efeito da estrutura de linguagem.